Se há coisa que falta a Lisboa, é lisboetas. Podia ir pelo óbvio ululante, a cidade multicultural e não sei quê, mas perderíamos tempo porque o Rodrigo Costa Félix já o disse. E para quê repeti-lo, se ainda por cima a voz dele apaixona e a minha nem se vê?

Tudo cai aqui, esta cidade puxa muita gente e, se o seu rio agarra como mãos, que dizer sobre o emprego que prende como grades? Para aqui, migrou parte da minha família materna, e a minha mãe reencontrou as primas por obra de Bill Gates e Zuckerberg.

Importa deixar já o aviso: este lado da família contrasta com o outro. Aqui vive-se até tarde enquanto os Pedrosas fogem à vida no seu auge. Ouçam-me agora, que eu sou lado do pai e não tenho muito tempo.

Na semana passada, durante as férias, conjugaram-se os astros. A minha mãe estava cá, as primas dela por cá vivem e, chuva de meteoritos, a mãe delas viria a Lisboa por uns dias. Ficou assim decidido que os minhotos se juntariam numa casa de minhotos, e o almoço de domingo foi uma coisa de minhotos – frango e vaca assados, arroz e batatas como não se vê na Baixa de Lisboa, no Príncipe Real, nas artérias de Telheiras. Durante aquelas três horas, só os mais aculturados deixaram de lado o betacismo.

Quando a minha tia-avó chegou, foi bom de ver. Os olhos cintilaram, tia e sobrinha abraçaram-se como dois passados que se encontram – a vida disparou. Eu ainda me apresentei como sendo a filha da minha mãe, mas ela sabia quem eu era. Mal a conheço, mas conheço-a bem porque existe desde sempre, e uma das minhas primeiras memórias é com ela.

A minha bisavó morava em Celorico de Basto. Dela, só me lembro do cabelo branco, fino, preso num puxo, uma saia travada preta e uma camisola preta. A minha memória, claro, assenta numa fotografia, é uma recordação feita batota. Mas lembro-me, e isso é sério, de a ver deitada numa cama, naquele limbo de quem sabe que faltam poucos dias.

No piso térreo, vivia um cavalo. Eu teria uns três anos e queria ver o cavalo. Os adultos achavam que avisavam, mas só me informavam: “Olha que isto está cheio de urtigas.”

Fiquei a saber o nome das plantas, eu, que ainda nem tinha lido dicionários, mas só soube que picavam quando enterrei nelas as pernas de bebé semi-despido. Depois disso, a minha tia-avó fez uma magia para me aliviar as dores, e a partir daí ganhou um nome: a tia Emília das urtigas.

É bonito, isto de sabermos de onde vimos. E no dia deste almoço a minha tia vinha de uma aldeia depois de ter colhido um carro e meio de batatas, que isto de ter 77 anos é coisa para meninos. De onde vinha antes disso, para mim era um mistério.

Tenho um amigo que vive o infortúnio de ser trineto do Eça de Queiroz. As pessoas comparam-nos, acham estranho que ele não tenha um bigode, dizem-lhe que o pêlo no buço devia estar nos genes, e muito se espantam quando ele não usa óculos ou quando põe uns com duas lentes. “Então, não vês só mal de um olho?” Eu, volta e meia, gosto de imaginar o Eça a deixar-se de teorias e prosa realista e traços universais e tal e tal e a cumprir o papel de trisavô, mudando as fraldas ao meu amigo, babando para ele ao vê-lo babar-se.

Ele já não se baba, atenção.

Nem usa fraldas.

Isso era dantes.

Eu, ao contrário dele, nunca soube quem eram os meus trisavós. A família perdeu-se na memória, do lado paterno consigo rastrear até aos bisavós e a coisa depois pára, porque os Pedrosas são gente incapaz de contar uma história até ao fim. Juntámo-nos e quem nos vê julga-nos loucos, com frases meio ditas, histórias mal contadas, perguntas a que ninguém responde e outras que ninguém faz.

As lendas de família falham sempre o clímax porque um tio-avô diz sempre, pausado e grave: “Ninguém sabe.” Como se não bastasse, só nas certidões de óbito descobrimos os nomes oficiais dos parentes, e aí já não vale a pena deixar de chamar Albano ao Joaquim.

Ora, a minha tia rastreou até onde é humanamente possível, e revelou-me o meu parente mais longínquo. O Agostinho tinha sido posto à porta do casal que o adoptou, e a partir daí formou esta linhagem. Tinha sido um bebé posto e depois deixou de ser, ou seja, era um ex-posto, o que fez dele o Agostinho Exposto.

O neto dele era o Zé, tinha a vida nos montes e a casa metida num buraco. Passou a ser “Zé do Buraco” e a família que ainda lá mora ainda hoje é a família dos Buracas, apesar de um dos filhos se ter mudado para um alto, passando a ser chamado António do Alto, ainda que aquilo se chame Carvalhinhos.

A vida que passou morre se não for à boca da gente. E é porque se fala, e porque os fios de gente interessam, que se acaba por discutir o que quase ninguém vivo lembra. Tipo isto, que agora escarrapacho num jornal: com 3 anos, ou seja, a idade em que, 60 e tal anos depois, eu me cortei naquele sítio com urtigas, a minha avó perdeu-se entre os montes. A mãe, que ia alambicar para Casal de Ninos, deixou tudo para gritar por ela, mas no meio do mato ninguém lhe respondia. Alambicar, descobri naquele almoço, é fazer bagaço.

Depois de várias horas, a minha avó lá encontrou um senhor que a ajudou. Perguntou-lhe “De quem és?” e ela nem útil nem nada, “Sou da minha mãe”. Sem outro remédio, ele levou-a para casa.

“Tinha um bandinho de filhos, era moleiro”, disse-me a minha tia, como quem acha evidente que os moleiros tenham vários moleirinhos. Eu não acho nem deixo de achar. Que raio sei eu de moleiros? Anui e acreditei, como era meu remédio.

A mulher dele é que não achou piada. “Tantos filhos e ainda me trazes mais?” O homem, reza a lenda, respondeu como um herói: “Enquanto tiver pão para os meus, também tenho para ela.”

Passaram quase 90 anos e a minha tia ainda se indigna, ela, que nem tinha nascido quando tudo isto se passou: “E a puta da fidalga a dizer ‘trazes-me mais’?

Cabem muitas vidas em cada, e, se as aninharmos umas nas outras, temos Alexandria vezes mil. Olhando para a minha tia, vê-se a realidade de quem partiu o chão com uma enxada. A coluna é uma linha fina, de muitos anos a plantar batatas, mas aquilo é um colosso de mulher. Nos olhos, tem a pureza de uma miúda em branco, no sorriso a eternidade de quem roubou a vida aos dias.

E eu, já se sabe, desoriento-me de ternura quando vejo o tempo a atrofiar um corpo. Deu-me vontade de também ser neta dela. E gostei de saber que somos a mesma gente, o mesmo fio de sangue a correr desde há gerações, até um antepassado perdido que ninguém sabe de onde veio.

Depois deste domingo, a tia Emília das urtigas só ficou mais dois dias em Lisboa. Os filhos puxam a saudade, mas a terra puxa mais. E eles mesmos estariam nessa terra se a vida fosse outra coisa.

Durante o almoço, assumi que era escritora-vampiro e que ia usar o que entendesse. “Não te esqueças da tia mais nova”, disse-me ela, com um ar ladino que faz lembrar o da irmã mais velha.

Antes de me ir embora, ainda acrescentou, longa e sábia, “A vida dá muitas crónicas”, e eu perguntei-me se saberia que lhe roubaria esta frase sem explicações nem nada. Mas estamos entre família, o que é de um é dos outros, ninguém se chateia com furtos.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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3 Comentários

  1. Espero sempre ansiosa por uma nova crónica tua e do teu amigo trineto do Eça. Comovo-me sempre, bolas.
    Obrigada.

  2. Gosto tanto de uma boa crónica que não posso deixar de dizer : não foi por acaso que a SPA criou um prémio de Crónica, transformando-a num novo género. Um abraço

  3. Tão bom… ao ler esta crónica na integra, fez-me regressar aos tempos da minha juventude, se é que tive juventude… e recordei os bons momentos que passei com a tua bisavó, minha avó – a senhora de cabelos brancos, como a recordas.
    Cada encontro, era uma história, muitas vezes inacabada, porque não havia tempo para mais pois a erva verde no campo tinha de ser colhida, “cegada” – como se diz em Celorico, para alimento dos coelhos, vacas e cabras, mas, era daquelas histórias que nos deixavam a imaginar como seria o fim.
    Obrigado Barbara, por registares memórias que também fazem parte de nós!
    Fico a ansiar a próxima.
    Beijinhos

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