Há um pormenor que salta logo à vista a quem entra no Núcleo Cicloturista de Alvalade: a vitrine apetrechada de troféus e medalhas, arrecadados ao longo dos já trinta e quatro anos de existência. Além destas peças de memorabilia, há uma outra que não passa despercebida: o conjunto de fotografias emolduradas dos rostos dos seis fundadores do núcleo.
Quem recorda, com um misto de orgulho e saudade, é o major Álvaro Santos, que dia 18 de setembro completa 93 anos. Apesar disso, a idade não lhe pesa. Álvaro continua a ser o exemplo máximo da vitalidade. Tanto tempo depois, ainda monta a sua bicicleta, fazendo jus à fama de ser o “indivíduo que melhor pedala”, segundo conta o próprio.
E, como se não bastasse a agilidade física, a memória continua bem acesa. Para o major, é fácil regressar ao ano de 1987, quando, acelerando na sua bicicleta, acompanhou Domingos Santos, carteiro de telegramas, até Vila Franca de Xira. Nascia, assim, a ideia de pedalar pelo país fora.
Na semana seguinte, Álvaro e Domingos encontravam-se novamente, contando desta vez com a presença de João Matias, atleta de ciclismo do Benfica, e João Pereira, que trabalhava na Petroquímica.
Mais tarde, o núcleo ficaria completo com António Reis, chefe dos serviços de contabilidade do hospital Júlio de Matos, e Joaquim Nunes, médico oftalmologista do hospital Egas Moniz. As sementes estavam, assim, lançadas. “Chegámos à conclusão de que queríamos criar um grupo e dar-lhe estrutura”, conta Álvaro.

E o grupo de cicloturistas (viajantes montados em bicicletas) formava-se. Estabeleceu-se que a “sede” seria em casa de Álvaro, e que os encontros se realizariam no café Nova Lisboa, na Av. da Igreja, em Alvalade.
A procura por um espaço
Com as bicicletas dos fundadores a percorrerem todo o país, a influência do NCA foi crescendo. Algarve, Olivença, Minho Florido são alguns dos destinos evocados por Álvaro. Ao ganhar pujança, a sede do clube passaria da casa do major para a sala do pessoal da Petroquímica, local de trabalho de João Pereira. E, mais tarde, para o clube de Alvalade, na rua João Saraiva, já que Joaquim Nunes fazia parte da direção do Atlético que já ali funcionava.
Chegado o fim do período de ocupação desse clube, surgiria o primeiro obstáculo. Sem sede, os seis membros perguntavam-se o que fazer com os troféus que já tinham sido conquistados. “Parecia só haver uma solução: deitar tudo fora”, lembra Álvaro.
Mas os seis não desistiram. Acabariam por encontrar um espaço no clube dos Coruchéus, ali ao pé, onde ainda passaram uns bons tempos. Entretanto, os caminhos do NCA cruzavam-se com os de João Pedro Gonçalves Pereira, atual Presidente do núcleo. Responsável pelo pelouro do Desporto da Junta de Freguesia de São João Brito (antes de Alvalade ser uma só freguesia), João Pedro decidia, no ano de 2001, convocar uma reunião com todos os clubes da freguesia, criando assim um “dia desportivo”.
“A ideia era colocar o desporto na rua, abrir os clubes ao bairro e chamar as pessoas a participar”, esclarece o presidente. O major Álvaro, imbuído do espírito desportivo, sugeriu então a criação de uma “escolinha da bicicleta”. “Então, não há uma escolinha de ballet, de patinagem, de natação?”, comentou o major na altura.
Foi então que o núcleo transitou dos Coruchéus para o Complexo Municipal Desportivo de São João de Brito, junto da Av. do Brasil e do bairro com o mesmo nome, graças à ajuda prestada por João Pedro Gonçalves Pereira, e a ideia do major ganhou vida: em 2004, inaugurava-se a primeira escolinha da bicicleta do país.
“Isto explodiu!”, conta o major. “Tínhamos de fazer uma lista de inscrições todos os dias”. De facto, são muitas as histórias de sucesso recordadas pelo fundador do clube: os primeiros formadores (entre eles, o próprio major) ensinaram pessoas vindas de todos os cantos do país, alunos com deficiência ou com problemas de obesidade, gente de todas as idades.
E todos aprenderam a dar aos pedais.
Tudo ia de vento em popa quando, em 2016, a mudança de direção do NCA e a realização de obras no espaço levaram a um interregno nas aulas de bicicleta. Só em 2019, com João Pedro Gonçalves Pereira a assumir a liderança de uma nova direção, é que a atividade foi retomada. Dessa vez, porém, a pandemia veio travar a atividade da escolinha. A boa notícia é que os planos para 2021/2022 anunciam um futuro promissor.
A polémica e a escola no Restelo
Em breve, a Escolinha da Bicicleta vai ocupar o terreno do antigo Aquaparque do Restelo. O espaço será cedido pela Câmara Municipal de Lisboa ao NCA e também ao FPCUB (Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta). O objetivo inclui-se no programa de mobilidade da CML, com o intuito de se criar um “centro de formação e aprendizagem para o uso da bicicleta”.
Para além disso, pretende-se a criação de “um espaço de lazer, vocacionado para as famílias”, pelo que se criarão packs familiares para a aprendizagem da bicicleta.
“No espaço de Belém, a ideia é massificar”, salienta o presidente. “Fizemos um estudo para ver os preços que são praticados em Lisboa. A nossa obrigação é ter valores abaixo do mercado”.
Assim terá de ser, até porque a proposta foi aprovada na última reunião municipal do mandato, com a abstenção de PCP e BE, numa cedêcia não sem polémica, por 25 anos, por 80 euros na primeira fase, 73 euros no primeiro ano da segunda fase e de 2.300 euros a partir do segundo ano da segunda fase.
“Há aqui um objetivo social e desportivo: trazer as pessoas a andar de bicicleta”, reforça João Pedro Gonçalves Pereira. O NCA prevê que as aulas possam ser individuais (a decorrer no espaço de Alvalade, que se manterá funcional, ou no do Restelo) ou de grupo (a decorrer só no Restelo).
Estas aulas estão pensadas como aulas de iniciação, mas a ideia é, com o tempo, partir-se para aulas de aperfeiçoamento, tendo em conta o uso da bicicleta nas suas diferentes vertentes: “o uso na lógica do lazer, na lógica da deslocação urbana ou até mesmo para fazer BTT”, especifica o presidente.
É Paulo Sousa, formador, quem, para já, vai coordenar estas aulas. Para além da componente prática que é lecionada, há uma componente teórica, relativa à funcionalidade da bicicleta, que está sempre presente: “Fazemos uma exposição sobre as componentes da bicicleta, transmitimos informação em relação aos sinais de trânsito…”, elenca Paulo Sousa.
A missão consiste, assim, na “educação” das pessoas para a “compatibilização dos diferentes modos de mobilidade”, acrescenta João Pedro.
Por agora, enquanto o novo espaço (que se chamará Eco Bike Park) não abre portas (a sua inauguração está prevista para o dia de aniversário do major, 18 de setembro), as aulas continuam a decorrer como dantes, em Alvalade ou no Parque Desportivo Municipal de Mafra, onde Célia contorna a rotunda com a sinalética de trânsito.
Aos alunos, logo na primeira aula, é oferecido um Guia do Condutor do Velocípede, para que nenhuma regra de trânsito seja esquecida. Assim, quem sabe, talvez um dia, Célia ganhe finalmente coragem para se aventurar pelas ruas da cidade, tal como o major se aventurou (e na verdade, ainda se aventura), naquele dia, há mais de trinta anos.
“É mais fácil ensinar aos 5 do que aos 73 anos”
Paulo Sousa está equipado da cabeça aos pés para mais uma aula de bicicleta. Ao longe, já é possível avistá-lo, com o azul e o vermelho do equipamento do Núcleo Cicloturista de Alvalade (NCA) a reluzir contra a luz do sol. “Costas direitas!”, diz com vivacidade. Célia Machado, montada na bicicleta, veste um colete fluorescente e está protegida pelo capacete na cabeça. Diligente, obedece de imediato à ordem do professor.

Este é o primeiro dos exercícios que Paulo Sousa, que é o mais conhecido formador da Escolinha da Bicicleta do NCA, propõe à sua aluna, numa tarde de sol na Escola de Trânsito do Parque Desportivo Municipal de Mafra: sentar-se na bicicleta e olhar para a frente, com as costas direitas. “É um exercício básico para começarmos a aprender a ter sensibilidade em relação à bicicleta”, explica.
Começa-se assim, e vai-se progredindo. A seguir, Célia flete as pernas, inclina o corpo para a frente e empurra a bicicleta com as pernas, mantendo os pés suspensos no ar durante três a quatro segundos. Depois, é hora de colocar o pé esquerdo no pedal e saltar ao pé coxinho com o pé direito.
Finalmente, começa-se a pedalar. E é então que surgem os pinos ao longo do pavimento e o desafio de contornar os obstáculos no caminho.
Com paciência, chega a altura de se aprender a mudar de direção, a fazer subidas e descidas e ainda a pôr as mudanças. Todo um percurso que costuma demorar umas três aulas. O que, aliás, foi o que aconteceu com Célia Machado, há cerca de três anos, quando veio frequentar as aulas da escolinha. “Sabia andar desde pequenina, mas estive muito tempo parada e surgiu a oportunidade de voltar a pedalar”, recorda.
Mas, apesar deste regresso para uma aula de demonstração, Célia confessa que deixou a bicicleta a enferrujar na sua garagem. De qualquer forma, usá-la no dia-a-dia nunca se lhe afigurou como uma opção: “Tenho medo dos carros”, admite. Porém, voltar a pedalar foi fácil e, em poucos minutos, Célia já revela destreza e rapidez.

“Às vezes, é mais fácil ensinar um miúdo de cinco anos do que uma pessoa com 73”, diz Paulo, que tem visto pessoas de todas as idades recorrer à Escolinha da Bicicleta… e que certamente verá muitas mais, agora que o NCA tem planos de expansão.
* Ana da Cunha nasceu no Porto, há 24 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna.