O Fado é coisa séria. Mas isso não quer dizer que os fadistas e músicos sejam pessoas circunspectas e sisudas. Em muitos casos, antes pelo contrário. O ambiente no meio fadista é geralmente descontraído e bem-disposto – excetuando, por motivos óbvios, os últimos meses de pandemia. E, ainda assim, apesar dos tempos incertos que vivemos, esta comunidade manteve o espírito positivo e o bom humor.

Sempre existiram, na história do Fado, personagens peculiares, caricatas (e algumas caricaturas também). Outras houve que ficaram famosas não apenas pela sua arte, mas também pelo seu requintado humor. Conto falar-vos de algumas delas, mas hoje quero relembrar um querido amigo, que infelizmente já partiu, mas cujo legado artístico e humorístico perdurará na memória coletiva desta comunidade: José Luís Nobre Costa.

Tive a sorte de com ele poder conviver muitos e bons anos, em dezenas de concertos, gravações, noitadas. Para além de excelente guitarrista, era uma pessoa incrivelmente simpática, tranquila, educada e muito bem-humorada. Tinha, aliás, um humor muito inteligente, repentista. E por vezes bastante mordaz!

Das muitas histórias que poderia contar sobre o meu querido Zé Luís, escolhi aqui trazer uma que já pertence ao vasto imaginário do Fado.

Contemporâneo do Zé Luís (mas mais velho), Sebastião Pinto Varela era também ele guitarrista, atuando principalmente em casas de Fado de Lisboa. Era comum nessa geração “pregarem-se” grandes partidas – os ingleses utilizam um termo bastante mais descritivo: practical jokes – aos colegas ou a alguns convivas do meio que, por um motivo ou outro, “se punham a jeito” 😊.

Um certo dia, o bom do Pinto Varela teve a audácia de provocar o colega Zé Luís colocando num jornal de grande tiragem um pequeno anúncio onde se promovia a venda da casa deste, em Cascais. O requinte de “malvadez” foi referir que o horário de contacto teria de ser exclusivamente da parte da manhã, bem cedo, sabendo ele que o Zé Luís raramente se levantava antes do meio-dia.

O resultado, naturalmente, foi uma manhã de horror para o pacífico guitarrista e a sua (e nossa!) querida Leonor, a mulher, com dezenas de chamadas telefónicas a impossibilitarem o merecido descanso matinal.

A resposta não se fez esperar muito, e de forma contundente! Num dos dias seguintes, Pinto Varela começa a receber chamadas de familiares e colegas tentando saber dele. Tinha-lhes sido dito que havia falecido. Espantado, Pinto Varela negou tudo, de viva voz, e tentou, furioso, saber a origem de tal boato de mau gosto. Pois a resposta era óbvia: o seu nome aparecera no obituário do jornal, com foto, as devidas condolências à família. O quadro completo.

De repente, batem-lhe à porta. Do outro lado, um senhor com ar circunspecto, devidamente identificado, responde: venho tirar as medidas ao morto para o caixão!

– Desculpe? Ao morto?

– Sim, o senhor Sebastião Pinto Varela.

– Mas isso é impossível, eu sou o Sebastião Pinto Varela e estou bem vivo.

Mas a coisa não ficaria por aqui. Antecipando tal resposta, o Zé Luís – o óbvio autor da partida – havia referido à agência funerária que Pinto Varela teria um irmão gémeo, que teria graves problemas mentais e que seguramente iria afirmar ser ele o próprio do Sebastião.

– Pois sim, já sei. Mas não se importa de me deixar entrar para fazer o meu trabalho?

A resposta do guitarrista foi fechar a porta na cara do surpreendido senhor, que, no fundo, estava apenas a fazer o seu trabalho.

Dias depois, tudo sanado, amigos como dantes e siga a marinha!

Humor com humor se paga, também no mundo do fado. Este é um dos pequenos episódios que ficou na história e demonstra bem, não apenas o fino recorte destas personalidades, mas também um certo espírito descontraído, tolerante que se viveu durante determinada época e que, de certa forma, se tem perdido nos dias que correm.

E, lá está, o principal motivo para essa mudança deve-se ao facto de que hoje as pessoas se levam demasiado a sério e têm vindo a perder a capacidade de rir de si próprias – que, como diria o grande Raúl Solnado, é fundamental – e de ter uma saudável dose de “poder de encaixe”!

Salvo pequenas incorreções que a distância temporal perdoará, este é um dos inúmeros episódios que o Fado tem para contar e que acrescentam uma certa magia a um mundo fascinante que tento, com estas crónicas, dar-vos a conhecer um pouco melhor.

Neste caso, relembrando, com sorriso rasgado, um saudoso e querido amigo, que tanto me marcou.


Rodrigo Costa Félix

Rodrigo Costa Félix

É lisboeta, fadista com trinta anos de carreira, letrista, produtor, agente e coproprietário do restaurante Fado ao Carmo. Tem quatro discos editados, vários prémios e distinções – nacionais e internacionais – e uma vida inteira dedicada à promoção e divulgação da “canção de Lisboa”.

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5 Comentários

  1. Mesmo co’a má influência // De quem tanto mal lhe quer
    O fado, na sua essência // Pode ser o que quiser;
    Basta apenas conhecer // A raíz de que provém
    P’ra melhor compreender // O brilho que o Fado tem.
    – – –
    Caro Rodrigo, obrigado
    Por tudo o que dá ao Fado!!!
    – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
    Quando puder visite este meu blogue. Obri(F)ado
    http://fadosdofado.blogspot.com

  2. Obrigada Rodrigo por recordar os Grandes do fado como o Ze Luis desta forma leve e divertida

  3. Querido Rodrigo. Depois passou a ter muita graça, mas o corrompido começou às 8 horas da manhã. Para quem se deitava às 4. Obrigada por se lembrar do grande sentido de humor do Zé Luís! Era realmente uma das suas melhores características . Abraço muito amigo.

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