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Há uns anos atrás recebi em Lisboa um grupo de australianos que vinham prontos a conquistar as ondas lusas. Acho que até então não tinha sequer grande ideia sobre o que esperar destas pessoas vindas de paragens tão longínquas, sabia que se pareciam aos ingleses, mas bronzeados e com um pouco mais de estilo, tinha ouvido dizer também que os problemas escasseavam lá na terra deles, mas pouco mais sabia.
Ao chegarem ao aeroporto vejo uns rapazes com bonés de pala virada para trás e mangas à cava coloridas. Saltavam, gritavam e empurravam-se mutuamente, parecia um grupo de Jack Russell Terrier soltos no aeroporto. Era de noite e foram para o hotel descansar, tinha a suposta missão de os levar no dia seguinte às melhores ondas da nossa costa, e assim o fiz.
Recolhi a malta no hotel de manhã e perguntei se queriam dar uma volta pelo centro de Lisboa antes de arrancarmos litoral fora, não houve grande entusiasmo por parte dos rapazes, eram surfistas e pareciam não querer mais adjetivos nas suas contas pessoais.
O caminho de carro foi todo passado a falar de swell, shorebreaks, beachbreaks, reefs, barrells e afins, tentava sacar algum tipo de inspiração com perguntas sobre a gigantesca ilha de onde vinham, mas a resposta inevitavelmente levaria a mais um chorrilho de termos técnicos sobre pranchas a deslizar no mar. Podia não ser surfista, mas vivo ao pé do mar e sei que nadar contra a corrente é cansativo e não leva a lugar nenhum.
Gosto muito de praia. Gosto de ir à praia no verão e gosto de ir à praia no inverno, gosto de praias com areal amplo, gosto de pequenas praias de pedra, gosto até de praias onde nunca fui, daquelas com palmeiras e famílias com os calções de banho e biquíni a condizer. Não estava a gostar de ir à praia com os australianos, tentava evocar algum existencialismo e algum romantismo a cada paragem ao pé do mar, mas os Jack Russel Terrier que viviam naqueles corpos musculados, bronzeados e sem problemas, apenas queriam que eu me calasse, abrisse a porta da furgoneta para que eles pudessem ir brincar no mar.
Foquei no binómio mar-hotel e fiz o meu trabalho, contudo voltava a casa e de cada vez que me olhava ao espelho via que não estava a alimentar o meu espírito, via uma cara com falta de nutrição, sentia-me como aqueles senhores aborrecidos que empurram a manivela para que a roda gigante gire sobre o mesmo eixo mais uma vez, ignorando a alegria e expectativa da pequenada que nela quer entrar. Um movimento robótico e repetitivo como as minhas idas à praia com os australianos.
Tinha de haver algo que despertasse o interesse por algo diferente neste jovens! E foi então que me lembrei de um livro de Pete Brown “Three Sheets to the Wind” que tinha lido. Basicamente, o título significa encharcar a vela, ou em sentido lato, apanhar uma bebedeira. Neste livro o autor, que é um aficionado de cerveja, sai do país dos ingleses, mas daqueles sem estilo, dos originais, e viaja pelo mundo a descrever comportamentos e curiosidades sobre os consumidores deste e de outros néctares etílicos.
Pete Brown vai a países com problemas e outros sem, sendo que no caminho faz uma análise antropológica divertida sobre a maneira como ambos se enfrascam. No capítulo sobre a Austrália vinha descrito que durante grande parte do século vinte, os bares fechavam pelas seis da tarde, sendo que o normal trabalhador cessava funções pelas cinco. Fazendo as contas isto deixava pouco menos de uma hora para que o comum sedento mortal pudesse encher a cara.
A fusão da restrição e da sede resultava numa data de ingleses com estilo numa sôfrega deglutição de líquidos até que as portas dos pubs fechassem. Os danos colaterais eram visíveis, parece que era normal ver vários adultos envolvidos em cenas de pancadaria e a vomitar pelos cantos ainda durante envergonhadas horas da tarde. Talvez fosse esta a minha deixa, talvez a sede nos unisse. Apenas via os surfistas a beber pirolitos nas ondas, toda a gente sabe que beber água do mar faz mal, e o meu avô sempre me disse que beber vinho fazia de mim um homem, portanto utilizei o álcool e consequentemente os cafés, tascas e bares, para levar os moços a conhecer a capital do país. Eles caíram que nem patinhos ou que nem tordos, não me lembro bem…
Fomos de tasca em tasca afogando a minha inquietação até que por entre ruas e vielas, fitámos o Castelo de São Jorge de soslaio. Um dos rapazes agarra-me com força no ombro esquerdo e puxa-me para junto dele, coloca o seu braço à volta dos meus ombros e aponta vigorosamente para o castelo iluminado lá em cima do monte.
“IS THAT A REAL CASTLE?” gritou ele.
Eu não sabia bem o que responder, mas achei que sim era a resposta que menos me comprometia. Ele juntou o resto dos rapazes e ali ficaram pasmados a contemplar aquele histórico edifício, sendo que a pergunta voltou a ser reforçada pelos restantes.
“I CAN’T BELIEVE IT, IS THAT A REAL CASTLE?”
Tentei explicar que aquela e outras estruturas idênticas espalhadas pelo país, serviam, entre outras coisas, para proteger as pessoas de ataques externos. Expliquei que nos castelos travaram-se batalhas reais onde pessoas da equipa que estava dentro lutavam contra a equipa adversária que normalmente estava fora, mas queria ir para dentro e hastear a bandeira da sua equipa. Lembro-me de fazer uma analogia com duas formações famosas de rugby que me vieram à memória, lembro-me também de ter deixado a ressalva de que não havia árbitro neste jogo dos castelos. O resultado das guerras travadas era parecido ao resultado da “Six O’Clock Swill” a tal infame lei vitoriana que fechava os bares quando os ponteiros batiam nas seis da tarde.
Expliquei depois que não se fazem castelos há muitos anos e que nenhum foi feito a fingir. “Ouvi dizer que na China fizeram alguns castelos a fingir e acho que na Disney também, mas não sei mais sobre isso, estes que veem aqui são dos outros, dos de verdade” comentei.
“JÁ NÃO SE FAZEM CASTELOS?!” perguntaram.
“A construção de castelos ainda é uma tarefa muito séria, poucos dominam essa arte e estão em vias de extinção, dizem por aí que é por falta de tempo e que vão desaparecer por completo. Quando forem às praias de países com problemas, olhem com atenção e procurem pessoas pequenas de joelhos na areia, são esses os últimos arquitetos…”
*João Santos Pereira vive entre o Mediterrâneo e a sua querida Lisboa. Fingiu estudar em vários sítios, de onde até um Mestrado em Gestão Desportiva surgiu, mas sempre aprendeu mais com as pessoas do que com o ensino estabelecido. Viaja pelo mundo, a pé sempre que pode, o mesmo aplica na cidade das sete colinas. Gosta de beber vinho tinto e de jogar à bola, acompanhado por gentes de falas várias, sempre que possível. Dedica posteriormente o seu tempo a escrever as aventuras que daí advêm.
Os Jack Roussel e os australianos musculosos é uma comparação incrível!! Consigo imaginar perfeitamente a trupe surfista embasbacado a olhar o castelo! Escrita fácil, perspicaz e ás vezes cáustica. Faz-nos bem! Muito bom! Os australianos que perdoem mas merecem a crítica velada. São para mim um pouco vazios de conteúdo, amorfos. Por eles não vem mal ao mundo… nem bem!