Se no relvado Portugal tem enfrentado dificuldades para conquistar o mundo, há uma outra realidade onde a habilidade portuguesa com a bola rapidamente está a ganhar o planeta: a realidade aumentada.
Tem ADN lisboeta a criativa ideia de unir a paixão pelas tradicionais cadernetas de cromos com o fascínio das novas tecnologias, uma invenção com sotaque português batizada no idioma do velho desporto bretão de My Lads.
O esquema de jogo é simples. Parte de uma miniatura em resina de um jogador vestida com uma camisola do Benfica, FC Porto, Sporting e da seleção de Portugal, que abre uma aplicação no telemóvel e oferece experiências aos adeptos, como uma visita virtual ao quarto de hotel onde Cristiano Ronaldo se concentra para os jogos à possibilidade de tirar uma selfie ao lado de Eusébio, por exemplo.

“A intenção é aproximar mais e mais o adepto da intimidade do clube e dos jogadores.”
Hugo Matinho.
Para além dos dribles digitais, a diferença em relação aos velhos cromos é que o My Lads estimula a coleção a partir dos equipamentos e não apenas focada nos jogadores, apostando no hábito dos adeptos em adquirirem as camisolas dos clubes, com a vantagem de as miniaturas custarem bem menos que os uniformes, entre 18,90 e 22,90 euros.
À frente da startup está o trio de ataque Ivan Braz, Dulce Guarda e Hugo Matinho, uma equipa que em 2019 entrou no relvado português dos negócios digitais e, dois anos depois, prepara-se para disputar partidas fora de casa, em Espanha, no Brasil e em outros países da Europa e da América Latina. E como tudo no mundo do futebol se mede em zeros à direita, a expetativa é que o faturamento alcance a casa dos 10 milhões de euros em 2022.

Seguindo a mesma lógica futebolística, os bons resultados já em 2021 refletiram-se nas contratações de reforços. O trio inicial, que em 2019 não formava uma equipa de futsal, já era uma dezena no início de 2021 e terminará a época com o dobro, 20 pessoas. A tendência é que a partida de confraternização de fim de ano da empresa, em 2022, já conte com dois onzes completos, com direito a suplentes.

A ampliação do plantel provocou a mudança de casa. As modestas instalações no Lumiar, onde a ideia foi cultivada e cresceu, ficaram para trás. Com a promoção para a liga dos grandes, o My Lads agora recebe os jogos numa área de 500 metros quadrados, metade de um campo de futebol, no Saldanha, onde os criativos trabalham por entre coloridas camisolas de clubes e as consolas de PlayStation.
Uma experiência com potencial ilimitado
A realidade ampliada aliada aos jogos não é propriamente uma novidade e provavelmente muitos pais já viram os filhos a “caçarem Pokémons” pelas divisões da casa, com o telemóvel em punho. A lógica é a mesma, com a diferença de que agora serão também os pais a empunharem o smartphone, caminhando pela sala enquanto visitam os balneários ou a sala de troféus do clube do coração.

Uma tecnologia que permite interações praticamente ilimitadas. “A intenção é aproximar mais e mais o adepto da intimidade do clube e dos jogadores, como apanhar boleia no autocarro da equipa rumo ao estádio”, conta o diretor tecnológico Hugo Matinho. “As visitas ao balneário, à sala de troféus e ao relvado podem permitir que fãs de outros lugares do mundo realizem o sonho de um tour pelo estádio.”
“Estamos agora a testar o uso da voz dos jogadores”, adianta Hugo, ainda sem detalhar se a tecnologia permitiria ao fã travar breves diálogos com o ídolo ou ser despertado por um potente grito de Coates. Há também um especial interesse na nova modalidade de negócio patrocinada por outras iniciativas virtuais, como o Metaverse, do Facebook.
“Por enquanto, o My Lads oferece um leque de experiências de que os fãs usufruem individualmente. O que outras realidades tecnológicas como o Metaverse permitirão é partilhar essas experiências com outras pessoas. E assim, dois adeptos, pai e filho, por exemplo, poderão visitar ao mesmo tempo um determinado estádio, mesmo ambos estando em lugares distintos do planeta”, explica Hugo.

A tecnologia utilizada reduz ainda as hipóteses de o My Lads ser “pirateado”, um pesadelo para os fabricantes de souvenirs e de camisolas com as marcas das equipas. “A miniatura até corre um certo risco de imitação, mas utilizar uma versão pirateada para emular a experiência da realidade ampliada através da aplicação é praticamente impossível”, garante Hugo.
A dificuldade de se driblar a burocracia
O que a tecnologia ainda não conseguiu driblar foi a burocracia entre federações, clubes, jogadores e patrocinadores. “Um exemplo são os direitos de imagem dos atletas, que podem diferir em países como Portugal e Itália. Se a federação portuguesa é detentora deles, a italiana não, o que nos obriga a negociar de forma isolada em cada cenário”, explica Dulce Guarda, responsável pela expansão de negócios.

O desafio repete-se em mercados como o Brasil e o México, conhecidos pelas dimensões no número de adeptos e pelo tamanho da paixão desses pelas suas equipas, mas também pela difícil relação com os departamentos de marketing das federações e dos clubes. E pode tirar a equipa de campo quem pensa que em Portugal também não se marca autogolos no campeonato da burocracia.
Ao contrário do Benfica, que garantiu os direitos do já citado Eusébio e também dos ex-jogadores Pablo Aimar, Saviola e Jonas, o Sporting não se deu ao mesmo trabalho com as suas joias mais recentes. “É por isso que não há o My Lads de Cristiano Ronaldo com o equipamento sportinguista, apenas da seleção”, explica Dulce.
Se serve de consolo, os adeptos leoninos têm à disposição cada um dos 5 Violinos – Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano – além dos ex-atletas Bruno Fernandes e Mathieu. Assim como Ronaldo, o guarda-redes Rui Patrício surge apenas ao serviço da equipa das Quinas.

A partir de janeiro, o trio de ferro estará completo, quando entrar no relvado os lads com as camisolas do FC Porto.
Realidade aumentada, mas nem tanto
Foi para dar um túnel entre as pernas da burocracia que o My Lads se afastou ligeiramente da caderneta de cromos e não se concentra só na figura dos jogadores, mas também nos equipamentos. O conceito, portanto, é de ser um produto “colecionável, como as camisolas dos clubes”, explica Hugo Martinho. Assim, o adepto pode colecionar tanto a miniatura de João Félix na seleção como, em breve, no Atlético Madrid.

A experiência funciona também como uma máquina do tempo para os colecionadores. Um exemplo são as séries da seleção portuguesa, que abrangem tanto as camisolas atuais como as da conquista do Euro, em 2016, e alguns equipamentos alternativos. A viagem ao passado pode retroceder aos anos 1960, no caso da miniatura de Eusébio trajando a camisola do Benfica campeão europeu na época 61-62.
A estratégia de investir no equipamento também permitiu reduzir os custos de produção, já que as miniaturas não têm rosto. “Fabricar cada modelo com a face dos jogadores iria elevar sensivelmente o preço final do produto e não é essa a nossa intenção”, explica Dulce Guarda.
“E ainda correríamos o risco de não alcançarmos a reprodução perfeita do perfil do atleta, como ocorreu com a estátua de Ronaldo na Madeira”, ressalta Hugo, reconhecendo em tom de brincadeira que até mesmo a realidade aumentada tem os seus limites.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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