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A processar…
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Quando se chega aos 80 e muitos, parece que se deixou muito para trás. O truque é, então, levar a vida para a frente, arrancá-la à lassidão, fingir que não há peso nas costas e, enfim, fazer o que se pode.

A Izaura e a Maria Jacinta faziam o que podiam. Irmãs com quase dez anos de diferença, a primeira, volta e meia, sentia-se mãe da outra. As duas eram bisavós, tinham enviuvado há pouco, mas o encanto estava lá. E o Jorge sentiu-o, já o sentia há muito tempo. Assim que o Paulo morreu e a Izaura ficou a sós, ainda com a esposa no lar, mas já a ponto de morrer, confessou-lhe o seu amor, disse-lhe com as letras todas “Gosto de ti desde os tempos de solteiro”. Para a Izaura, gerir isto não foi fácil. Primeiro, porque não, não e não. Segundo, porque ele era o melhor amigo do Paulo. Terceiro, porque a história se reescrevia toda num só golpe. Quarto, porque ela era amiga da Zulmira, e o alzheimer tirara a memória a uma e não a outra. Quinto, porque, dizia ela, tinha lá idade para essas coisas.

Mas o Jorge insistia. A Zulmira estava no lar há cinco anos, já não havia nada ali. Ele visitava-a todos os dias, pedia-lhe perdão pela atracção por outra, mas só levava dos seus olhos uma nuvem de cabeças esquecidas. Insistia, ruminava, culpava-se, e ela nem uma nem duas, até que o homem decidiu que tinha de seguir com o que tinha. Continuava casado e a visitar a mulher todos os dias, mas era hora de encarar o seu amor.

Por isso, ligava à Izaura. “Queres almoçar amanhã?” E ela, fazendo-se de parva apesar dos 88 anos de lábia: “Sim, sim, eu e a Jacinta podemos almoçar amanhã.” Ele tentava e tentava, parecendo conhecer a fronteira entre a sedução e o assédio, até que um dia a Maria Jacinta se atrasou e ele tentou beijar o seu amor como quem não quer a coisa. Ela fugiu como quem não quer a coisa e a partir dali nem mais uma palavra, mas, mais do que isso, a partir dali nunca mais sair de casa sem a muleta da irmã. Ainda por cima, tendo enviuvado no mesmo ano, tinham vendido as casas que tinham – uma na Charneca da Caparica, outra na Vila Nova da Caparica – e resolvido ser meninas da capital, cada uma com um T1 pequeno e fácil de limpar na Penha de França, um em frente ao outro, no mesmo prédio, mesmo andar, a dez minutos de metro de pelo menos um dos filhos de cada.

Irmãs a sério, até a Lili partilhavam, um pequeno caniche que batia à porta da Izaura quando a Maria Jacinta o obrigava a fazer dieta. Face às novas condições, faziam a vida dos reformados: viam o 24 kitchen, assavam pernil aos domingos e à tarde cruzavam-se com os outros reformados na Paiva Couceiro. Foi por acaso que conheceram o Jacinto, que, de muletas, andava tão devagar que elas pareciam o Obikwelu à beira dele. Para além da perna torta e de uma corcunda digna de descrições do Victor Hugo, pendurara sacos nos ajustes. Olhá-lo afligia, ajudá-lo era uma urgência. Já não tinha cabelo na cabeça e mal tinha braços para as muletas.

A Maria Jacinta ofereceu-lhe ajuda, malgrado os quase 80, sabendo que ele morava na rua perpendicular à delas. Ele, sem ceder a um orgulho fatalista, aceitou-a porque a vida já não estava para cerimónias, e seguiram os três, com ele a queixar-se da vida e da velhice. A frutaria levava-lhe as maçãs à porta, com o supermercado era mais complicado, o tempo tinha passado e sentia-se sozinho. Tinha muitas dificuldades no corpo e na vida, era uma vítima da sua condição, ele que não merecia nada disto.

Elas deixaram-lhe os sacos à porta e trocaram números de telefone para o caso de ele precisar de ajuda ou de alguém precisar de companhia. A Izaura ainda disse: “Olha, chama-se Jacinto, está mesmo bem para ti”, mas a Maria recusou-se, já se tinha visto livre de homens, não ia cair no mesmo erro, e ainda por cima chamava-lhe velhote, apesar de ele ser muito mais novo.

Ainda assim, foi a ela que ele começou a telefonar. A frequência era tanta que parecia apaixonado, mas pedia uma lata de atum ou um litro de leite. Antes isso do que o Jorge a pedir beijinhos à irmã.

Ajudavam-no sempre as duas. Iam cheias de boa vontade, mas a coisa subiu para os 50 euros de compras e vários quilos, e ele ainda por cima refilava porque elas se esqueciam de dar o contribuinte dele e queria que fossem ao supermercado só para ele. E assim aconteceu uma vez, e as duas chegaram carregadas de compras, sacos do Pingo Doce em cima de um total de 167 anos de mulheres.

Foram entregar-lhe os sacos enquanto ele refilava porque alguns dos morangos estavam podres, elas não tinham trazido a marca certa de bolachas, tinham levado um frango mas havia outro mais barato e se tinham esquecido do folheto para ele ver as promoções. Todas atadas, pensavam na forma mais cordial de o mandarem dar uma volta, mas inquietava-as o mistério: a casa, apesar do homem de muletas, estava um brinco. Ele parecia desarticulado em cima do seu corpo, usava utensílios de alumínio para se erguer e aquilo tinha ar de ter empregada a tempo inteiro. Bastaram 30 segundos de dúvidas para que o mistério fosse ao ar: uma mulher saiu de um quarto, e era a dele.

Assim que a viu, o Jacinto, que já tinha as compras em casa, afastou-se a barafustar sozinho, e a Irene esclareceu tudo. Não se falavam porque ele era insuportável. Sem paciência para o seu mau feitio, e porque ninguém aguenta um homem que é só peso, ela tratava da casa porque não queria viver numa pocilga, mas ele que se arranjasse com a vida que era sua. Juntos, só tinham um passado e um papel assinado há muito tempo. Tinha levado porrada às mãos dele e o que mais lhe custava era que nem depois de velha se pudesse libertar. Tinham sido 42 anos de casamento, e havia 41 que ele era cruel e irascível, ciumento e invejoso, exigente e tortuoso. Exigia, reclamava, berrava. Desde a última trombose, pelo menos não batia. E como teria ela gostado de o ver cair sem ajuda, mas faltava-lhe aquele quê de crueldade para o fazer tropeçar, embora muitas vezes sonhasse que lhe desaparafusava as muletas.

Quando lhe perdeu o medo, deixou de trabalhar para ele. Dividiam a renda a meio, ela cozinhava para si, ele escravizava as vizinhas para que lhe trouxessem frango assado do supermercado mais barato. Depois disto, embora a contragosto, a Izaura e a Maria Jacinta ainda o ajudaram umas vezes, depois cansaram-se, puseram-lhe o óbvio à frente: “Sabe como é, tenho 88 anos, a vida também não está fácil para mim.”

Quando se fartaram de vez, começaram a cruzar-se na rua com a Irene. Queixavam-se as três dele e, como a raiva por outros fortalece laços, agora são amigas. Como a Zulmira já morreu e o Jorge tem olhos azuis, duas casas e uma boa reforma, a Irene acha que a Izaura comete um erro ao não lhe dar uma chance.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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