O tom espartano da entrada contrasta com o alegre nome pintado na plaqueta pendurada da porta: Joia. A galeria de arte – ou “ourivesaria de sentimentos”, como prefere o seu fundador, o artista plástico brasileiro Vital Lordelo – é uma espécie de ostra em plena Penha de França, austera no exterior, mas capaz de abrigar pequenas pérolas.
“O nome vem de nossa primeira sede, na rua Poiais de São Bento”, diz Vital Lordelo, nascido em Brasília há 38 anos, desde 2016 em Lisboa. Ele mesmo também um homem de gestos comedidos, como se a sede da sua galeria fosse a extensão de seu corpo e das suas emoções, o que não tardará a comprovar-se.

“Ocupávamos um espaço onde realmente funcionou uma ourivesaria tradicional. Menor do que esse, um cubículo, mas com um cofre enorme, daqueles de filmes. Daí vem o nome, que mantivemos mesmo após sermos obrigados a deixar o local, no início da pandemia, em março de 2020, expulsos pelo senhorio”, continua.

De lá até agora, a história repete o guião de tantos outros negócios que tiveram de abrir e fechar as portas entre os confinamentos e que acabaram por encontrar uma alternativa de sobrevivência no comércio online. Um modelo que se provou lucrativo e continua ativo no formato híbrido de funcionamento da galeria no pós-pandemia.
Só para artistas full-time
A Joia encontrou nova sede em agosto de 2020, no número 15A de uma pacata rua com o insólito nome de Triângulo Vermelho, no vértice entre a Penha de França, os Anjos e a Graça. Uma antiga loja de especiarias que trocou o colorido dos frascos de caril, massala, pimenta e orégão pelo de centenas de postais e pósteres.

Lá, estão expostos os trabalhos de 56 artistas, de nove nacionalidades distintas. Desenhos produzidos em diversas dimensões, cujos valores oscilam entre os 3,5 e os 600 euros. “Um dos diferenciais da nossa curadoria é a comissão cobrada, de 35 por cento, contra os 50 por cento das galerias tradicionais”, explica Vital.
“Não vejo a arte como complemento ou segunda profissão, um trabalho part-time, mas sim como a única forma do artista ganhar e viver a vida.”
Vital Lordelo
“A Joia é um espaço dedicado à arte, feito não de um gestor de negócios para um artista, mas de artista para artista”, complementa o curador, cujas obras se misturam com as dos outros nomes que assinam os trabalhos. A perspetiva da relação artista-artista leva a outro diferencial da curadoria exercida por Vital, este mais radical.
“A escolha das obras não se limita à qualidade, mas também à forma de o autor lidar com o ofício. Não vejo a arte como complemento ou segunda profissão, um trabalho part-time, mas sim como a única forma do artista ganhar e viver a vida”, explica. “E essa coragem em se assumir artista influencia na consistência da sua produção.”

Essa “intransigência” rebate também no desejo de que os artistas continuem a evoluir como profissionais. “Não tenho o apego de ficar segurando um artista. Torço para que ele cresça. Mas temos aqui uma política de preço acessível e se o valor cresce, é natural que siga para um outro espaço. E que apenas se lembre que passou pela Joia.”
“Brasília é uma cidade nova, onde os moradores muitas vezes vivem por um tempo determinado, o que dificulta a criação de vínculos. Colar um coração no betão era uma forma de ter uma conversa silenciosa com a cidade e também de ressignificar a ideia de que uma cidade é feita de betão, quando é mesmo feita de pessoas”, explica.
A evolução dos artistas reflete-se na evolução do negócio e é natural que, no futuro, a Joia também siga para um outro espaço, maior. “Estamos bem instalados aqui, mas há sempre a busca por uma montra maior”, explica.
Conversas silenciosas com as cidades

Ser um artista full-time foi um passo que o próprio Vital se viu obrigado a dar, após transitar entre o jornalismo e a publicidade. Nessa altura, no início do século, o brasiliense já vivia em Porto Alegre, onde começou a produzir as peças artísticas tendo o papel como suporte e nos muros da cidade uma galeria a céu aberto.
“Descobri que é possível viver de arte. Dá trabalho, não é fácil, mas se se organizar bem, é possível, sim”, revela Vital, que abraçou o Movimento Pós-Grafite, a técnica que se inspira nos cartazes que se colam nos muros e paredes – aqueles que fazem publicidade desde espetáculos a serviços de canalizador – para fazer arte.
E foi assim que a relação de amor de Vital Lordelo com a arte literalmente ganhou as ruas, estampado em corações impressos em pósteres em formato A2 (70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura), que ele passou a espalhar pelos muros, primeiro de Porto Alegre, depois na sua cidade natal, Brasília.

Essa “conversa silenciosa” também foi travada com Lisboa, em 2020, quando Vital colou os seus corações pela cidade que o acolheu. Um diálogo que tornará a ser estabelecido a partir de junho. “As pessoas precisam de voltar a sentir as coisas e um cartaz num muro é capaz de transformar o percurso de casa para o trabalho”, diz.
Corações impressos na pele
As reproduções das centenas de corações que Vital colou nas cidades por onde andou estão expostas e à venda na galeria – assim como uma réplica estilizada do órgão, moldada em impressora 3D – e compõem a parte mais consistente do seu trabalho artístico.

Os corações também estão impressos na pele de Vital, entre as tatuagens espalhadas pelos braços e tórax. A relação do artista com essa nova “forma de impressão” levou-o a desenhar os seus corações também no corpo dos outros, no estúdio montado no subsolo da galeria, utilizado de forma colaborativa com outros tatuadores.
“A pele é uma projeção do trabalho que sempre fiz no papel. As tatuagens são uma linguagem e também passo por ela, como nos pósteres e na cerâmica”, conta o artista que elegeu o coração como desenho e o afeto como forma de manter conversas silenciosas com as cidades.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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