Ainda no outro dia, em passeio algures pela Madragoa, as ruas naquela desordenação bela, ouvi a minha avó chamar-me. Rouca e pendente, fraca, estoufraca, estoufraca. Aproximei-me do jardim murado de onde ela me chamava, e bastou eu contra o muro, ouvi-la chamando, para compreender que o chamamento era o que só podia ser, uma vez que a minha avó morreu em 2017: o canto de uma galinha-da-índia.
Isto porque na infância, tinha eu dois anos, nomeei a minha avó como galinha-da-índia. O porte um tanto altivo, a mancha da pena qual vestido, o pescoço comprido semelhante, galináceo, e a passada larga. Esta espécie de galinha parecia-me indistinguível da minha avó.
A própria gostou da comparação, com tempo até gostou de mim, e hoje qualquer galinha ma traz à lembrança.
A minha avó era feita de certezas: antigamente, gradeada, a igreja de São Roque tinha melhor aspecto (e eu, só para a contrariar, imaginava um largo vitoriano sujo e pesado); a ventoinha espalha o calor no pino do Verão (e eu ligava-a à socapa); o aquecedor incendiaria a casa em pleno Inverno (e eu forçava o reóstato além do limite); o mais provável era a enciclopédia estar errada, caso a contrariasse (e eu em silêncio).
Julgo que tantas certezas eram feitas de demasiadas dúvidas. Só vacilava quando se via totalmente a descoberto, como as galinhas-da-índia em campo aberto. Aí, dava um voo rápido para dentro de si mesma, que era quando a víamos mais desprotegida, longe dos factos históricos, das línguas que falava, das viagens que fizera, das normas que defendia.
Mas até neste voo rasante de galinha altiva havia uma via-sacra que quase era razão de ser: a discussão. Nunca ninguém tão exímio, tão amigo de bicar, como a minha avó. Arrependo-me de termos discutido epicamente, mas sinto que a alimentei – que lhe dei o reforço de contrariedade que a susteve até aos 102 anos.
Comigo, consigo, com quem fosse: discutia com propriedade de discutir. Ter razão, com ou sem razão, era o princípio, o meio e o fim. Fora educada em cepa igual, já que as suas muitas irmãs, quase todas centenárias, partilhavam com ela o entusiasmo. Era seiva, era vida.
Um dia, apanhei-me sentado num táxi entre a minha avó e uma das irmãs. Erro meu, devia ser evidente que ambas nunca concordariam com o caminho a indicar.
«Repare», disse a minha avó, «a rua mais directa é sem dúvida a Castilho».
«Oiça», disse a irmã, «a rua mais directa é de certeza a António Augusto de Aguiar».
Neste cruzar de indicações, com sobrolho levantado, braços cruzados, e o incómodo mal disfarçado por uma educação formal e à antiga, encararam-se as manas para o combate. Que era temível, rixa de rua, pancada de animal sabido, coisa de felino. A avó defendia a Castilho como um evangelho, a irmã – apertando a bengala – defendia a António Augusto de Aguiar como a própria Bíblia. E estavam dispostas a salgar a terra.
A terra era eu. «E o menino, o que acha?», perguntou a minha avó. E eu respondi como os sensatos: não achava nada de nada, Lisboa era um mistério, todas as ruas levavam onde quiséssemos que elas levassem, o oposto e o seu contrário estavam certos. Entre as duas, dispostas a apanharem-me em falso, a não resposta era a resposta certa.
Sabia que Lisboa real nunca seria o caminho certo para a minha avó. Lisboa era um caminho moldado pelas suas mãos, que mal pegaram num volante. Mas que sabiam fazer-se à estrada como quem gosta de comer mas nunca cozinhou.
E seguíamos, eu em troca de olhares com o taxista, cuja testa suava um suor meu bem conhecido – o suor da perentoriedade Reis –, quando percebi que algo se dera. Se alterara. Quase Lisboa saindo da cama, despertada, a reconfigurar-se.
Sem que nenhuma das manas reparasse, agora a minha avó defendia que o melhor atalho era a rua António Augusto de Aguiar, e a irmã que o atalho melhor era a rua Castilho. E uma e outra apertaram as bengalas cada vez mais afincadamente, prontas a proteger com pauladas verbais o percurso que sempre haviam defendido.
Chegámos ao destino, algures numa cidade sobrevivente, sem ossos de velha quebrados – ou ossos de neto deslocados –, mas foi tangente, e graças à condução desenfreada do taxista, que não meteu pela Castilho nem pela António Augusto de Aguiar.
Entretanto passaram uns anos, o mesmo que várias vidas para quem, como a minha avó, fazia um século. Morreu a irmã, morreu ela, morreram de fila-indiana.
Hoje, quando ganho discussões supérfluas sobre o trânstio, sinto que as ganho à minha avó, que desistiu de ter razão. E sempre que uma galinha-da-índia dá aquele berro rouco, estoufracado, julgo que a ouço chamando lá do sítio das coisas perdidas.

Afonso Reis Cabral
Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.