As centenas de escavações espalhadas pelo país, motivadas pelas obras de empreendimentos turísticos, abriram mercado para os arqueólogos e outros profissionais, com salários que podem alcançar 2.5 mil euros. Foto: Rita Ansone.

O corredor estreito desce numa espiral rumo à escuridão. Uma jornada que exige cuidado do pequeno grupo que caminha em fila indiana guiado por um arqueólogo, a mão erguida em alerta ao próximo passo, para que não se tropece numa pedra ou num esqueleto humano com centenas ou milhares de anos.

A cena poderia dar-se no coração de uma floresta, com o pequeno grupo ameaçado pelos dardos venenosos das zarabatanas dos hovitos e pela imensa pedra que desliza como num bowling gigante para os sepultar numa caverna. No entanto, tudo se passa em plena Baixa de Lisboa, na selva de pedra, por entre peões, carros e turistas.

Uma equipa de arqueólogos e antropólogos debruça-se sobre o cemitério que surgiu nas escavações em pleno coração do Rossio. Foto: Rita Ansone

O corredor estreito são as escadas ainda em construção do futuro hotel que abrirá portas no Rossio e a jornada, que leva a reportagem por entre estruturas de betão e aço, termina no jardim das ruínas do antigo Convento de São Domingos, onde uma equipa de especialistas se debruça no terreno, atenta às relíquias do passado lisboeta.

A vida de um arqueólogo em Portugal pode até passar distante das aventuras de Indiana Jones, mas, se longe dos ecrãs a profissão carece de glamour, isso não é sinónimo de monotonia. Pois mesmo que não haja ídolos e arcas de ouro a serem descobertos, Lisboa ainda guarda sob os seus pés verdadeiros tesouros arqueológicos.

O mistério das ossadas infantis

Por entre a escavação no antigo convento surge um terreno cercado por betão e por operários apressados, onde uma dezena de arqueólogos e antropólogos debruçados sobre o solo paciente e cuidadosamente escavam com pincéis os vestígios de pequenos esqueletos. Até agora, foram encontradas cerca de 3,8 mil ossadas de crianças sepultadas onde estava o antigo jardim do prédio.

Os milhares de esqueletos de crianças, a maioria com menos de um ano de idade, apontam para um tempo de pobreza aguda, numa cidade ainda em reconstrução.

A descoberta das ossadas infantis ainda é um mistério a ser revelado, mas já se sabe ser um achado importante para contar a história de Lisboa. “É o retrato de janela arqueológica entre 1775 e 1834”, diz a arqueóloga com doutoramento em antropologia, Lucy Evangelista, enquanto cataloga falanges, falangetas e outros ossinhos numa bandeja de plástico.

A “janela” aberta para o passado engloba o período logo após o Grande Terramoto, passa pelas invasões francesas e vai até a proibição de enterros em propriedades religiosas. Os milhares de esqueletos de crianças, a maioria com menos de um ano de idade, apontam para um tempo de pobreza aguda, numa cidade ainda em reconstrução.

“Ao contrário do que se pode precipitadamente pensar, não se trata dos filhos das freiras. Provavelmente, são bebés e crianças que não resistiram por terem nascido desnutridas ou com outras doenças que afligiam a população da época”, explica Lucy. A tese é reforçada por, no passado, o local situar-se nos limites da maternidade de Santa Bárbara.

A arqueóloga Lucy Evangelista cataloga os pequenos ossos encontrados na escavação: missão de dar uma cara e um nome ao passado. Foto: Rita Ansone

A arqueóloga ressalta ainda que as crianças foram sepultadas envoltas em mortalhas presas a alfinetes, o que denota um cuidado com os pequenos corpos e ainda descarta a hipótese de o terreno ser uma espécie de vala comum.

“A disposição dispersas das ossadas apenas reflete a cultura de sepultamento da época. Estamos a falar de um tempo anterior à existência dos cemitérios e não se pode exigir o cumprimento de uma tradição antes mesmo dela ser inventada”, contextualiza.

Para resolver o mistério das milhares de ossadas infantis, foi criado um grupo multidisciplinar de trabalho. “Mesmo que seja impossível identificar cada um dos corpos, é preciso contar a história deles. Uma das nossas missões é dar uma cara e um nome ao passado”, explica Lucy.

Quem nunca sonhou ser arqueólogo?

Antes das obras neste prédio, o sítio arqueológico descansava em paz sob os escombros da antiga loja de utensílios para o lar e hotelaria Braz & Braz, que começou a funcionar num pequeno espaço contíguo ao Convento de São Domingos, em 1777 e, após o encerramento das atividades religiosas em 1834, se expandiu até ocupar praticamente todo o prédio.

“Lembro-me de vir ao Braz & Braz com o meu pai. Não deixa de ser curioso voltar anos depois para desvendar o que há por baixo do piso e das prateleiras”, diz Filipe, 33 anos, licenciado em arqueologia pela Universidade Nova de Lisboa, em 2009, um dos profissionais da Era-Arqueologia no sítio arqueológico perto do coração do Rossio.

Filipe conta que sempre gostou de história, mas decidiu-se pela licenciatura em arqueologia por “ter uma saída profissional mais prática” do que a sedentária vida de historiador. O jovem arqueólogo diz até hoje ouvir, quando vai para os copos com os amigos, um “uau!” dos presentes, ao responder sobre o que faz para ganhar a vida.

Os arqueólogos Filipe Oliveira e Inês Mendes da Silva: sem Indiana Jones ou Lara Croft, mas ainda assim uma profissão cool. Foto: Rita Ansone

“Toda a gente acha o máximo”, conta, sem esconder um certo orgulho, enquanto nos guia pelo labirinto costurado pelos imensos arcos do antigo convento, que agora ressurgem por detrás das paredes da Braz & Braz. “Geralmente, as pessoas confessam que, pelo menos uma vez na vida, pensaram em ser arqueólogos”, diz.

Para aqueles que ainda pensam no assunto, é bom saber que a arqueologia é uma profissão em alta em Lisboa e que costuma pagar uma remuneração maior do que a média salarial de Portugal. Principalmente, após o recente boom imobiliário que transformou a cidade num imenso estaleiro de obras… e arqueológico.

Gestora de projetos da Era-Arqueologia, a arqueóloga Inês Mendes da Silva revela que, na última década, o quadro de trabalhadores da empresa praticamente triplicou. “Em 2011, contávamos com 25. Hoje somos 72 e continuamos sempre à procura de novos talentos”, garante.

Empresas como a Era-Arqueologia triplicaram o número de arqueólogos nos quadros em apenas uma década. Foto: Rita Ansone

Esta é das maiores empresas do ramo em Portugal, responsável por 285 projetos ativos no continente e nas ilhas. Em Lisboa, são cerca de 115, a maioria a operar em obras em edifícios históricos que darão lugar a hotéis e outros empreendimentos ligados ao turismo.

O empreendedor sabe que ao escavar vai tropeçar em algo. O arqueólogo é justamente o profissional que pode evitar que ele tenha surpresas”

Inês Mendes Silva, arqueóloga

A obrigatoriedade de o promotor de uma obra pública ou privada suportar a investigação arqueológica está prevista na Lei de Bases do Património Cultural (Lei nº 107/2001), que nos artigos 78 e 79 impõe o prazo de 48 horas para o anúncio de achados arqueológicos e ressalta ainda que os custos integralmente financiados pelo executor da mesma.

Para cumprir a lei, portanto, e certificar-se se aquela pedrinha com formato estranho entre os entulhos é ou não uma relíquia – e no caso afirmativo, informar as autoridades a tempo – é necessário que a obra tenha uma equipa de arqueólogos em campo.

“Geralmente, o arqueólogo entra na obra com os engenheiros e demais operários. Em 80 por cento das vezes, faz o seu trabalho, sai e as coisas seguem o seu destino”, explica Inês, salvaguardando que a imagem do profissional como um empecilho para o andamento do cronograma já faz parte do passado.

“Hoje, o empreendedor tem a certeza que ao escavar vai tropeçar em algo de valor histórico. O arqueólogo é justamente o profissional que pode evitar que ele tenha surpresas e também prevenir que a obra seja bloqueada”, continua a experiente profissional de 45 anos, formada pela Universidade de Lisboa.

A imensa responsabilidade do arqueólogo na execução de uma obra geralmente orçada em milhões de euros pode se refletir na remuneração. Segundo Inês, a média salarial para o profissional em início de carreira numa destas empresas é de 1100 euros e rapidamente pode chegar aos 2500.

Estas informações são disputadas pelo Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STARQ), que embora reconheça não haver um estudo das condições do arqueólogos em Portugal desde 2014, garante que a profissão também tem sofrido com a precariedade que assola outras áreas do mercado de trabalho.

Segundo o STARQ, grande parte dos arqueólogos trabalha em “regime liberal” e, na esmagadora maioria dos casos, em situação de recibos verdes, ganhando entre 50 e 60 euros diários. O sindicato também estima que a precariedade leve 20 por cento dos arqueólogos a mudarem de profissão após cinco anos no terreno.

A licenciatura pode ser feita em praticamente todo o país e as mais procuradas estão nas universidades de Lisboa, Nova de Lisboa, de Coimbra, do Porto, do Algarve, de Évora e do Minho. “Nem sempre se vai ter uma aventura à Indiana Jones ou topar com uma giríssima Lara Croft, mas mesmo assim, ser arqueólogo é fixe”, resume Inês.

A tumba do inquisidor geral

Ao contrário do chicote de Indiana Jones e das pistolas de Lara Croft, longe dos ecrãs as ferramentas utilizadas pelo arqueólogo podem ser bem mais simples de manusear. “Como se pode ver, passamos um bom tempo com um pincel ou uma pinça à mão”, diz Inês, apontando para as dezenas de profissionais debruçados sobre as ossadas.

A regra, entretanto, tem exceções. “Algumas vezes, é preciso conduzir uma escavadora”, relata Filipe. “E com todo cuidado, pois se para os engenheiros uma escavação de um metro não representa nada, para nós, cinco centímetros de terreno podem guardar imensas riquezas”, completa.

Das ruínas da Sala de Capítulo surgiu a tumba de chumbo do Cardeal Cunha, inquisidor dos tempos do Marquês de Pombal. Foto: Rita Ansone

As dimensões da escavação de um sítio arqueológico são determinadas pelo avançar da obra. No Convento de São Domingos, já vai em quase dois metros de profundidade, o que explica os achados relativos à Lisboa católica, logo após o Terramoto de 1775. “Se cavássemos mais, provavelmente encontraríamos vestígios da ocupação árabe e, mais ainda, romana ou da Idade do Ferro. Mas não chegaremos a tanto”, explica Inês.

Às vezes, nem é preciso cavar muito. Filipe conta que, literalmente, tropeçou numa das últimas descobertas arqueológicas enquanto os operários trabalhavam na antiga Sala do Capítulo do Convento de São Domingos. “A poucos centímetros do piso, encontrámos uma campa funerária, que nos levou a uma tumba”, conta.  

“Foram precisos seis homens para erguê-la. O chumbo também é capaz de preservar os restos mortais por mais tempo e pode surgir algo interessante”

Filipe Oliveira, arqueólogo

A obra no antigo armazém, à parte dos milhares de ossadas infantis, revelou cerca 800 tumbas de adultos. E uma especial. “Pertencia ao cardeal José Cosme da Cunha, o inquisidor geral do Conselho Geral do Santo Ofício em Portugal nos tempos do Marquês de Pombal”, revela Filipe.

A identificação também não foi um problema. A tumba trazia uma placa com as indicações do nome, títulos e datas do seu ocupante, uma figura considerada polémica e que colecionou vários inimigos, para além dos martirizados pela Inquisição.

Antropóloga usa um pincel na delicada busca de vestígios do passado de Lisboa. Foto: Rita Ansone

“Devido ao peso, foram precisos seis homens para erguê-la. O chumbo também é capaz de preservar os restos mortais por mais tempo e pode ser o indício de que possa surgir algo interessante da descoberta. Atualmente, a tumba encontra-se no Centro de Arqueologia de Lisboa para análise”, conta o arqueólogo.

O convívio constante entre esqueletos e tumbas é um pormenor da profissão que propicia uma visão mais científica e menos metafísica da morte. Ou não. “Já estou decidida: quero ser cremada”, confessa Inês, ainda diante das ossadas no terreno do antigo cemitério sobre os escombros da Braz & Braz. “Para que depois de morta não apareça um coleguinha com um pincel a fazer cócegas nos meus pés.”


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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7 Comentários

  1. A grande maioria dos arqueólogos do contexto empresarial de Lisboa trabalha a recibos verdes a troco de valores que no fim de contas roçam o smn. Trabalham assim durante anos a fio na esperança de um dia conseguirem um contrato de trabalho com valores irrisórios onde a progressão na carreira simplesmente não existe. A afirmação “A média salarial para o profissional em início de carreira é de 1100 euros e rapidamente pode chegar aos 2500, o que talvez explique, entre tantas greves, nunca se ter visto uma da categoria.” é completamente falsa e mascara a realidade ultra precária que muitos destes trabalhadores enfrentam. Que pouca vergonha

  2. “A média salarial para o profissional em início de carreira é de 1100 euros e rapidamente pode chegar aos 2500, o que talvez explique, entre tantas greves, nunca se ter visto uma da categoria.” Que afirmações vergonhosas e infundadas! Tenho colegas que trabalham há anos em Arqueologia das obras em Lisboa, curiosamente para a empresa em questão, e ainda hoje não chegam aos 1000 euros. Trabalham nas obras em Lisboa por amor à camisola e porque não têm outra alternativa. Quem tem alternativas sai à primeira oportunidade desse mundo negro. Greves? Desde quando é que os precários fazem greves? Que tal fazerem uma reportagem séria sobre a precariedade dos arqueólogos, em vez de publicarem publicidade enganosa de uma empresa dedicada a explorar os seus trabalhadores?

  3. Caros AF e JP, antes de mais nada, obrigado pela vossa mensagem. As informações serão averiguadas. Abraços e um bom ano.

  4. Portugal está cheio de ‘talentos’, sem outra saída nem defesa possível. A exploração no sector da arqueologia é igual ou superior a qualquer outro sector que sorve malta ‘jovem’ voluntariosa que depois colhem estágios, salários mínimos ou o olho da rua, garantindo obediência ao rápido e lucrativo para o angariador de ‘talentos’. Isto põe em risco o património, a formação e a manutenção no activo de bons profissionais ou investigadores. É vantajoso para empresas com modelos de visão parca, proliferação de cursos universitários cada vez mais voltados para servir estes mesmos interesses, sem profundidade nem exigência.
    O artigo dá uma ideia jocosa da profissão, baseada em falsas realidades como os salários elevados. Como se fosse tudo meio a fingir. Arqueologia como um capricho-empecilho dispendioso. Pessoas que brincam aos indianas jones e ainda levam salários elevados para casa. É totalmente o oposto.
    A fingir é o país, servindo fantasias aos seus leitores, pouco esclarecidos também devido ao jornalismo actualmente dedicado ao sensacionalismo, quase exclusivamente. Fraca investigação e frases bombásticas para fazer o leitor dançar a música da revolta de uns contra supostos outros. Terrível. Fora isso excelente artigo. Parabéns.

  5. Bom dia,
    Tomei conhecimento do vosso trabalho pelo artigo publicado no Google.
    Estou a fazer um trabalho para uma UFCD do curso de TST, e gostava de falar convosco ou tricar impressões sobre os riscos decorrentes, medidas de segurança, relatórios de levantamento. Deixo o meu contacto.
    Muito obrigad

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