A Brasileira do Chiado é um dos cafés que mais histórias tem para contar sobre Lisboa: ali se discutiu pela noite fora, conspiraram-se revoluções, nasceram movimentos artísticos, escreveram-se os primeiros versos de poemas mas também se viveram os momentos corriqueiros do dia-a-dia. Tudo isto com o barulho de fundo da máquina do café.
Foi por isso o lugar escolhido para a apresentação do Dia Nacional do Café Histórico. Uma proposta, por enquanto. A ideia parte da Associação dos Cafés com História com a Associação Hoteleira, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) e a Associação Industrial e Comercial do Café (AICC). Objetivo: “Relembrar as pessoas que estes cafés existem e que estiveram presentes ao longo de várias décadas nas nossas cidades ”, diz Vítor Sá Marques, presidente da Associação Cafés com História.
E prestar também tributo àquela que é a segunda bebida mais consumida no mundo, o café. “Não há cafés com História, sem o café”, diz Carlos Moura da AHRESP. O café, que marca particularmente a cultura portuguesa, e cujas marcas têm História, como conta Cláudia Pimentel da AICC. É o caso do café Christina, que data de 1813, e que assim se chama em homenagem à mulher do seu proprietário, José Iria Carvalhal.
A apresentação foi na Brasileira – na sede emocional da Mensagem de Lisboa, o único jornal local do mundo que tem sede num café histórico. Foi dia 14 por ser a antiga data em que se celebrava o Dia Internacional do Café, especialmente no Brasil (agora a celebração dá-se a 1 de outubro), mas também porque abril foi o mês em que a Rota dos Cafés com História de Portugal foi lançada em 2014.
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A proposta segue agora para discussão com os grupos parlamentares.

De uma rota de cafés a um Dia Nacional
Vítor Sá Marques cresceu a ver as chávenas a fumegar, o café a moer e os copos altos a brindar. Mas não só. Cresceu também a assistir ao início dos namoros, às discussões entre recém-casados, aos convívios entre amigos e aos rasgos de inspiração dos escritores.
Não o fez em Lisboa, mas sim em Coimbra, no histórico Café Santa Cruz, em tempos um convento, onde ajudava o pai nas férias da escola. Em 2005, assumiu o volante do café da sua infância e começou a aperceber-se da potencialidade daquele espaço.
Das histórias que ali foram vividas e das ligações que foram criadas. Da passagem do tempo. Vítor assistiu ao crescimento de filhos que se tornaram pais, aos pais que viraram avós e aos avós que, um dia, morreram – tudo isto num só espaço.


O fascínio por esse ecossistema tão próprio – o dos cafés – foi crescendo de tal forma que Vítor se propôs a fazer um levantamento de todos os cafés históricos do país. Foi assim que nasceu a Rota dos Cafés com História de Portugal, sobre a qual se publicaram livros como a Rota dos Cafés com História de Portugal, assinado pelo próprio Vítor Sá Marques, e os Cafés Portugueses: Tertúlias e Tradição, com autoria de Samuel Alemão.
Inicialmente com 23 cafés, a rota foi crescendo e hoje engloba 38 cafés, fazendo até parte da Historic Cafe Route, um conjunto de rotas europeias que luta para se ver certificada enquanto rota cultural pelo Conselho da Europa.
Alguns desses cafés podem ser encontrados em cidades como Castelo Branco, Fundão, Horta, Loulé, Tomar, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Portalegre. E estas cidades são especialmente importantes, defende Vítor, pois já é sabido do público geral que Fernando Pessoa escreveu na Brasileira ou que J.K. Rowling sonhou com Harry Potter no Majestic, no Porto.
Mas poucos saberão que António Aleixo escreveu no Calcinha em Loulé, que Eça de Queiroz e Camilo Castelo-Branco passaram pelo Vianna em Braga, que Umberto Eco se demorou nas mesas do Paraíso em Tomar e que Júlio Pomar terá rabiscado no Café Central das Caldas da Rainha. São segredos escondidos de Portugal.




E é esse o grande objetivo da rota: o de pôr estes cafés não só nos mapas turísticos, mas também de incentivar os portugueses a visitá-los nos seus passeios, algo que Vitor sempre fez com as suas filhas.
O passo seguinte é instituir o Dia Nacional do Café Histórico de forma a honrar a História daqueles lugares, mas também a dar-lhes mais visibilidade. E Vítor quer fazê-lo não só através da implementação deste dia, mas também da dinamização de iniciativas, como a criação de um concurso literário associado aos cafés históricos, a publicação de um novo guia dos cafés históricos, a organização de eventos musicais e possivelmente até mesmo de visitas guiadas por estes cafés.
No fundo, a ideia é uma só: “dar-se a conhecer o património cultural dos cafés históricos”, diz Carlos Moura. Preservar a identidade destes lugares e homenageá-los. Aos cafés e a todos aqueles que passaram pelas suas paredes, dos funcionários aos clientes, prestando-se também atenção à resiliência destes espaços que resistiram à turbulência dos tempos.
Por todo o mundo, e sobretudo na Europa, os cafés foram palco das revoluções, dos debates, das conspirações e até mesmo de peripécias inesperadas, como quando Isaac Newton dissecou um golfinho no Grecian Coffee House.
Houve quem os tentasse banir, como aconteceu no século XVII com o rei Carlos II de Inglaterra, mas o povo falou mais alto. Por volta dessa altura, em Oxford, os cafés eram conhecidos como “penny universities” pois, pelo preço de um café, qualquer um podia assistir e participar nas discussões. Ainda hoje estes espaços servem para isso mesmo, mas para muito mais também: são locais de convívio, de reuniões, de encontros familiares e até mesmo de despedidas.
A memória é um bem que só melhora ao ser refrescado.
Revivi aqui o Café Arcada, em Évora, onde nasci.
Bem-haja.