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Eu e a minha avó tínhamos o sonho de Lisboa. Quando eu era pequena, ela era o mundo que tinha ido ao mundo. Tinha ido à Palestina e eu sabia lá que raio era a Palestina. Meses depois de morrer, mandei-me para lá num ápice porque achei que no Médio Oriente iria encontrar um burburinho dela. E, à noite, enquanto a Cidade Velha dormia e alguns soldados e judeus sondavam ou rezavam no Muro das Lamentações, eu vi a mesquita atrás e pensei na minha avó. Pensei “tu também estiveste aqui”. E pensei que, depois de já não estar, eu fora lá para inventá-la.
O Alzheimer roubou-nos os planos, o tempo também. Na mesa da cozinha, enquanto a ajudava a ler, punha-a a repetir os nomes dos netos (mais Ana Bárbara do que Pedro ou Dimas), perguntava-lhe o que era o mundo, a ditadura, a fome. Perguntava-lhe o que era a vida. E ela, a juntar letras como quem sabia pouco, lá me mostrava, até sem querer, que era eu quem não sabia nada.
Eu, que comia bolachas Maria com ela, não podia saber o que era tirar pão duro da boca para dar ao irmão mais novo. Eu, que passeava pelo parque junto ao rio, não podia saber o que era gastar tendões em busca de água. Eu, que dizia o que sabia, não podia saber o que era calar a boca quando o marido fugia da PIDE para França. Eu, que era filha e neta, não podia saber o que era dividir um ovo estrelado em quatro quando um dos quatro filhos fazia anos em pequeno. Eu, que não era rica, não sabia o que era a miséria de ter vivido Salazar.
Eu não sabia nada. A minha avó, inteira e compacta, sabia tudo. E, enquanto juntávamos letras ou descascávamos favas, ela contava-me a vida. Dizia-me o que eram as pirâmides do Egipto, as escadas íngremes e finas, as dezenas de pessoas ali dentro a sorver o ar em golfadas, e eu sentia o sufoco de estar num triângulo de pedra onde o O2 não chegava.
Tinha ido ao Cairo, a Jerusalém, a Lurdes. Tinha ido à Trofa, ao Gerês, ao jardim tomar café. Vivia na minha casa e tinha ido ao mundo todo.
Eu, que orbitava entre Vizela, Guimarães e Nespereira, só conhecia o meu vale, a minha vida e os meus livros. Perguntei-lhe se já tinha ido a todos os sítios do mundo, e ela disse-me: “Só me falta a Madeira.”
Ficou ali dito que, quando eu crescesse, iríamos à Madeira. “Vamos só as duas, assim só precisamos de um quarto.” Eu ainda disse que, se fosse com o Pedro ou com o Dimas, também só precisaria de um quarto. A minha avó respondeu que, como eles eram rapazes, seriam precisos dois.
Não sei se discuti de volta. O argumento pareceu-me descabido. Quantas noites teriam já dormido na mesma cama? E, depois desses anos, quantas fraldas lhe mudaram um e outro?
Claro que, nessa altura, eu ainda não cogitava o fim. O Pedro parecia-me um adulto (ainda hoje é um Matusalém), o Dimas parecia um bebé de fraldas (hoje também parece), e eu, quando crescesse, iria à Madeira com a avó.
Uns anos depois, a velhice deu os primeiros passos, a minha avó desistiu da Madeira. “As escadas do avião são muito altas”, dizia-me ela. Sem nunca ter tirado os pés do chão, eu acreditava, embora me custasse que se desistisse assim de um sonho.
O sol entrava pela janela e ela disse “Podemos ir antes a Lisboa”. Mas o plano era a Madeira, que interessavam as escadas? Subir escadas era fácil, levá-la ao colo seria a minha obrigação, a minha missão, o meu amor. Eu tê-la-ia posto no avião. Bastava que os olhos cintilassem, que ela me deixasse amá-la até ao fim.
Mas mais teimosa do que eu era ela. O plano da Madeira tinha ido ao ar, ainda que eu me recusasse a aceitar a vida, ainda que eu insistisse em sonhar por cima de nós as duas. Eu queria tanto ser só com ela, usar a vantagem dos meus genes sobre os outros netos.
Ela dizia “Agora já estou velha”, mas era impossível explicar o fim a alguém que começava. Eu não cogitava a morte, a velhice era uma coisa incólume. A minha avó, para mim, era velha como tinha sido sempre, era o que fazia dela avó. O que mais me fazia impressão era que aceitasse não poder andar para a frente.
A minha insistência encarou a dela, a minha insistência foi humilhada pela dela. A conversa terminava sempre com “Podemos ir antes a Lisboa”. Eu só sabia que Lisboa ficava longe e que aparecia nos poemas, que era a capital de Portugal e que os barcos do Brasil paravam lá. Devia ter uns 9 anos quando li Pessoa ao Cesário: “Enfeito, no meu coração, a Praça da Figueira para ti.” Pessoa era Lisboa, Cesário era Lisboa, e eu queria enfeitar a Praça da Figueira para a minha avó. Aos poucos, esqueci a Madeira, comecei a querer ir a Lisboa.
Os nossos planos eram sérios, mas a vida meteu-se pelo meio. Quando eu me mudei para Lisboa, já a minha avó se desfazia entre lençóis. Quando emigrei para o Brasil, sabia que tinha de ter na conta dinheiro para uma viagem urgente a Portugal. Quando voltei, ainda cá estava, mas por pouco. Um dia, o meu primo Pedro ligou-me. Não teve de acabar a frase para eu saber que tínhamos de nos despedir.
Nos seus últimos dias, dei-lhe a mão, li-lhe poemas, um livro de Saramago. Ela era alimentada por uma sonda, os olhos estavam vidrados com imagens à toa, estar eu ali ou um pato devia ser o mesmo. Não sabia quem eu era, mas isso pouco importava. Eu sabia que ela era a minha avó, fazia o que tinha a fazer por causa dela.
Sentia-lhe a pele frágil, quase pousada sobre os ossos, e queria pegar nela ao colo e levá-la a pé ao topo de uma montanha em busca de um milagre. O problema era que ela já era o meu milagre.
Amei-a até ao último segundo, depois amei-a mais um pouco e voltei para a minha nova casa, onde continuo a amá-la noite e dia. Tivemos décadas, uma família, hábitos, uma casa que era nossa e um regresso. Fizemos planos, não os cumprimos.
Hoje, parece que ainda vive em toda a parte. É no que dá o amor total, nunca ter sido amada a meio-termo. Nenhum de nós falhou alguma vez na missão de a adorar até ao fim, foi uma força vulcânica que nenhuma preguiça venceu.
Hoje, quem entra num apartamento em Benfica depara-se com livros de História e fotografias dela. Onde eu estiver, ali estará também a minha avó.
Viveu 84 anos. Teve filhos, perdeu filhos. Teve netos, ganhou netos. Teve tudo, tivemos tudo. Só nos faltou Lisboa.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.
Há que ser avô, penso eu, para poder sorver estas linhas e torná-las minhas, mas ao contrário. Também penso e faço o que posso para que os meus Filipa e Augusto conserven em si mesmos o carinho que hoje me professam para além da vida minha. Como escreves da tua avó gostaria eu de poder escrever sobre os meus netos. Com um beijo, os meus parabéns.
Que testemunho inteiro, muito obrigada!
Muito bom! Soma e segue.
Bela crónica sobre uma avó… Eu também adoro a crónica. A sua simplicidade torna-a um género único. Posso fazer uma pergunta? Eu chamo-me Eugénia Pedrosa. Por acaso, Ana Bárbara, ouviu falar na sua família de uma senhora Aureliana Pedrosa? Era minha avó e também ela de Vizela. Gostava muito de saber…
Cara Eugénia,
Não conheço, mas é possível que tenhamos algum grau de parentesco. Muito obrigada pelo seu comentário!
Fiquei esmagada. Há tanto de mim e da minha avó neste texto! Outros nomes, outras terras, mas tanto da vida e do amor incondicional em comum com a minha história de vida com a minha avó.
Parabéns. Pela escrita, por “verter” em bom português tanto sentimento e emoção (e tanta verdade!).
Ana Bárbara, muitos parabéns. Que texto maravilhoso. Vou passar a estar atenta ao que produz.
Que lindo é o seu texto e que maravilhosa era a sua Avó!
Que continue viva no seu coração e na sua memória!