Há uns anos, depois de ter decidido que a ração de cão não era a melhor dieta para mim, busquei em Campo de Ourique quem me resolvesse o problema da fome. E como cão fui, farejando, como cão acabei recebido e tolerado no take-away de Fátima, a quem chamavam Dona Mar.

As cuvetes de cinco euros que eu dividia em três refeições não me resolviam a fome. O mal é não a saciar com comida. Nisso, pareço-me muito com a restante humanidade, cujas mãos foram inventadas para mais do que colhermos apenas o fruto da árvore e o bife da vaca. Claro que o pão nos falta a todo o dia. Sempre que vejo alguém verdadeiramente saciado, desconfio tratar-se de um santo ou de um imbecil.

«Você alimente-se», era Fátima atrás do balcão a dar-me conselhos junto com a cuvete. «Você leve mais», ela a insistir. Mas eu estava a escrever um livro e sentia no estômago o aperto da penitência, como se a fome fosse consequência da escrita. Fátima preocupava-se comigo, ela lá no seu avental lasso, ela lá nos suspiros com que agitava as batatas fritas.

As mulheres velhas que frequentavam o take-away (mais magras do que eu, mais a precisar de quem lhes saciasse a fome muito antiga) mal reparavam em Fátima. Mas eu sabia: a mais esfomeada era ela, e comer da sua mão lembrava um roubo.

Na parede atrás do balcão havia quadros de mar ao estilo Menino da Lágrima. Mares de menino que chorou de mais. A condizer com o apelido de Fátima, que soava a palavra demasiado oceânica e grande para uma única pessoa.

E logo ela, pequena no avental, as mãos enormes a entregarem as cuvetes, também a afagarem o Chihuahua que lhe mordia os dedos. O bicho obrigava-a a cobrir-se de pensos que se tornavam gordurosos, com odor a escalopes bem passados para quem os cheirasse de perto. Mas Fátima não tinha sequer quem os tocasse.

Uma noite, decidi jantar ali mesmo, ao pé do Chihuahua, frente aos quadros de mar, e esperei até que a última cliente saísse. Pedi dose e meia de almôndegas com massa, acrescentei uma lata de Coca-Cola, arrisquei a mousse de chocolate.

«Hoje esmerou-se», disse-me Fátima, já sentada ao pé de mim. «Até dá gosto.» O Chihuahua saltara-lhe para o colo, como a dizer quem lhe morde os dedos sou eu.

Só que eu também queria a minha mordidela: «É verdade, Fátima, porque é que a tratam por Dona Mar?» Ela enxotou o cão, alisou o avental e levantou-se para logo desistir. Voltou a sentar-se. «Eu conto, se não te atrapalhar o comer.»

«Janto melhor consigo», respondi-lhe.

Fátima apoiou o queixo na mão num gesto de mulher bonita e continuou: «Eu agora ando solteira, mas uma vez não foi assim.» Fiz as contas – uma vez não solteira, cinquenta anos de solidão. «Eu digo-te. Foi assim, ele chamava-se Roberto e trabalhava no talho da Ferreira Borges. Faz muitos anos, uma vida. E eu passei a ir ao talho sem comprar nada. Ele percebeu.»

O take-away ocupava-se com a presença dela, que era sombra lançada por uma luz antiga. O cão desaparecera. «Acho que nos percebemos um ao outro, dito de outra maneira. Às tantas, no talho com o patrão já não era o melhor sítio. Não se fala de amor no meio de enchidos. Combinámos.»

Combinaram: foram de carro à outra banda, onde ele lhe mostrou um recanto do Meco para fazerem um piquenique em paz. Em paz era também o pôr-do-sol e a mão de sal que a rebentação por vezes nos atira.

«Nem precisámos de falar. Tínhamos bebido. Peguei-lhe na mão e fomos passear. Não andava por ali ninguém. E então, ouve lá, tu sabes como são as coisas, as mulheres e os homens. A areia entrava-se-nos mas nós nem sentíamos. Aquilo foi de tal maneira, com as ondas a chegarem-nos aos pés, às pernas, que eu me sentia mudada. E também que nada mudaria.»

O cão voltou, arregaçou-me os dentes, Fátima deu-lhe uma sapatada na nuca. «E depois?», perguntei. Depois, o mesmo de sempre.

«Então ele, eu sei lá. No dia seguinte deu o sumiço. Nada dele no talho, nem na Ferreira Borges, nem em Lisboa. Voltou para a terra, ou o raio. Nunca mais o vi. Mas decidi mudar o nome. Quis que me tratassem por Mar, Fátima Mar. Agora a idade deu-me o dona. Mas ser mar é para mim lembrança daquele momento.»

No frio, as cuvetes preparadas para o dia seguinte. Doses de arroz árabe, grão-de-bico, chili com carne, talvez algumas sobremesas – da mão de Fátima para a mão dos clientes, daí para a boca, e tudo a saber a fome.


Afonso Reis Cabral

Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.

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