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O problema foi a esquina. Só a vi no último segundo, nem houve hipótese de fingir que não a vira. Sem outro remédio, depois de esbarrar com ela, tive de fazer conversa.
Não foi fácil esconder o meu choque. Ela, que sempre se cuidara, tipo filtro de Instagram, tinha o cabelo desgrenhado, a pele seca, uma sweatshirt à medida de um obeso. Lá dentro, desaparecia na roupa como um fio de mulher. Tinha fundos nos olhos tão cavados que me perguntei se, em dias normais, usaria anti-olheiras.
Ainda disse “Tanto tempo! Como é que estás?” e os lábios esticaram-se num gesto de consternação. Estava mal, bem se via. E eu sabia que se tinha separado da Não Sei Das Quantas, mas quem é que ainda fica neste estado depois dos 25?
Tinham sido felizes, bem o vi. Pelo menos, intui-se a felicidade em publicações do Instagram. Parecia que só comiam crepes, que viam sempre o pôr-do-sol, que o fim de tarde tinha sempre um gin, que ao domingo faziam sempre pizza, que nunca estava vento quando iam à praia, que quando voltavam da Costa nunca havia trânsito, que a vida era só bolas de Berlim e, para piorar a irritação dos outros, nem sequer engordavam. Nós, mortais comuns, até podíamos ceder ao fatalismo da inveja, mas aquilo exigia tanta energia que até nos dava preguiça pensar nela.
Ainda me lembro de as ter visto um dia, estava eu com outros amigos a sair do padel no Campo Grande. Nós suados, elas felizes. Nós cansados, elas também. Mas no nosso cansaço havia suor, o meu braço direito unia-se numa dor à cervical, e no delas havia uma alegria de animal satisfeito com a vida.
Estavam cansadas – tinha sido mais uma noite sem dormir –, mas eram finalmente três. Partilharam connosco a alegria, um ou outro dos meus ainda disse “Quem me dera”, mas de mim não levaram nada. Eu não percebia sequer que alguém fizesse aquilo a si mesma quando podia, sei lá, jogar padel com os amigos. E elas aninhavam-se na família de três e notava-se que ainda tinham medo de levar o bicho à rua, que devia estar a ser amamentado, mas nenhuma delas tinha leite. “De noite chora muito, temos de lhe dar de comer”, disse a Catarina, como quem partilha uma desgraça.
Quem a viu dois anos depois deparou-se com os cacos de uma família. Ia sem a outra ao lado (não me lembro mesmo do nome) e nas mãos só levava uma mochila que tinha ar de ser coçada como a de uma adolescente. Vão-se os traços da vida adulta, vai-se o glamour. E tanta gente sempre pronta a espetar-lhe o dente quando ela estava indisponível.
E então, depois do seu sorriso trágico, que é o mais triste dos sorrisos, e um sorriso não deve ser triste, lá me disse “Sabes como é.” Eu não sabia, nem queria saber, por isso murmurei “Ah, pois” como quem se safa em grande. Não me safei. “Já deves saber que eu e a Inês nos separámos.” (Isso, era Inês!) E eu, que tenho jeito para isto do acompanhamento psicológico e para conselhos conjugais, lá disse “Ah, sim. Paciência, é a vida. Não é?” Era, por isso ela não podia dizer nada, e eu consegui deixar o meu autismo durante cinco segundos e arranquei com um alicate a palavra que me custa fazer sair: “Lamento.”
Custou, custou. Até sinto nojo ao ceder ao sentimentalismo cor-de-rosa. E ainda por cima para nada, nem ligou: “Sinceramente, o que mais me custa é a Alice.” E eu lá me lembrei da Alice. “Ah, não está a morar contigo?” “Fica uma semana na casa de cada uma.”
What?
E aí foi ao ar o meu esforço para parecer simpática. “Estás nesse estado por causa de um caniche?!” Perguntei-lhe assim, com ponto de exclamação e tudo, morta a paciência para alinhar no drama. “Sim, sim”, respondeu-me, sem olhar ao desconcerto. “Com a Marta já as coisas estavam mal há muito tempo.” (Era Marta, sim. Inês era a prima dela, mas eram quase iguais.) E de repente os crepes, os sóis postos, os copos de gin, as pizzas com manjericão fresco, a praia sem areia a entrar nos olhos, a ponte 25 de Abril feita auto-estrada e as bolas de Berlim cheias de açúcar pareceram-me mentira, e até a imagem delas juntas me pareceu mais gorda.
Vítima da minha falta de noção ou do Instagram, já nem soube que dizer. Ainda assim, não me contive: “Mas trocam o cão uma com a outra uma vez por semana?” “É uma cadelinha”, corrigiu. “Trocamos, claro. Às sextas-feiras.” Eu ia tendo um piripaque ao pensar no que seria a minha vida se tivesse de trocar o aquário do meu peixe dourado com alguém quatro vezes por mês. “Mas não se entendem com a cadela?” “Entendemos, entendemos”, insistiu. “Por isso é que a residência alternada funciona bem. Estamos sete dias com ela, mas claro que nos outros sete morremos de saudades. Fazemos uma videochamada antes do jantar, mas não é a mesma coisa. E eu sinto falta dos passeios, do cheiro, dos latidos.”
A minha falta de empatia deu em choque. Se sentisse falta dos passeios, do cheiro, dos latidos da Márcia, eu percebia. Do cão já era mais difícil.
“Mas não achas bem fazermos isto?”, perguntou-me. E eu melíflua, imbuída do eufemismo em glória: “Acho bizarro.”
De repente, era ela a estar chocada. E o tom de voz elevou-se como quem se irrita a sério: “Então e se fosse um bebé, como é que fazias?” Naturalmente, se fosse um bebé, que remédio tinha eu. Mas não era. “É como se fosse. É como se fosse!” E disse-me que era um amor tão grande que ia tatuar a Alice na canela só para a ter sempre consigo.
Nesta encruzilhada, maldizendo aquele encontro numa esquina, enquanto os carros da Duque de Loulé corriam à nossa volta, inventei que tinha de ir, que tinha o assado ao lume em casa e o meu peixe estava sozinho havia demasiado tempo. Ainda podia inventar um lamento por ter rompido com a Joana, mas assim era demais.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
Como é costume, gostei muito, sobretudo da facilidade com que cria um quadro, a frontalidade com que o faz. E a crónica é um texto que me encanta. Um abraço.
Olá, Ana Bárbara. O jornal “As Artes entre as Letras” vai publicar, no seu próximo número, um texto meu sobre o seu romance “Palavra do Senhor”. Este jornal é sediado no Porto. Seria possível facultar o seu e-mail para que a diretora lhe envie o próximo número? Obrigada.
Olá, Eugénia. Aqui fica: anabarbarapedrosa@gmail.com
Obrigada!