Há uns anos, eu era jovem, o que significa que chegava acordada à meia-noite. Mais do que isso, podia até andar na rua, sem bocejar, sem me entupir de três litros de café, sem reclamar da vida e disto e daquilo e dos jovens de hoje em dia. Foi para não esperar pelo autocarro no Cais do Sodré às duas da manhã e não perder mais meia hora lá dentro, tendo ainda de andar dez ou quinze minutos até chegar a casa, que comprei uma mota.
A partir daí, já ninguém duvidava – o meu sotaque era outro, mas Lisboa era minha. Houve um dia em que eu também fui dela.
Em cima de uma coisa com duas rodas e um motor, só tinha a experiência de um motoboy no Maranhão no meio de uma tempestade de areia, de outro a subir o Vidigal quase a pique e sem travões. Como aquilo me sabia a perigo de morte, pareceu-me uma boa ideia, e ninguém estranhou que eu fosse buscar a mota a Almada para depois voltar para a outra ponta de Lisboa.
A minha amiga Meijinhos foi comigo, ensinou-me a andar naquilo no parque de estacionamento de um shopping e o meu joelho foi ao chão antes de chegar às portagens da ponte. A mota estava parada, ficou tudo bem, muito obrigada.
Passado um mês, e já depois de ter sabido o que era quase dizer adeus à vida em cima da ponte, azul de um lado, azul do outro, azul de cima (e o preto da morte à minha frente), achava que dominava aquilo tudo. A precaução não me anima grande coisa, o medo de viver nunca me cola. E ninguém me disse que, ao travar, devia largar o acelerador.
Como um palerma mudou de faixa à minha frente sem apelo nem agravo, tive de dar uma guinada e depois veio o mini-apocalipse: as rodas escorregaram pela chuva caída, o volante escapou-me das mãos, a mota foi para um lado, eu fui para o outro. Ao meu lado, estava o estádio do Sporting, já habituado a desastre e desespero.
Junto ao Alvalade XXI, onde tantas vezes vemos episódios de amor e paixão e fanatismo e violência e promessa e hormonas, fui eu quem deixou o sangue a escorrer no chão. Em cima da rótula, estavam as entranhas de um vulcão.
Como em Lisboa há vultos e não caras, os carros desviavam-se para não me passarem por cima e ainda punham um ar de enfado por haver uma moribunda a criar trânsito na via rápida até numa hora que não era de ponta.
Um rapaz de Santarém parou o carro e veio ter comigo. Os meus anos de glória como goleadora das Olimpíadas da escola no sexto ano pareciam pertencer para sempre ao passado. O rapaz pousou-me na bomba de gasolina, depois foi buscar a minha mota. Eu mal podia olhar para o joelho desfeito à minha frente. Lá ao longe, a minha carne esparramada juntava-se ao alcatrão.
O rapaz foi buscar uma caixa de primeiros socorros à loja da bomba. Quando me apareceu com água oxigenada à frente, senti dor antes de ele a abrir. Disse que achava melhor não me meter aquilo numa ferida aberta e ele respondeu que então me levava ao hospital. “Nem pensar”, disse eu, decidida a ir para a biblioteca apesar de ter um membro desfeito agarrado ao corpo a custo.
O tipo insistiu e eu acabei por não traumatizar os estudiosos com a vida que há fora dos livros. Mas custava-me entupir um hospital só por causa de um ferida. Cheia de pudor, lá me dirigi à recepção, depois de agradecer ao rapaz. Meio a medo, lá disse: “Desculpe, tenho uma ferida, não sei se devia estar aqui ou no centro de saúde.”
A recepção do hospital de Santa Maria não é conhecida por ter muita simpatia. E a senhora que lá estava ditou-me a sentença: “Quer estar aqui, esteja. Quer ir ao centro de saúde, vá.” Eu, que não gosto de ser a décima terceira à mesa, chamei um táxi e pus-me a andar. O taxista levou-me a Sete Rios, paguei-lhe com uma moeda de dois euros e uma nota de cinco com um bocado de carne que me tinha saído do joelho.
No centro de saúde, foram à loucura. Mal me tinha dirigido à recepção, já ouvia berros: “O que é que está aqui a fazer?! Isto é um centro de saúde. Tem de ir para o hospital!”
Eu já estava meio irritada. Tinha a mala com dois livros, um computador e um carregador, um casaco de Inverno, calças rasgadas e um joelho aberto. A perna, em vez de membro útil, era um corpo morto atado a mim.
Disse que tinha acabado de sair de lá, perguntei se não me podiam mesmo fazer ali o curativo. A senhora parecia que me queria dar duas chapadas. “Curativo?! Já viu como tem o joelho? Tem de ir para o hospital imediatamente!”
Liguei à Meijinhos e ela nada. Liguei outra vez e nada. À sétima, lá atendeu, com olhos de sono, voz de sono, “Que horas são?” E lá lhe disse que me tinha esbardalhado no chão da terra dela.
De casa ao centro de saúde, bateu o recorde do Schumacher. Quando me viu, ficou lívida, o que significa que estava tão branca quanto eu. Entrei no carro dela e lá fomos para o hospital que me tinha rejeitado. Eu a dizer para ir com calma, ela em pânico. E ainda me armava em espertinha: “Vê lá se temos um acidente e damos cabo de um joelho.”
Chegadas ao hospital, não havia onde estacionar. Uma, duas, três voltas, etc. Lá vimos um segurança, ela parou para lhe perguntar se havia algum sítio onde pudesse pôr o carro. Ele começou meio antipático, depois olhou para o meu joelho. Mais um a entrar em stress.
Esbugalhou os olhos, deu a volta ao carro. “O quê?! O quê?! Tem de vir já, já!” Abriu a porta, tirou-me o cinto, puxou-me de lá à força. E eu “Calma, amigo, não vê que estou mal do joelho?”. Forcei a graçola e ele atrapalhou-se todo, “Desculpe, desculpe!”, mas por mim tudo bem, desde que não me metesse a fazer um sprint, eu que aos dois anos era conhecida por Rosa Mota Pedrosa por duas ou três pessoas da minha rua, incluindo os meus pais.
O segurança disse que teria calma, mas não a teve. Estava cheio de pressa, achava que eu lhe ia morrer ali, que a canela ia apodrecer e metade da perna ia ao ar – ao chão. Lá chegámos a uma sala qualquer, nem pulseira tirei, foi sempre a andar, ataram-me umas ligas à perna e sim, deram-me mesmo cabo das calças para sempre, que ainda por cima eram boas, da Primark.
Minutos depois, comigo deitada numa cama do bloco operatório, já me espetavam uma seringa na carne e cosiam como uma camisa rasgada num filme erótico intenso. Depois disto, seguiram-se comprimidos, vários curativos e mãos de enfermeiras mágicas a curar-me o tecido desvitalizado. Eram muito meiguinhas, dizia a Meijinhos, mas só por olharem para a ferida eu já sentia que a escavacavam com um bisturi. No fim, parece que a culpa tinha afinal sido minha e que não fora lá grande ideia pôr-me a passear por Lisboa com o joelho escancarado.
Sempre que passo ao lado do estádio, lembro-me disto. Ainda hoje, quem lá passar, se acalmar a velocidade, poderá ver o meu joelho desfeito contra a força do alcatrão seco. Na batalha humano versus pedra, não podemos fazer nada, bater contra o chão aleija muito. E é por isso que os estúpidos dos escritores me irritam.
Há por aí, na praça pública, idiotas que escrevem romances a gabar isto e aquilo, o azul-azul do Tejo, as mulheres que pisam folhas de jacarandás e o raio que os parta. O mal é mesmo esse, qualquer palerma escrever livros, sem um doutoramento em Teoria da Literatura para enfeitar, sem bases sólidas em latim, guzerate ou aramaico.
E portanto enganam-se e levam outros ao engano. É um talento que tem quem desconhece a vida. O céu é tão lindo, a luz bate no chão, os deuses passeiam-se lá por cima a torto e a direito sem pressa de chegarem ao trabalho e os incautos só vêem o que sublimam, não a vida.
E por isso pululam livros palermas de romancistas palermas que gabam Lisboa, o chão sagrado de Lisboa. Qualquer pessoa que ache sagrado este conjunto mal amarfanhado de alcatrão, terra e calçada portuguesa precisa de saber o que é a vida, de saber que o chão profano de Lisboa aleija como o caraças.
Passaram anos. Talvez o chão de Lisboa já não tenha a mancha do meu sangue, mas o meu corpo ainda tem uma cicatriz às cores: imprudente, desafiou em vão o chão duro de Lisboa. Eu, que graças a Deus sou ateia, tenho ideia de que, se fosse sagrado, não me teria lixado tanto a vida.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.