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Liguei para o 918571733, atendeu uma voz de mulher profissional e íntima, tanto de lá como de cá, que me disse: o número para o qual ligou não está atribuído. Depois em inglês. É natural que o 918571733 não esteja atribuído, agora que Eva Glória chegou aos cento e dez anos.
Cem de vida, dez de cova.
Quando a conheci ainda vivia. E arriscava-se a aguentar viva até ao fim. Um dia, bengalou na janela do passageiro e entrou no meu carro quase sem me deixar dizer-lhe: «Minha senhora, deve estar enganada, estou estacionado, vou para casa, este carro é meu.» Abafando-se com o lenço que lhe cobria o cabelo e as bochechas, não ligou, disse-me: «Tu agora levas-me à Segurança Social.»
O tu de que ela falava era eu, então com vinte e dois anos, proprietário de um Peugeot 205 que era o mais grandioso dos calhambeques – tossia-se ao arrancar, custava-lhe a questão das mudanças e cheirava à garganta dum fumador. Quem mo vendera tinha fumado sempre de janelas fechadas.
Arranquei pela avenida de Berna em direcção a uma Segurança Social que podia ser coisa de mito, coisa dela, ou coisa nossa. Eva Glória, com cem anos de gordura e duas pernas linfáticas, chocalhantes, já não morria de fumo. O abafo a cigarro era-lhe agradável: «Antes de chegarmos à Segurança Social, fazemos negócio, eu e tu. Quanto levas pela carripana?»
Pelo carro, queria que não me sujasse os estofos com o sumo que lhe esguichava da boca ao comer a laranja que tirara de um saco. «São da minha terra, vês? Experimenta», e mostrou-me um gomo tão suculento, tão a oferecer-se, tão fatia de mulher, que me pareceu obsceno comer-lho da mão.
«Fica para a próxima, minha senhora.»
Agora suspeitava que ela, em vez de negociar o carro, negociava o silêncio. Os quinhentos euros que oferecia, «muito para uma lata destas, aviso-te», pagavam o silêncio, porque o silêncio (sei, agora que escrevo pela segunda vez sobre Eva) era caminho certo para a filha.
«Está bem, ouve, falamos de preços depois de me levares à Segurança Social. Tenho lá amigos, trato de umas contas, eles ajudam, eu volto e tu levas-me a casa. Ficas com o meu número de telefone. Não te custa nada. Vira ali.»
À direita, à esquerda, em frente, ordenava-me, eu repetia «Sim, minha senhora, claro, minha senhora, concordo, minha senhora», e estacionámos à frente da repartição de Arroios, onde ela se meteu.
Imaginei Eva-bicho escavando a boa-vontade dos funcionários públicos – este a obedecer-lhe, aquele a submeter-se-lhe, o outro a concordar –, ela rápida em busca da burocracia. E de lá voltou com o saco das laranjas mais leve e um papelinho na mão.
«Agora levas-me a casa.»
No caminho para a João Crisóstomo, esqueceu o negócio do carro. Fazia-se demasiado silêncio, ela tinha de dizer: «Eu era para não te contar. Mas a minha filha está aqui.» Onde era aqui, senão na boca de Eva Glória, junto com o sabor a laranja? «A minha casa é além.»
O carro estacionado, ficámos ambos sozinhos além. «A minha filha trabalhava em Viseu, vendia uns apartamentos. A mais linda dos cartazes da Remax, e vendia muito bem. Quando vinha a comissão, nunca se esquecia de mim. Uma prendinha, uma atençãozinha para a mãe.»
As mãos afagando-se e os dedos passando pelas rugas, Eva afundava-se lentamente no carinho da filha. «Depois dizia, vou a Lisboa ver-te, mãe, vou a Lisboa só por ti.»
Lisboa só por ti deveria ser refrão, canto de mãe velha.
Por nós passavam taxistas, skaters, pugilistas da academia de boxe que ficava a uns metros; o dono de uma mercearia ajeitava as maçãs, os clientes descompunham-lhas. Passava a vida, e Eva não via, só dizia:
«Um dia, a minha filha mostrou a casa lá ao sujeito. Sabes que nome dei ao sujeito? Não lhe consegui dar um nome. Mas sei que tem nome. O homem foi visitar o apartamento, pareceu-lhe bem. Diz que vai comprar. A minha filha não desconfiava. Estava a mostrar-lhe o quarto de banho quando ele», e calou-se. Tirou a última laranja do saco e apertou-a, as mãos que tinham acariciado mal serviam para apertar.
«O homem tirou fora uma faca e disse à minha filha, agora é para dares todo o dinheiro. Mas ela, coitada, não andava com dinheiro. Depois nos jornais disseram que a minha filha disse assim: por favor, não me faça mal, leve o que quiser, não me faça mal, leve o que quiser, por favor.»
A laranja escorria no limite do aperto, um aperto de mãos cansadas que só incomodava a casca.
«Mas lá mal fez ele», continuou Eva. «Nem cem euros a minha filha tinha, e há homens que se exaltam quando os contrariam. Não sei que foi, de repente a minha filha, coitada, pôs-se a correr, ele alcançou-a, tapou a passagem, agarrou.»
Eva Glória calou-se; e eu, a faltar-me o que respirar, perguntei-lhe às arrecuas: «E depois, minha senhora?»
Depois, a filha debateu-se, o homem mais ainda a segurou, se excitou, os dois sem terem por onde sair um do outro. E então, «Ai, rapaz, eu conto-te. Olha o que aconteceu à minha filha. O homem pegou na faca e levou-lha à garganta», disse ela, fazendo com o polegar no pescoço.
De um lado ao outro morria a filha de Eva Glória, e assim talhada de fio a pavio encontrou-a um vizinho que chamou os bombeiros. Venham depressa.
«Não sei o que lhe dizer, minha senhora.»
«Nem eu sei o que me dizer, filho. Toma a última laranja.»
Eva tocou-me no ombro com a bengala, saiu – devagar o suficiente – e devagar dirigiu-se à porta do prédio. Mais devagar entrou.
Eu descasquei a laranja, o carro cheirou a citrino fresco, comi um gomo, depois outro e outro, sentindo na língua os sucos que estes libertavam depois de rompidos, e engoli os caroços. Tudo desapareceu no nó da minha garganta. Embora demasiado doce, comi a laranja de Eva por inteiro.

Afonso Reis Cabral
Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.
Adorei…como sempre! Desta vez tocou-me mais. Isto de ser mãe e ter uma filha….
Parabéns,Afonso! Maravilhoso!
uma laranja só sumo ! que bom.
Da minha janela avisto a sedutora escrita do Afonso…
muito bom, muiiiiiiiiiitoooooooo
Acabei de partilhar com amigos a quem disse: “Muito gosto eu da escrita deste miúdo!” (acho que uma diferença de mais de 40 anos, me permite chamar-lhe assim, com todo o respeito)