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Rede para o Decrescimento Biblioteca de Alcântara
Da esquerda para a direita: Hans Eickoff, Ângela Lacerda Nobre, Sofia Paredes, Álvaro Fonseca. Foto: Rita Ansone

Na primeira reunião da Rede para o Decrescimento, Sofia Paredes sentiu algum desconforto. Estava a trabalhar na área da publicidade e sentiu-se até mesmo “atacada” por algumas coisas que ouviu. Andava de carro para todo o lado e não conhecia a cidade onde vivia, Lisboa. De que é que aquelas pessoas estavam mesmo a falar?

Nessa reunião, estavam membros da rede como Jorge Farelo Pinto, arquiteto e freguês de Campo de Ourique que sempre se demorou em conversas e deambulações pelo seu bairro, Hans Eickoff, médico alemão que durante os anos 1980 andara pelas ruas a fazer campanha pelo partido Os Verdes, Ângela Nobre Lacerda, professora e fundadora do Livre, e Álvaro Fonseca, ex-docente universitário de Ciências da Vida e fundador da rede.

De que é que eles falavam mesmo? Ora bem, imagine um nenúfar num lago. Todos os dias, o nenúfar dobra o seu tamanho e sabe-se que ao trigésimo dia cobrirá o lago, acabando assim com todas as outras formas de vida. Quando é que alguém vai agir, para pôr fim ao crescimento desgovernado do nenúfar? Nos primeiros dias, quando o nenúfar é pequeno? Ou no vigésimo nono, quando já só resta um dia para salvar o lago?

Era disso que eles falavam e aquilo de que ainda falam: do crescimento sem limites num mundo de recursos limitados. E sobre a necessidade de agir – agora. São estas as ideias na base da Rede para o Decrescimento, uma rede com núcleos em Lisboa, Santarém e em breve em Vila Velha do Rodão, que promove “conversas decrescentistas”. A grande missão? Envolver os cidadãos no combate aos níveis de consumo e produção excessivos e a criação de uma sociedade em que as pessoas participam ativamente nos processos decisórios, fazendo parte de uma comunidade.

Não há receita simples para se fazer isto e os membros da rede sabem que não é fácil pedir às pessoas para mudarem hábitos que lhes são “tão confortáveis”. É que salvar o planeta não significa apenas fazer pequenas mudanças, mas também mudar um sistema que perpetua injustiças sociais e ambientais. Numa sociedade “onde tudo está pronto para ser consumido” e “as decisões são tomadas por elites”, o que é que se pode fazer? Esta rede tem uma só resposta: “Parar para pensar”.

Os limites ao crescimento

Há 50 anos, publicava-se um relatório que foi revolucionário para o descrescimento (e ao qual a Mensagem roubou a adivinha francesa do nenúfar): Os Limites ao Crescimento, do Instituto Tecnológico do Massachusetts. Hoje é celebrado num círculo de conversas da rede, na Biblioteca de Alcântara.

Este fim de semana o debate é sobre Território e Cidades e é moderado pela diretora da Mensagem, Catarina Carvalho. Será na Biblioteca de Alcântara (Rua José Dias Coelho 27-29, 1300-327 Lisboa), sábado, pelas 15h. 

O relatório apontava para uma questão ignorada por muitos: a escassez dos recursos e a sua incompatibilidade com o nosso crescimento sem limites. E fê-lo estabelecendo relações entre os recursos, a população, o sistema alimentar e a indústria.

As evidências estão lá desde 1972, mas nem todos querem vê-las: “Basta uma criança ver um gráfico a crescer e a acelerar para dizer: ‘isto vai para o infinito, não é sustentável, não há maneira’”, explica Ângela Lacerda Nobre. Outros dão uma explicação mais metafórica: “É aquela imagem dos bonecos em que alguém está perto do precipício e dá um passo em frente”, diz Jorge Farelo Pinto.

Os Limites ao Crescimento Relatório
As previsões d’Os Limites ao Crescimento. Fonte: Donella Meadows Archive

O decrescimento, geralmente atribuído ao filósofo e jornalista austro-francês André Gorz, foi bastante debatido a partir dos anos 1970 – muito graças a este relatório – mas seria esquecido até aos anos 2000, talvez pelo aparente triunfo do capitalismo depois da queda da União Soviética. Ultimamente, tem suscitado o interesse de cientistas e ativistas – e em 2018 chegou a Portugal.

Enraizar o decrescimento em Portugal

Álvaro Fonseca pernoitava na “acampada de Rossio”, movimento que surgiu em 2011 em contestação ao FMI, quando descobriu essa abordagem de nome estranho, que chega mesmo a “repelir”: o decrescimento, movimento que permite a “convergência entre as linhas políticas e ambientais”.

Mas só em 2012 é que realmente se fez “Eureka!”. Serge Latouche, professor francês de economia e autor do Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, veio a Portugal dar uma palestra sobre o decrescimento.

Aí, o professor de Ciências da Vida ficou mais que convencido. É que o decrescimento, ao contrário de outros movimentos, propunha uma “análise macro” de todo o sistema e das suas dimensões. “O decrescimento analisa as questões com a profundidade que elas merecem”, explica o fundador da rede.

A ideia de trazer o decrescimento para Portugal ficou a germinar até 2018 quando um amigo de Álvaro, Jorge Leandro Rosa, investigador do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, o convidou para um congresso sobre o tema na Galiza. Álvaro e Jorge uniram então esforços para replicar a rede galega em Portugal e organizaram encontros em Lisboa e no Porto. “Queríamos perceber se as pessoas estavam interessadas”, diz Álvaro.

Houve alguma adesão, sobretudo de pessoas que já pertenciam a outros grupos ou associações ligadas ao ambiente, como foi o caso de Ângela Nobre Lacerda e Hans Eickoff, que se uniram para aquela que foi a primeira iniciativa da rede: um abaixo-assinado contra o aeroporto do Montijo, parte de uma “contestação mais geral” contra o tráfego aéreo e a construção de estruturas aeroportuárias.

As mudanças do decrescimento

A rede cresce e os seus membros têm mudado a forma de pensar e até mesmo a forma de viver, rumo à ideia de uma sociedade que não é ditada pelo consumo e pela produção, mas sim pela participação democrática e pelo espírito de comunidade.

A pandemia também conseguiu esta mudança. Por momentos, um vírus pareceu abrir os olhos às pessoas. Por todo o mundo, emergiram vários movimentos associativos para lutar a favor de causas solidárias e ambientais. Mas muitos desses movimentos entretanto esfumaram-se com o regresso à dita normalidade, lamenta Álvaro.

O tempo acelerou e a sede de produtividade também. Mas, apesar desta “normalidade”, ainda há muita coisa a acontecer no terreno. Os confinamentos provaram que é preciso parar: parar para pensar e para avaliar o que realmente importa na vida de cada um.

Eles pararam. Hoje, Sofia anda a pé pela cidade e raramente pega no carro. Já conhece todos os recantos de Lisboa. Ganhou tempo, diz ela. Jorge continua nas suas deambulações por Campo de Ourique e gosta de “injetar uma boa dose de decrescimento” naqueles com quem conversa. Hans preocupa-se com o futuro dos filhos e Ângela não se cansa de lutar por um mundo onde as pessoas participem ativamente.

Álvaro é insaciável na promoção da mensagem do decrescimento. É que este movimento não é apenas um convite para “repensar a relação com o território e com os outros”, especifica o fundador. “Também implica repensar a relação connosco próprios. A questão do apoio mútuo é super relevante”.

O passo seguinte a “parar para pensar” pode então ser resumido numa só fase: “É preciso haver uma forte cidadania que leve as pessoas a aderirem, a questionarem-se, a irritarem-se”, diz Jorge.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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