Abrando o táxi, junto ao passeio, moderando o chiar dos travões sem óleo com uma pressão leve de embraiagem. Já os topo ao longe, as malas a tiracolo, as meias berrantes expostas pelas bainhas curtas, e dou-me ao luxo de me mostrar distraído. Paro à distância e, pelo retrovisor, sigo-lhes os movimentos cambaleantes, claro está, unicórnios de cascos finos, vítimas das partidas da calçada lisboeta.

‘Jerónimos, Belém, Castelo’

Pedem, a aflorar um naipe de trunfos à sombra da ignorância do Tripadvisor.  Nunca dizem para seguir para a escadaria da Graça, onde o bacalhau é comido à pressa de dentro de caixas de papel de alumínio, entre turnos do Pingo Doce.

Nunca dizem para atalhar caminho por baixo do viaduto de Chelas, familiarizados com a morfologia dos gráficos de investimento desconhecem a morfologia dos corpos que dormem no chão. O grande campo de batalha urbano. 

Querem saber da Severa, mas não querem saber da Dona Francisca, que na Mouraria alimenta quatro ninhadas de gatos com pão embebido em óleo de conservas. Ou da mulher que, na Almirante Reis, para as gentes nos passeios com gestos bíblicos e lhes mostra a fotografia de um filho morto no Ultramar, eternizado na farda escolar do retrato.

‘Quanta solidão temos de ter cá dentro para que ela transborde ao ponto de pararmos um estranho na rua para conversar?’

Raspa-se o verniz de um Unicórnio do Web Summit e descobrem-se três RSI: o do cigano que lhes trouxe o almoço sem glúten a pedalar de Santos à Estrela, mas sem prémio de montanha; da criada brasileira à espera dos papéis do SEF que lhe limpou o vomitado – dois milhões de investimento em poça à entrada do quarto do Airbnb; e do mãozinhas, lesto entre o polegar e o mindinho, um mago da linha 18 do elétrico que faz desaparecer as carteiras de pele das calças slim dos Unicórnios. Nunca lhes rouba os telemóveis, esses estão presos ao corpo, como um órgão externo.

RSI? Perguntam, estranhando a sigla, desconhecendo que transação do mercado pode conter aquelas três letras.

‘Não transaciona valor, transaciona miséria’, esclareço.

Acenam distraídos, o rosto novamente virado para o ecrã. O ecrã é um antissético potente: elimina o cheiro do lixo que ficou por recolher pela greve dos funcionários dos serviços municipalizados.

Abro a janela, uma nesga apenas, o suficiente para o odor putrefacto arejar o carro, limpar o ambiente da proteção higiénica dos privilegiados. Vejo como as sobrancelhas dos Unicórnios se contraem com a ofensa da realidade.

‘Outra greve’, indignam-se. ‘O metro também está parado!’. 

‘As pessoas são um empecilho’, comento.

Os Unicórnios dão-me a notícia de que há experiências piloto em curso que tornarão a mobilidade urbana totalmente autónoma, sem pessoas e sem greves. Será o novo-normal, no futuro. Os resultados são animadores, garantem.

‘Para quem? O que farei eu se não tiver de conduzir um táxi?’

‘Terá mais tempo. Poderá usar o tempo de outra forma.’, sempre otimistas.

‘Para procurar emprego, por exemplo. Usarei o meu tempo para procurar emprego’.   

Felizmente, quando o futuro chegar, já não haverá pessoas, seremos todos Unicórnios.


Filipa Martins

É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.

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