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Um deles, em pleno largo Luís de Camões, por volta da meia-noite. Íamos de mãos dadas em direcção ao Bairro Alto. Duas mulheres de mãos dadas, expressão de ligação e afecto bastante inocentes, no meu entender, que nada de polémico parecia revelar. Ainda assim, um grupo de miúdos na casa dos vinte anos achou-se no direito de perturbar a nossa noite. Aproximaram-se de nós pelas costas e um deles disse bem alto num tom hostil: «Queres ver que temos fufas a esta hora?»
Fiquei surpreendida. Primeiro porque percebi que para o rapaz imberbe a palavra fufa devia ser uma tentativa de ofensa, e eu por acaso considero que fufa é parecido com fofa, portanto, em nada me atingiu. E segundo porque, na lógica da sua pergunta, deve haver horas certas e erradas para se ser fufa, uma vez que pareceu incomodado por circularmos na rua àquela hora.
Virámo-nos para ver que rosto correspondia àquela provocação. Um rapaz com cara de parvo; não me espantei, o rosto correspondia à sua acção. A minha companheira ficou agressiva, pediu-lhe satisfações, por que motivo se achava no direito de falar assim connosco. Eu não disse nada.
Nunca me tinha acontecido uma situação daquelas. Sempre me relacionei amorosamente com homens, não fazia ideia de que podíamos ser alvo de um grupo de papalvos homofóbicos de tão tenra idade e no centro de Lisboa. Não responderam à pergunta da minha namorada. Começaram a rir e seguiram caminho.
Fiquei a pensar o quão estúpido tinha sido aquele momento; estúpido, mas não inocente, atenção. Penso que não se deve desvalorizar uma fricção daquele tipo. Parece pequena e inofensiva, e não é. O problema é alguém achar que tem o direito de interferir na vida de uma pessoa, numa tentativa de a humilhar ou agredir.
A segunda vez que uma situação homofóbica nos aconteceu foi num restaurante em Lisboa, por acaso um sítio chique com uma estrela Michelin, precisamente no dia nos namorados. Fomos jantar as duas, tenho ideia que foi a primeira vez que jantámos juntas no Dia das Namoradas.
Desde logo recebidas por um tipo com um ar antipático, o que estranhei dado o gabarito do restaurante. Perguntei se nos podíamos sentar numa mesa mais afastada do ruído, disse-me logo que estava reservada, de modo cortante. Não tinha nenhuma indicação de estar reservada, mas acreditei, claro, não dava para desconfiar do senhor, só nos conhecíamos há dois minutos, nem tanto, e lá por ser antipático não queria dizer que fosse mentiroso.
Durante todo o jantar, o cavalheiro que servia às mesas atendeu-nos sempre com um tom bizarro. É difícil explicar, mas o modo como nos olhava ou a ironia com que repetia o que lhe dizíamos começou a fazer-me comichões.
Relevou-se finalmente na altura das sobremesas. Quando veio recolher o pedido, virou-se para a minha companheira e perguntou-lhe: «E o senhor, o que vai querer?», com um sorriso sarcástico bem impresso na fronha.
Saltou-me a tampa. «O que é que é acabou de dizer?» Tenho a certeza de que os meus olhos faiscavam de indignação e raiva nesta altura. «Nada.» Respondeu-me o sonso baixando as trombas. Insisti para repetir o que tinha dito. Não se atreveu a repetir, pediu desculpa.
Mandámos chamar imediatamente o gerente. Queríamos fazer queixa, escrever no livro de reclamações, obviamente. Um grupo de pessoas que estava sentado numa mesa próxima da nossa disse que também queria assinar. Tinham visto a cena desde o início, o modo como o empregado nos tratava e ouvido a pergunta de gozo.
Graças ao ar andrógino da minha companheira, o senhor que nos serviu à mesa achou-se no direito de a tentar ofender através de uma pergunta-provocação. No seu entender, a pergunta era uma graça sem importância. No nosso entender, uma graça sem graça e agressiva, vinda do reino da heteronormatividade.
Desde esta altura, fiquei a pensar quantos homofóbicos e homofóbicas existirão em Lisboa. Muitos e muitas, suponho. Acredito que inúmeras pessoas pensem coisas impróprias e desagradáveis mas se calem, e isso, embora seja uma atitude fraca e feia, sempre é mais positivo do que abrir a real cloaca.

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* Cláudia Lucas Chéu nasceu de madrugada na mais célebre maternidade lisboeta, em 1978. Cresceu na margem Sul, mas viveu parte da adolescência enfiada no King. Quase todos os momentos emocionantes da sua vida se passaram em Lisboa: perdeu a virgindade nas Laranjeiras, foi assaltada no Cais do Sodré, subiu ao palco pela primeira vez como atriz profissional na Praça de Espanha, publicou o primeiro livro no Rossio e deu à luz uma filha no Alto dos Moinhos. Vive há mais de duas décadas em Lisboa. Não contempla morar noutra cidade.