Dança pelas ruas de Lisboa e ensina dança em Entrecampos, em Santos e no Saldanha, nos Jazzy Dance Studios, a pessoas de todas as formas e feitios. Prefere aparecer nos ecrãs dos telemóveis do que nos palcos dos teatros e quer tornar a dança clássica acessível a todos.
David J. Amado é bailarino, coreógrafo, professor de dança e acredita que a sua profissão “vai morrer, se continuar a ser feita para pessoas magras, brancas, jovens e ricas”.
“Quando você vai ver um bailado, sem noção do que é a dança, vê só braços e pernas, mas basta uma aula de dança clássica, mesmo que seja só como passatempo, para a sua perspetiva mudar completamente”. Mudar a perspetiva é um dos objetivos de David.
Os seus alunos têm entre os 20 e os 50 anos e são magros, gordos, altos, baixos, portugueses, estrangeiros, mais flexíveis, menos flexíveis.
Quando dá aulas, David usa meias de cores diferentes. Uma branca e outra preta, para que ninguém sinta que uma pequena dificuldade é limitadora. Está seguro de que “dentro da dança clássica, há espaço para todos. Mesmo que não se queira praticar profissionalmente”.

Até para ele, que é hoje bailarino profissional, dançar começou por ser um passatempo, uma brincadeira que fazia em miúdo. Na Jamaica, país onde nasceu e cresceu, não havia nenhuma companhia e “fazer dança, no sentido profissional de treinar e ter aulas, não fazia parte da cultura”, explica.
Foi nos Estados Unidos da América, país que visita desde muito novo e onde tem família, que percebeu que era possível fazer dança “a sério”. Com dezasseis anos, inaugurou esta nova etapa da sua vida.

Durante algum tempo, praticou apenas dança moderna, queria fazer parte de videoclipes e dançar para a Janet Jackson. Se não fosse uma das professoras de David a sugerir, o bailarino profissional nunca teria considerado a dança clássica como hipótese porque “pensava que não era para pessoas negras”.
“A primeira vez que vi homens negros a fazer dança clássica mudou a minha vida, foi em Nova Iorque, numa aula só para homens em Alvin Alley”, lembra. Aquela aula fê-lo acreditar que havia espaço para todos na dança clássica e, hoje, depois de enfrentar muita falta de representatividade no meio, David quer ir mais longe na luta pela inclusão.
Depois de um percurso que passou por Nova Iorque e Belo Horizonte, em Minas Gerais, agora, em Lisboa, vai abrir a Escola de Dança Efatá, na Amadora, para os mais novos. Um projeto que pretende arrancar em 2022, financiado pela Embaixada dos Estados Unidos da América e apoiado pela Câmara Municipal da Amadora.
Efatá é a palavra proferida por Jesus que trouxe de volta a visão e a fala a um homem cego e mudo. Significa “abre-te”. “A história, para mim, mostra que muitas vezes há barreiras externas, mas também internas. Quando podemos abrir-nos mais, somos capazes de fazer mais. Fazer as coisas que não podíamos”.
Com a Escola Efatá, David quer trabalhar as barreiras externas e internas que excluem muitos do mundo artístico e da auto-descoberta, para que mais ninguém sinta que a dança não é para si.
A coreografia de um bailarino à procura de si próprio
Para além de bailarino, coreógrafo e professor, David J. Amado estreou este ano o seu primeiro filme. Chama-se “Velveteen”, foi apresentado pela primeira vez na ModaLisboa e é sobre a procura de uma identidade e a beleza e medos que o processo de aceitação de nós próprios comporta.
“O filme é para a minha comunidade, mas também é para todos. Todos temos algo que não encaixa no padrão e é difícil ter a coragem de viver uma identidade que não encaixa. Precisamos de ter coragem”, diz.

O nome do filme é uma referência ao livro infantil da britânica Margery Williams “Velveteen Rabbit”. “Nem sei onde encontrei esse livro. Eu lia muito quando era criança porque tinha medo de falar. O livro foi-me dado quando tinha sete ou oito anos”.
“Velveteen Rabbit” narra a história de um coelho de peluche e da sua busca por afeto para se tornar “real”. “Voltei a encontrar o livro, quando era mais velho, com 12 ou 13 anos, e foi aí que comecei a entender a história. Identifiquei-me muito com o coelho e com essa luta por conquistar amor e sentirmo-nos válidos, dignos”, diz David, que com o seu filme nos desafia a sermos reais, autênticos, e mostra-nos que isso, por si só, é um ato de coragem.
Não há, em “Velveteen”, respostas a crises existenciais. O processo de procura pela aceitação, para David, não é algo fixo, é uma jornada que fazemos “várias vezes por dia, por semana, por mês”. Tal como o coelho de peluche da história de Margery acaba por perceber, ser real implica sofrimento.
David começou a pensar no filme em 2017, quando se mudou para Portugal, e se sentia “muito à deriva, solto no ar”. Apesar de achar que, por cá, “ninguém queria ver uma história sobre negros gays”, em 2020 concorreu a uma bolsa do Ministério da Cultura e Direção das Artes para concretizar o seu projeto. Quando ganhou, questionou-se se conseguiria concretizá-lo. “Não conhecia muitas pessoas que dançassem aqui em Portugal, não conhecia muitos negros gays. Pensei que se calhar nem havia negros gays”, diz, a rir.

Mas descobriu-os e através do filme começou a construir uma comunidade de artistas negrxs queers. O projeto fê-lo perceber que era preciso viver com intrepidez para ser visto e encorajar os outros. “É uma responsabilidade social ser quem sou, sem vergonha”.
O processo de filmagem encontrou obstáculos e contratempos, o maior dos quais, para David, não ter sido autorizado a filmar no Cemitério dos Prazeres, num processo que encara como “subtilmente preconceituoso”.
A cena que David pretendia gravar neste espaço chama-se “Silêncio, que se matam negros” e aborda o esquecimento histórico das atrocidades cometidas contra o homem negro e a sua marginalização.
“Velveteen” acabou por ser filmado entre a praia de Carcavelos, o Espaço ALKANTARA, a Igreja do Santo Condestável e a loja MONA, com a colaboração de artistas como Xu Lopes, Wilson Sanches, Apolo de Carvalho e Jahshua.
O formato audiovisual potenciou a conciliação de vários elementos e espaços que não seriam possíveis de colocar em palco e tornou o conteúdo acessível a mais gente, um dos factores mais importantes para David. “Estou mais interessado no audiovisual do que no palco”, revela o bailarino, que, entre a lírica, a música e a dança clássica, vogue e contemporânea criou trinta minutos de intimidade e empatia com o espectador.

Se as pessoas não vão aos bailados, vão os bailados ter com as pessoas. É esta a perspetiva de David, que aproveita o seu canal de YouTube para fazer a dança clássica chegar aos vários cantos de Portugal e do mundo. “Muito mais gente pode ver um bailado a partir do telemóvel ou do computador”.
Até agora, “Velveteen” foi exibido na ModaLisboa, no Festival Política, no espaço ALKANTARA e no NúcleoA70, em Marvila. David pretende levar o seu projeto para lá da cidade de Lisboa e exibi-lo noutros sítios do país.
De Nova Iorque a Lisboa, passando por Belo Horizonte
Antes de chegar aonde está agora, David J. Amado estudou e trabalhou em Nova Iorque e aprofundou o seu percurso em Minas Gerais, no Brasil.
Nova Iorque foi a sua primeira fantasia. Era o lugar onde os sonhos se realizavam. Venderam-lhe bem o american dream e enquanto pôde pagou-o e aproveitou-o. “Pensava que Nova Iorque era um lugar onde tudo era possível, onde não existiam injustiças. E que, mesmo sendo homem gay, negro, estrangeiro, podia atingir as mesmas coisas que os outros”, conta hoje, com alguma desilusão.

Na Jamaica é crime ser gay. Nos Estados Unidos da América o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um direito em todos os Estados. “Em Nova Iorque, não me senti estranho. Senti-me bem representado”, diz David.
No entanto, o sonho americano começou a desfazer-se. O custo de vida tornou-se insustentável. A cidade era muito stressante. A concorrência era forte: “muitos artistas e poucas oportunidades”. E Nova Iorque revelou não ser, afinal, “um paraíso para gays nem para negros. Há muitos crimes de ódio contra a comunidade”, diz David, que estava lá quando aconteceram as primeiras manifestações do movimento Black Lives Matter na sequência do homicídio de Trayvon Martin, estudante negro de 17 anos morto a tiro na Florida em 2012 por um “vigilante” motivou protestos antirracistas em todo o país.
Foi neste contexto que o bailarino decidiu que não queria continuar na cidade que nunca dorme. Precisava de se curar e de fazer o seu “trabalho interior”, o que era impossível com tanta agitação. “Então, mudei-me para Minas Gerais. Sem contactos, sem amigos, sem emprego e sem língua. Fui lá e comecei do nada”.
O filme “Vida Ballet” foi o gatilho da mudança, que o fez descer pelo continente americano. Se havia assim tantos miúdos negros a fazer dança clássica no Brasil, David queria fazer parte dessa realidade.

Em Minas Gerais, trabalhou com a Companhia Grupo Corpo, que se tornou uma das suas favoritas no mundo inteiro. Por esta altura, começou a dar aulas de movimento a miúdos de bairro em Belo Horizonte com a associação Corpo Cidadão.
“Senti mais representatividade no Brasil do que sinto em Portugal”, diz. Numa das suas aulas de dança no outro lado do Atlântico, com a luz a entrar pela janela, a tocar nos espelhos e a refletir por todos os cantos da sala, David reparou numa imagem com a qual só se tinha confrontado uma vez em Alvin Alley. “Todo o mundo na aula estava a usar um macacão e eu vi todas essas pernas castanhas, foi uma imagem incrível”, recorda.
“Saí do Brasil porque a economia ficou muito ruim e o meu orçamento na companhia foi cortado”, lamenta. Começou a considerar a Europa. Na sua cabeça ecoavam as palavras de James Baldwin e a voz de Josephine Baker, artistas que sempre o acompanharam e que falavam de uma cultura europeia progressista, de uma terra que valorizava muito mais a arte do que as Américas.
“Quando cheguei não senti que eram assim tão mais progressistas. De todo. Mas essa é a legenda da Europa, um lugar para onde os artistas vão”, diz.
Em 2017 mudou-se para Portugal, e, apesar de sentir o peso da tradição, é feliz na cidade que escolheu para viver: Lisboa. “É dos lugares mais seguros onde estive. Adoro o clima, a comida, a diversidade da cidade em termos de culturas e raças. Sim, estou muito feliz aqui”, diz. Além das praias, de Sintra à Margem Sul, o Martim Moniz é o lugar onde mais gosta de estar. “Tem portugueses, tem africanos, tem asiáticos e eu sinto que me encaixo bem lá porque não há um padrão. É toda uma mistura”, explica.
Mas se em Nova Iorque David sentia que eram muito poucos os homens negros na dança clássica, em Lisboa nem se fala. Sente que, embora a cidade tenha muita diversidade, “o acesso não é igual para todos”. “Não vejo muitas pessoas com voz, que sejam valorizadas e que não sejam homens portugueses”, queixa-se. “É isso que quero mudar.”
* Salomé Rita está a estagiar na Mensagem. Nasceu e cresceu em Faro e há dois anos decidiu vir para Lisboa estudar esta necessidade que todos temos de comunicar. Sucessivos confinamentos e restrições afastaram-na da cidade, ainda se perde pelas ruas, mas é perdida na capital que encontra boas histórias para contar. Este texto foi editado por Catarina Pires.
Excelente artigo. O David transmite uma mensagem maravilhosa na sua forma de estar na vida.
Parabéns aos dois.
É uma história inspiradora e pertinente para percebermos que continuamos a ser uma cidade acolhedora para estas pessoas que quebram barreiras socioculturais e como estas são cruciais para o enriquecimento do nosso país. Parabéns ao David J. Amado que presta atenção a estes detalhes, até nas meias! Obrigada também a quem escreveu o artigo, já sei que canal subscrever no Youtube!