
Quem a via e quem a vê. A Boa Hora. O Tribunal que ganhou nome próprio ao longo dos seus 166 anos de existência no Chiado. Hoje, quem transpuser aquelas portas encerradas, pelas quais muitos passaram, não vai encontrar um tesouro bem guardado, como se poderia esperar. A memória está lá: impregnada na tinta das paredes a lascar, nos azulejos em decomposição e na sala do Tribunal Plenário, onde ecoam as vozes de quem foi preso pela ditadura. Mas são memórias esquecidas.
Há, no entanto, quem queira preservar a História. João Miguel Barros é o advogado e fotógrafo que, com a sua lente, captou a degradação do Tribunal, que fechou em 2009, quando se transferiu para o Campus da Justiça, no Parque das Nações.

João Miguel Barros passou também por aqueles corredores na década de 1980, enquanto advogado estagiário, e agora insurge-se contra a inação perante o abandono de um edifício histórico: lançou, com uma série de personalidades, o manifesto Por uma Boa Hora ao serviço da cidade, que já reuniu o apoio de ex-ministros da Justiça, antigos Procuradores e outras figuras do mundo judiciário. “Pessoas com grande importância estão a dizer para se abrir o espaço à cidade”, diz o advogado.
O Tribunal foi tema da sua revista de fotografia, a Zine Photo. A preto e branco, a destruição surge em cada um dos frames, denunciando aquilo que, aos olhos de Fernando Jorge, “é um crime contra um tribunal criminal da história da democracia e da história judiciária portuguesa”.



Este é um Tribunal especial que remonta ao século XVII, quando ali se fundou um Convento, o Convento da Boa Hora, onde habitaram várias ordens religiosas. Serviria ainda de quartel ao Primeiro Batalhão dos Voluntários do Comércio, de sede de uma das Companhias da Guarda Real de Polícia, até se transformar em 1843 em tribunal.
Agora, está há mais de uma década à espera de uma solução. E João Miguel Barros decidiu finalmente agir.
O Museu do Judiciário
A proposta do Manifesto é honrar o antigo tribunal através da criação de um Museu do Judiciário no espaço onde funcionava o Tribunal Plenário. Mas não só: a ideia seria também lá instalar um centro de indústrias culturais e criativas, com ateliers e residências artísticas, e um centro de incubação de ideias inovadoras para microempresas.
A proposta do Museu do Judiciário não surgiu só agora. Aliás, tem aparecido várias vezes ao longo da história do abandono do edifício: a primeira vez que se falou nele terá sido em 2012, depois de o Ministério da Justiça ter readquirido parte do edifício que a Câmara Municipal conseguira em 2011 da extinta Sociedade Frente e Tejo SA.
O Ministério da Justiça ficou com 8120 m2 do Tribunal e a CML com a restante, que ali instalou uma escola primária e um jardim de infância que leva o nome de Maria Barroso.

O espaço do MJ, até agora, só foi aproveitado para o Departamento de Identificação Civil – que ali continua a funcionar.
Em 2009, António Costa, então Presidente da Câmara de Lisboa, defendia a transformação do espaço num hotel, mas o Ministério da Justiça começou a discutir a instalação de um Centro de Estudos Judiciários e de um Museu do Judiciário. Entretanto, em 2018, anunciava-se que as instalações do Tribunal ficariam afetas ao Tribunal da Relação – mas nada foi feito também.

Porquê? “Falta de dinheiro, falta de empenho, falta de visão”, aponta João Miguel Barros. Mas a passagem do tempo traduz-se em maior degradação. E mais degradação significa mais investimento.
Em 2018, João Miguel Barros escrevia um artigo no Observador, em que questionava mesmo: “O que é preciso fazer para se tomarem decisões e para se agir? Deixar o edifício arder?”.
A memória de um tribunal
A expectativa é que o manifesto tenha resultados – e que seja, de facto, criado um museu. “Aquele espaço tem de ser devolvido à cidade e não pode ser entregue à burocracia jurídica”, afirma o advogado, opondo-se à ideia de o edifício acolher o Tribunal da Relação.
João Correia, advogado e ex-secretário de Estado da Justiça, defendeu isso mesmo quando estava no governo, e mantém-se firme na luta. “Portugal precisa de um espaço onde se dignifique a justiça”.
Que a dignifique não só contando a história dos processos, mas também dos seus protagonistas, sem se limitar a Lisboa. Um museu nacional. A Boa Hora seria o lugar indicado para o fazer, considera João Correia, que viveu ali alguns dos momentos altos da sua carreira: “Tive muitos julgamentos que me entusiasmaram processualmente”.
Dos julgamentos mais mediáticos em que participou recorda os casos dos terrenos do Parque Mayer e da Feira Popular e da EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa). Mas as memórias não são só dele, claro. “Passou por ali a melhor advocacia em grandes processos, grandes debates judiciários”, recorda.


Por aquele tribunal passaram casos como o de Costa Freire, Casa Pia, UGT e Dantas da Cunha. Mas também de personagens como o Capitão Roby, conhecido por ludibriar as suas amantes, ou da Dona Branca, a “banqueira do povo”. Nos dias dos julgamentos mais badalados, o Tribunal parecia “as feiras aos domingos”, conta Fernando Jorge.
Na sala do Tribunal Plenário, deram-se os julgamentos dos presos políticos do Estado Novo, entre eles Mário Soares, Álvaro Cunhal e Mário de Carvalho, um dos arguidos no julgamento de Maria João Lobo, que também assinou o Manifesto e se revê na ideia do museu.
As memórias vivas do Tribunal da Boa Hora
Em 1971, Maria João Lobo era aluna do segundo ano da Faculdade de Direito de Lisboa. Um dia, a PIDE entrou-lhe casa adentro, devassando documentos, livros, fotografias, e prendeu-a. O que se seguiu resume-se em fragmentos de memórias: “celas de isolamento”, “raras visitas de familiares mais próximos, tidas em parlatórios”, “longos interrogatórios”, “tortura de sono”, “ameaças constantes”.
Foi julgada no Tribunal da Boa Hora e condenada a uma pena cuja execução foi suspensa e ainda a 15 anos de proibição do exercício de direitos sociais e políticos. Em 1973, seria suspensa da faculdade por ter estado presa. Só regressaria depois do 25 de Abril de 1974.
Anos mais tarde, Maria João voltou à Boa Hora. Desta vez, numa posição bem diferente: a de Procuradora da República.
Num texto escrito em 2008, recorda o Tribunal Plenário, com as suas filas de cadeiras, ocupadas pelos elementos da PIDE e pelos familiares, aqueles que mais sofriam com o processo, que chegavam com horas de antecedência para assegurar lugar.
Mas recorda também que tudo isso pertence ao passado e que os ideias de “liberdade, igualdade e justiça” que ali a trouxeram afinal se concretizaram.

Hoje, na rua Nova do Almada, no largo Boa Hora, há três portas imponentes, pelas quais Maria João Lobo passou várias vezes enquanto arguida e Procuradora. São as portas do antigo Tribunal da Boa Hora.
Por elas também passou o antigo Presidente do Sindicato de Funcionários Judiciais, Fernando Jorge. Estão hoje fechadas, mas é possível espreitar lá para dentro e ler numa placa dourada: “Em nome de todos os que sofrem liberdade”.
Em 1981, aquelas portas estavam bem abertas e a carreira de Fernando Jorge enquanto funcionário público estava prestes a começar – e podia ter passado por muitos tribunais. Mas Fernando apaixonou-se de tal forma pela Boa Hora que nunca mais ninguém o conseguiu de lá arrancar, nem mesmo com promoções profissionais.
“Sacrifiquei a minha carreira por aquele tribunal”, conta emocionado. Só o abandonou quando não teve outra escolha, deixando para trás aquele que recorda como sendo um lugar “com uma certa aura, uma mística”, ali bem perto do Chiado, numa Lisboa de bulício, e onde todos os funcionários se conheciam e se respeitavam de uma forma que, diz ele, não acontece hoje nos tribunais.
A ideia do Museu de todos
O que se pretende agora é que haja ali um museu, não dos advogados ou dos juízes, mas um museu de História, que permita o contacto das novas gerações de magistrados e juízes com o passado. Nesse museu, como o imagina João Miguel Barros, os processos dos julgamentos seriam digitalizados e trabalhados interativamente.
Onde as opiniões divergem é em relação à instalação dos centros de indústrias culturais e criativas e de incubação de ideias. João Correia acredita que o museu devia prolongar-se por todo o edifício. “A História da justiça é longa, não é só a produção administrativa que importa. É preciso espaço”.
Mas João Miguel Barros vê um grande potencial de exploração comercial no edifício. “Podiam arrendar-se os espaços a artistas e até mesmo construir-se restaurantes, como aconteceu com o restaurante no Centro de Arte Moderna na Gulbenkian”.
Para já, o museu parece ser a solução mais consensual. E o Manifesto conseguiu, nas palavras de João Miguel Barros, o mérito de “agitar a consciência das pessoas”, e recordá-las daquele que era um espaço esquecido no coração de Lisboa. Um edifício que, para Maria João Lobo, é o espaço mais emblemático da justiça portuguesa.

Fernando Jorge lembra-se de ir a um congresso em Troia onde se cruzou com Jorge Sampaio, que o reconheceu e o cumprimentou de imediato. “Tenho o maior respeito pelos funcionários”, ter-lhe-á dito. “Quando estava a estudar, sempre que tinha dúvidas ia falar com os funcionários da Boa Hora. O que eu aprendi naquele tribunal com os escrivães!”.
Foi lugar de aprendizagem – e de justiça. E aquilo que se aprende e se alcança na História de um país é para ser preservado.
Como escrevia Maria João Lobo em 2008: “A memória faz parte da identidade de um povo e a sua preservação é um dever de uma democracia sã, estável e adulta, não podendo nós, quais figuras cegas, surdas e mudas da antecâmara deste Tribunal, sermos também cegos, surdos e mudos aos testemunhos do passado, permitindo assim a sua destruição”.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
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