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— Boa tarde.
— Que tal?
— Sente-se lá.
— Obrigada.
— Então e o seu nome?
— Ana Bárbara.
— Muito bem. E que pronomes usa?
— Que pronomes uso?
— Sim. Que pronomes usa no dia-a-dia?
— Eu, tu, ele, nós, vós, eles.
— Engraçadinha. Mas quando se refere a si, o que usa?
— Eu.
— Mais uma vez, engraçadinha. Quando alguém se refere a si, o que quer que diga?
— Tu. Se quiser manter a distância, “Senhora doutora”, mas é improvável.
— Então, a terceira pessoa é ela, é isso?
— Sou muito conservadora: para mim três é demais, seja ele ou ela.
— Está a gozar comigo?
— Sim. E você?
— Eu não.
— É pena.
— É pena?
— Pois.
— Mas como assim, é pena? Preferia que estivesse a gozar?
— Seria mais compreensível.
— Estou a perceber o estilo. Você não aceita outras identidades de género, é isso?
— Eu?
— Você.
— Mas tudo isso por causa do meu nome?
— Dos pronomes.
— Esses são os mesmos seis para todos.
— Mas referia-me a si.
— Olhe, esqueça, então. Já não me chamo Ana Bárbara.
— Sente-se mais confortável com outro nome, é isso?
— Sim.
— Qual é?
— Pedrosa.
— Por ser mais neutro?
— Não, só mais bonito.
— E que pronome prefere?
— Eles.
— Então quer que a trate por eles?
— Trate-me por tu.
— Queres que te trate por eles?
— Não, trata-me por tu.
— Estás armada em engraçada?
— Sim.
— E achas que resulta?
— Não.
— Lamento muito esta atitude, Ana Bárbara.
— Que ultraje.
— Ultraje? Estás a usar um tom irónico.
— Ultraje porque me chamas Ana Bárbara. Ainda agora disse que preferia Pedrosa.
— Desculpa, então.
— Vamos ver.
— Por mim, não há problema. Fica Pedrosa.
— Muito obrigada.
— Fica bem assim?
— Claro, só há um problema.
— Qual?
— Perdemos cinco minutos só para eu dizer o meu nome. Tenho de tirar a semana para o resto da conversa? Combinei jantar depois de amanhã com os meus pais.
— Não, do mais polémico já tratámos. Fala-me do teu percurso profissional.
— Olhe, nem bom nem mau.
— Equilibrado?
— Médio.
— E hobbies?
— Nem por isso.
— Algum que se destaque?
— Ler.
— O quê?
— Livros.
— De que tipo?
— Tolstói, Paulo Coelho, por aí.
— Qual é a sua opinião sobre a indústria livreira actual?
— Uns dias sim, outros não.
— Já pensou em trabalhar numa livraria?
— Eu, numa livraria, é raro pensar em trabalhar.
— Aposto que tem muitas estantes em casa.
— Pois.
— O problema é montá-las, não é?
— Nunca se queixaram.
— Como?
— Não me faça falar.
— Você que diz?
— Não seja malcriada.
— Não a entendo.
— Já se esqueceu do meu pronome.
— Tratei-a mal?
— Por você.
— Por mim?
— Não, por você.
— Por mim o quê?
— Por si nada.
— Você é insuportável.
— Tu também.
— Não sei se teremos aqui alguma compatibilidade profissional.
— É natural, ainda nem falámos de trabalho.
— Por este andar, nem vamos falar.
— O ideal é tratarmos do acessório primeiro.
— Qual acessório?
— O que quiser. Cachecóis, unhas postiças, tanto faz.
— Não a percebo.
— Pois. E condições de trabalho?
— Ah, isso depende.
— De quê?
— De como se sentir mais confortável.
— Tipo trabalhar pouco e ganhar bem?
— Não.
— Então?
— De se sentir confortável num ambiente não-cis.
— Como?
— Pois, é isso.
— Isso o quê?
— Já está a armar problemas, estou a ver.
— Eu?
— Pois é.
— Eu só queria saber o salário.
— Ah, isso é igual para todos.
— Mas bate em quanto?
— Depende.
— Para mim, é a única coisa que interessa.
— A prioridade não é um ambiente de trabalho inclusivo?
— Não, é um ambiente de trabalho que não me inclua demasiado.
— Sente algum entrave com algum grupo específico?
— Sim.
— Desabafe.
— Não é fácil.
— Diga lá.
— Não leva a mal?
— Claro que não.
— Sinto.
— Qual?
— O dos colegas de trabalho.
— Sente que é difícil integrar-se com os colegas?
— Pelo contrário, queria integrar-me menos.
— Tem algum desconforto social?
— Não, é só preguiça.
— Mas é alguma discriminação?
— Não, só não estou para os aturar.
— Mas ainda nem os conhece.
— Veja lá, e já estou farta.
— Então o que fazemos?
— Tem alguma vaga em que não seja preciso falar com ninguém?
— A empresa oferece aulas de ioga, o silêncio é importante.
— Então cale-se um bocado, se faz favor.
— Está a ser muito ofensiva.
— Não tenho culpa.
— Eu é que não.
— Olhe que sim. Você é que disse que o silêncio era importante.
— Sim, integrado nas actividades da empresa.
— E fala tanto para dizer o quão bom é estar calada?
— As coisas não existem sem contexto.
— Ou seja, é uma empresa de treta e patoá.
— Como é que se atreve?
— Com atrevimento.
— Desculpe, mas acho que aqui não há caminho.
— Tem razão. Já agora, qual é o salário?

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
Parece-me bastante problemática a iminência transfóbica desta crónica.
Primeiramente, situando, não vivemos num país em que a pessoa que nos entrevista para um emprego tem o cuidado de nos fazer sentir mais comodes com o nosso género perguntando-nos qual o pronome que desejamos ser tratades. Se assim fosse seria uma vitoria alcançada para tantes de nós que nos sentimos oprimides pelo género que nos foi designado à nascença. O contexto laboral em portugal mantém-se patriarcal, logo, binário! É justamente no trabalho onde tantes de nós, para o manter (imposição capitalista para a sobrevivência) somos obrigades a simular identidades cisnormativas | binárias.
A “brincadeira” desenvolvida com o tema das identidades de género e o resultado das suas reflexões e lutas posta em práctica no respeito pelo direito à escolha de género na linguagem, mais não faz do que enunciar de que é feito o púlpito cis. um aglomerado básico (pseudo-entrópico) de palavras auto-indulgentes com o seu privilégio, sendo um exercício típico do bacoquismo de uma determinada portugalidade – tornar aquilo que não compreende nem quer compreender num objecto de comicidade-sarcasmo disciplinário – ausente da noção da multiplicidade de vivências para além do sistema sexo-género normativo, alheio a reflexões actualizadas sobre as experiências vitais que atravessam as pessoas de géneros não-normativos|binários, de diferentes racializações, classes, corporalidades… apenas mencionando, mas não desenvolvendo, outros tópicos problemáticos presentes nesta crónica. Provavelmente o redutor desta narrativa, face à diversidade de âmbitos que suscitaria o tema “entrevista de emprego” reflecte apenas o privilégio contextual laboral da autora independente da leviandade criativa.
Provavelmente a autora ainda não teve tempo para perceber que ser blásé com a opressão alheia é oprimir.
Tantas probabilidades e quanta facilidade de regurgitação de recorte reaccionário ou devo dizer conservador da santa ordem do cistema sexo-género.
Teria todo o gosto em listar-lhe os seus equívocos, mas não enceto diálogos com anónimos.
Cumprimentos,
Ana Bárbara Pedrosa