Quando nos conhecemos, apresentaram-ma como a capital de Portugal continental, insular e ultramarino.
Não foi fácil perceber-lhe sentido no manual da escola onde só o azul das imagens, mar que banhava a terra ou que abraçava pequenos pedaços dela, tinha para mim existência concreta. O resto não era tão bom de perceber, com aquele enorme emaranhado de letras, manchas e linhas com espessuras e cores diferentes, que me obrigavam a espremer os olhos para ler e o cérebro para compreender.
Ela lá estava num dos mapas, com letras mais gordas junto a uma bola maior do que as outras, sinais inequívocos de uma importância que arrumava logo para canto os restantes nomes desconhecidos. Um dedo indicador apontou-me para onde estava eu, mais para cima no retângulo, também com o mar do lado esquerdo.
De olhos fechados, tentei imaginar, dentro desse pontinho, a cadeira, a sala, a casa e o jardim, a minha rua e a da escola, tudo o que eu conhecia. O exercício cansou-me e deixou-me também dúvidas de que o meu enorme mundo pudesse assim ser reduzido a coisa tão pouca.
Do nosso segundo encontro, o verdadeiro, só tenho certeza de que aconteceu. Foi o ponto de partida do avião que, voando sobre o tal mar, mas tão acima das nuvens que dele nem raspas se viam, depositou em Luanda toda a família, mais um pequeno cão de tipo pincher dentro de uma cesta que acabou roída.
Se, na altura, estivesse preocupada com a aplicação prática da geografia estudada e não com toda a estranheza daquele início de epopeia ultramarina perceberia que ser capital, nos anos 1960, era isso mesmo: era só de lá que partiam os aviões grandes com destinos longínquos.
O terceiro encontro devolveu-me ao ponto de partida, para gozo de umas longas férias de verão, programadas para se estenderem até ao final do ano. Calhou não ser esse um ano qualquer, mas um ano que marcou a história dos que o viveram e dos que a seguir vieram, filhos da madrugada. Não cheguei a voltar a embarcar para Luanda.
Eis-me de regresso à pequena bolinha do mapa, enquanto a grande parte dos meus amigos assentava praça em Lisboa, transformada então numa outra capital, a dos retornados. Só aí o colorido dos rostos e das túnicas, o sotaque das conversas e a descontração de gente habituada a maiores convívios me conseguiam devolver, em pontuais visitas, um ambiente mais próximo daquele que se me entranhara. O Norte, que voltou a acolher-me, continuava predominantemente branco, sisudo e com nortadas.
Chegada a hora da escolha quanto a onde queimar as pestanas durante uns anos, a constatação já não foi surpresa: um bom número de cursos só se oferecia em Lisboa e o preferido fazia parte da lista. A conjugação dos astros acabou por resolver o dilema, nesse ano a faculdade encerrou e eu falhei uma grande oportunidade para habituar os olhos à cidade e conhecer a sua alma.
Quem sabe, poderia então ter-me vindo a acontecer como ao Waldemar Bastos, visitante tornado permanente que, quando longe dela, sentia aperto de peito pela sua magia e saudade.
Muitas sebentas e manuais de Economia depois, já com um canudo debaixo do braço, um bom número dos meus colegas emigrou. Ressentidos, chamávamos-lhes “mouros de segunda” e culpávamos o poder centrípeto da capital por no-los ter sonegado a convívio permanente. Eles acenavam-nos com melhores empregos, cargos mais importantes, futuros mais promissores, enquanto nós corríamos o risco de não passarmos da cepa torta.
Teriam razão, porque não havia projeto de relevo, decisão de monta, pedido de verbas, empurrão de candidatura que não passasse por uma deslocação à cidade grande. Os programas de incentivos de base regional congeminavam-se em salas de reunião de um Ministério na Praça do Comércio, local de excelência para brotarem as melhores ideias, debatidas entre participantes provindos dos vários cantos do país.
Era em Lisboa que as decisões se tomavam, o motor da máquina era aí que estava e para aí corríamos todas as semanas. Gente havia que, obrigada a maiores permanências, mas renitente em se trasladar em definitivo, fazia do comboio a sua segunda morada.
Cá em casa, quando calhou sondar-se também o chefe da família sobre putativa transferência, saiu-lhe logo de chofre “não senhor, nem pensar!”. Assim a vidinha continuou-lhe muito mais calma, mas não trepou no organograma da empresa; e os dois continuámos a trocar imenso os vês pelos bês.
Casamentos, aniversários e festas de família, assim como anos de passagem breve, quando levávamos as miúdas para a colónia de férias, não chegaram para deixar de a ver apenas de relance. Mesmo de mapa na mão, nunca deixei de ser (pré-Covid, é claro) turista pouco orientada.
E, falando das hordas que, a certa altura, invadiram todos os cantos, também nisso capital é capital porque a invicta do granito e do Douro, tão esforçada, nunca conseguiu competir com tamanha atração da cidade da luz. Nem chamar a si grandes concertos, gigantescos eventos, ou mesmo o Cirque du Soleil.
Bem corremos a arranjar também uma Arena, mas nada feito, continuamos a ter de usar a via-férrea com bilhete de ida e volta quando queremos ser parte de coisa de maior monta ou se precisarmos de ir levantar um passaporte especial.
Seria imperdoável não falar na Maria da Graça, prima agora octogenária com mais de 70 anos de vida alfacinha, quase todos passados no bairro da Encarnação – um dos exemplares das cidades-jardim que mereceria crónica longa só para si. A ela devemos um grande esforço para nos ir dando a conhecer uma Lisboa que não vem nos guias e ainda com recantos onde se consegue não encontrar falantes de língua estrangeira. O mictório da “aldeia dos Olivais”, todos conhecem? Pois bem, nós sim!
Agora, seguidora d’A Mensagem, até a Maria da Graça faz novas descobertas através das reportagens e crónicas que revelam recantos e ambientes diversos, gentes novas e velhas, diferentes camadas da massa de que é feito passado, presente e futuro da cidade.
Quanto ao meu olhar de fora para a Menina Bonita do Waldemar, ele vai-se apurando-se linha a linha, texto a texto, historieta a historieta. Seria caso para concluir que só cidade com estofo de capital se lembraria de uma Mensagem?
* Nada no Porto e criada nas profundezas do mato angolano, Isabel Santos é fã dos Peaky Blinders e de cidades feitas para ciclistas. Economista nos tempos livres, desde 2007 publica regular e clandestinamente sobre assuntos que não interessam nada, em Notes, Moleskines, Paperblanks e, mais recentemente, em Miquelrius.
a tua escrita alimenta-me a ALMA desde os tempos da nossa caminhada iniciada nos matos profundos a onde voltei e de NÓS nunca me separei!
Quanto eu gostaria que estivesses tempos mais demorados nesta cidade,teria todo o tempo para te mostrar outros recantos,das 7 colinas com vistas panorâmicas sobre a cidade, sobre o rio visto das 2 margens e ate um passeio de barco até à foz…Mas raramente vens com tempo para conhecer,trazes outras tarefas para cumprir ou viagens para sair! Aproveita este convite porque eu não duro para sempre e gostava muito de ainda fazer algumas destas voltinhas contigo e com o Manel…
Que bela crônica gostei muito, fez -me recuar a minha juventude continuem
Que belo texto. Parabéns escritora!
Ah Lisboa do Campo das Cebolas e da Estação de St Apolónia!! Onde antanho se apanhavam os melhores, mais rápidos e sobretudo mais baratos transportes para o Porto! Quis o destino que lá vivesse quase dois anos no tempo que referes nesta crónica mas nem por isso me entrou coração ou na alma. Uma injustiça que estou a fazer a Lisboa eu sei, mas que queres, vivemos num mundo injusto. Justiça tenho de fazer à claridade da tua escrita que apaga subtilmente a fealdade das paisagens que pintas.
Isabel, adorei a tua escrita! Pelo que me é dado ver, tens talento… Aliás, já me tinhas falado dele. Mas é diferente o ouvir do constatar. Obviamente, que vou querer ver outros escritos.
Querida prima
Adorei o teu texto! Que tinhas talento para a escrita, já sabia!…Que escrevias crónicas não .
Não desanimes…ainda tens muito tempo para conheceres melhor a capital!… Mas a cidade onde vives também tem os seus encantos!…
Fico a aguardar outras crónicas…
Um texto de quem tem muito talento, o que aliás não me surpreende.
Acredito que um dia vais dar a escrita o espaço que ela merece na tua vida.
Isa, fenomenal! Dás-nos orgulho de te chamarmos amiga. Beijão
Li e reli e tornei a ler.
Foi como estivéssemos sentadas no degrau da porta da Estação de Santa Apolónia, chegadas do Porto, de autocarro, ao Campo das Cebolas, e a aguardar o amanhecer para umas férias da Páscoa em Lisboa.
Lembrei-me dos croissant com fiambre que a tua mãe preparou para o nosso lanche, lembrei-me dum tempo em que 2 jovens, muito novinhas, eu um pouco mais velha do alto dos meu 18, esperavam o amanhecer na segurança duma Estação de comboios, que afinal fechava das 5h às 6h para limpeza. Lisboa para mim também era uma estranha cidade. Adorei, continua a escrever.
Então atreves-te a escrever coisas tão lindas e eloquentes sem nos dizeres nada?? E, ao que parece, há mais por outras publicações… quero ver, quero ler, quero todas!! Que bela crónica e como me deliciei, eu, Português Angolano, desenraizado e exportado além-mar, com o teu Português elegante e sóbrio!! Parabéns, querida!!
Querida Isabel, já sabia que escrevias muito bem, mas este texto deixou-me emocionada. Tens vários talentos, que eu conheço desde há muitos anos, mas este é um talento especial que deves divulgar pelo Mundo, pela simples razão que ao escreveres o fazes ainda mais bonito!
E aqui fica oficialmente mais um convite, desta tua amiga nascida e criada no Porto, mas a viver maravilhosamente bem entre Lisboa e Oeiras, a quem aprendi a amar, não sem alguma angústia e uma ou outra lágrima nos primeiros meses de vida na capital. Por isso, aguardo ansiosamente uma das tuas vindas à terra dos mouros, para nos revermos num grande e apertado abraço.
Olá Dra. Isabel,
Há já alguns anos que aprecio bastante este seu atributo fabuloso, a escrita.
Já lhe referi algumas vezes e volto a repetir “tem mesmo que escrever um livro”.
Excelente, gostei muito👍
Muitos parabéns!