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– Silêncio…
– Tirem as máscaras!
– Ação!
Nos minutos que se seguem a estas ordens, atores e figurantes “viajam” para o princípio da década de 1970, quando uma pequena elite lisboeta afeiçoada às artes começa a falar muito de uma jovem vinda de Moçambique, de sua graça Maria de Lurdes, mas que assina os quadros com o nome de Maluda.
A timidez, que lhe dá um toque bravio, permite-lhe esquivar-se à lisonja fácil das vernissages, mas não a afasta da determinação com que procura uma linguagem própria, sem filiação nos grandes nomes e escolas da pintura portuguesa do século XX.

No set montado na Fundação Gulbenkian, Maluda (1934-1999) volta à “vida” na pele da atriz Margarida Moreira. Convidado pela produtora Thrust Media para realizar um telefilme da RTP 2 sobre a vida da pintora, Jorge Paixão da Costa (autor de filmes O Soldado Milhões ou de séries como A Espia ou O Atentado) diz-nos não ter tido um minuto de hesitação. Ficou fascinado.
“A Maluda era uma personalidade fortíssima”, lembra o realizador, “com um lado muito sofrido porque, não sendo católica ou sequer crente, era uma mulher muito conservadora que, em Portugal, se movimentava num meio que também o era.” O que nunca a impediu de viver a vida, o amor e a arte em toda a sua plenitude, fazendo escolhas difíceis de assumir nesse Portugal em pleno estertor da ditadura.

Seria também essa coragem, mais implícita do que exposta, que levaria a argumentista, a escritora Filipa Martins, a aceitar o desafio: “Era precisa muita audácia para assumir e viver uma relação apaixonada com a apresentadora e atriz Ana Zanatti (que tem uma pequena participação no filme como entrevistadora), já nessa época uma figura pública.” Mas não foi fácil: Lisboa murmurava nas costas de ambas e “os quadros de Maluda começaram a vender menos.”
Como em Jorge Paixão da Costa, também no discurso de Filipa se deteta o fascínio pelas várias camadas da “sua” personagem: “Era uma mulher reservada e, no entanto, boémia, que gostava de fados e de farra, amiga inseparável de Amália Rodrigues. Mas, na verdade, era uma falsa extrovertida que não partilhava facilmente a sua intimidade. De certo modo, era muito solitária.”

A pintora da luz de Lisboa
Pensa-se na obra pictórica de Maluda e, mesmo sabendo-se que também pintou retratos (de Amália, por exemplo, mas também de Ana Zanatti ou Raul Solnado) e naturezas-mortas, o que nos ocorre de imediato são as janelas, os quiosques e outros motivos da paisagem urbana de Lisboa.
Mesmo nas obras mais abstratas (como na pintura em que retrata um “mar” de contentores à beira Tejo), ainda que lhes faltasse a legenda, aquela luz em que ao branco se opõe um azul, que varia apenas entre o cerúleo e o cobalto, é inconfundível. Lisboa, a cidade branca do realizador suíço Alain Tanner; cidade branca e azul, alegre e, no entanto, austera, de Maluda. Talvez uma falsa extrovertida como ela própria.
Nascida em Pangim, no então designado Estado Português da Índia, em 1934, Maluda familiarizou-se cedo com os tons fortes que o gosto dominante na burguesia da metrópole tenderia a rejeitar. Aos 14 anos mudar-se-ia para Lourenço Marques (atual Maputo), em Moçambique, e esse gosto aprofundar-se-ia ainda mais.
Numa entrevista à revista Galeria de Arte, em 1996, a artista admitiria a importância desse périplo: “Vim do Oriente, onde nasce a luz, passei por África, onde aprendi a amar a vida, cheguei à Europa, onde estudei Pintura na cidade das luzes, depois fixei-me em Lisboa, gradualmente refiz o percurso labiríntico em direção à luz.”
À beira Índico, iniciar-se-ia nas Artes. Com Garizo do Carmo, João Paulo e João Aires, formou o grupo de pintura “Os Independentes”, que expôs coletivamente em 1961, 1962 e 1963. Notada, ganhou uma bolsa de estudo da Fundação Calouste Gulbenkian e viajou para Portugal, onde trabalhou com o mestre Roberto de Araújo, em Lisboa.
Graças ainda ao apoio da Gulbenkian, entre 1964 e 1967, viveria em Paris, onde frequentou a Academia de la Grande Chaumière e se tornou visita de casa de Maria Helena Vieira da Silva e seu marido, Arpad Szénes.
No regresso a Lisboa, conheceu um sucesso que talvez não esperasse. Em 1972, realizou uma grande exposição individual na Gulbenkian (a mesma que agora é recriada no set), que obteve grande sucesso, com mais de 15 mil visitantes e muitas vendas.
Um sucesso que voltaria a repetir-se em grandes exposições realizadas em Lisboa (1978, 1981, 1985 e 1987), Porto (1978 e 1985), Paris (1979 e 1985). Num álbum que as suíças Éditions du Manoir lhe dedicam, Maria Helena Vieira da Silva escreve no prefácio: “Os quadros de Maluda são para mim uma música visual e rigorosa.”
A partir de 1985, foi convidada para fazer várias séries de selos para os CTT. Dois trabalhos da sua autoria ganharam, em 1987 e em 1989, o Prémio Mundial de Melhor Selo. Os quiosques, onde se vendiam refrescos ou jogo e os faróis da costa portuguesa conquistam o júri deste concurso em que concorrem centenas de artistas de muitos países, mas, por essa mesma época, serão as janelas de Lisboa que trarão a Maluda mais admiradores e clientes.
Sem ceder à tentação do pitoresco, a artista representa-as na sua diversidade – luminosas e, no entanto, secretas, revelando mais o que se passa fora (uma velha cabine telefónica, o prédio fronteiro, o elétrico que passa) do que dentro. “Ela costumava dizer que as pessoas atrapalhariam os quadros dela”, lembra Filipa Martins.

E, assim, continuava dia-a-dia, tão rigorosa na autodisciplina como no traço geométrico, quase arquitetónico, a olhar Lisboa a partir do seu janelão no bairro da Lapa, com uma vista única sobre o Tejo e a Madragoa.
O poeta Alexandre O’Neill escreve o poema Persiana para uma janela de Maluda: “Esta janela já não tem enredos/ ninguém por ela espreita, ninguém espera vê-la semicerrar, semi abrir/o olhoblíquo do ciúme (…) Esta janela é uma finta, é uma jogada no xadrez de quem a pinta e assina.”
Em 1994, ano em que Lisboa foi Capital Europeia da Cultura, Maluda apresentou uma grande exposição retrospetiva no Centro Cultural de Belém. Morreria em fevereiro de 1999, em Lisboa, aos 64 anos, e está sepultada no Cemitério dos Prazeres.
Graças à “magia” que o Cinema e a Televisão permitem, “revemo-la” agora, no fulgor da juventude, vestida com um fato de tailleur e calças brancas, muito anos 1970, interpretada por Margarida Moreira.

“Interpretar Maluda é um sonho para uma atriz mas também uma responsabilidade”, diz a atriz, conquistada não apenas pelo trabalho da pintora, mas também pela sua personalidade. “Era uma mulher audaz, não apenas por ter vivido as suas paixões numa época em que a homossexualidade ainda era vista como uma doença do foro psiquiátrico, o que já não seria pouco, mas porque cometeu feitos dignos de aplauso.”
No trabalho de preparação para o papel, Margarida descobriu ainda uma “mulher muito competitiva”, que se destacou na prática de desportos como a equitação, onde chegou a ganhar prémios.
Antes de começar a filmar, a atriz mal dormiu durante uma semana, mas depois de muito estudar, começou a sentir em si uma certa música visual e rigorosa. “Tem sido uma viagem maravilhosa”, diz Margarida Moreira.

Maria João Martins
Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.
Um artigo muito interessante, que vai além do revisitar a carreira artista plástica, foca também a sua personalidade que o filme celebra.
Relembrar a época onde crescemos e estudamos, é o modo de celebrar o nosso passado e que ainda ressoa. São as nossas raízes como vivemos a juventude plena de contrastes e de espectativas.
Foi agradável de se ver… Como pintor que vou tentando ser, descobri facilmente que nesta área – que poderia ser a mais importante do filme, já que de uma biografia de pintora se tratava – aconteceram alguns aspectos técnicos pouco cuidados. Ou seja, a haver um consultor artístico para o filme, ele devia de andar muito distraído já que a determinada altura, Maluda usa um lápis de grafite/a que nos anos 70 ainda não tinha sido criado. Além disso, a maneira como a Autora segura a sua paleta, de uma forma completamente primária, deixa muito a desejar, bem como a forma em que a disposição das cores se encontram. Tendo ela o sucesso e a procura que teve, tenho sérias dúvidas em crer que ela usasse as cores de uma forma perfeitamente desordenada (o que é pouco compatível com a sua “arte linear” ou a “geometria das formas” que exige e que nos impõem rigor) ou que desconhecesse a forma profissional como se segura numa paleta. É certo que hoje em dia já vale tudo e qualquer um pode ser pintor e, para tanto, basta ir à loja do chinês mais próximo, comprar os materiais e pintar o “seu” quadro da maneira que melhor entender. No entanto, na altura as coisas eram um pouco diferentes e, nomeadamente um pintor, era educado e respeitava a sua arte e profissão. Quanto ao tamanho da referida paleta, também acredito que fica aquém do que seria previsível de uma Autora com a procura e o sucesso que alcançou na sua vida. Enfim, biografias credíveis resultam de muito trabalho e pesquisa… e, por falta de dinheiro ou tempo nem sempre isso acontece, infelizmente.
Excelente artigo. A escrita da Maria João, que sempre foi serena e de acalmia, refinou-se ainda mais. Parabéns.
Tenho intactas “Os Quiosques de Lisboa em Agurelas’ Pintados pela Maluda.
Quem quiser vendo pelo melhor Oferta.