Veículo, faixa de rodagem, distância de travagem e de reação. Foram estes os conceitos básicos que aprendi nas primeiras aulas na Escola de Segurança Máxima de Campolide, onde estou a tirar a Carta de Condução para veículos ligeiros. Logo na primeira aula, o instrutor fez questão de frisar que “o homem é o elemento mais importante da faixa de rodagem” e que “a falha humana é a maior causa da sinistralidade”.
Muito por alto, falámos ainda sobre “utilizadores vulneráveis” e “condução defensiva”. Mas a primeira vez com que me deparei a sério com o conceito de “condução defensiva” foi num dos testes em formato de exame de código que realizamos nas aulas. Foi uma ideia que me causou alguma estranheza: segundo o código, entende-se por “condução defensiva” conduzir de forma a prevenir acidentes independentemente das condições de circulação. Sempre pensei que esta fosse a única forma correta de se conduzir e, por isso, a meu ver, não fazia sentido merecer um conceito próprio.
Já o conceito de “utilizador vulnerável” que diz respeito a todos os que andam de bicicleta e a pé, ou seja velocípedes e peões, com principal foco nos idosos, nas crianças, nas grávidas, nas pessoas com pouca mobilidade ou com deficiência, é ainda mais óbvio. Mas, curiosamente, relativamente recente no ensino dos condutores e no Código da Estrada. Foi uma das alterações feitas ao Código em 2014.

A hierarquia de responsabilidades carro>bicicleta>peão
Houve mais alterações: a possibilidade de os velocípedes circularem a par na via com a exceção de situações com grande intensidade de trânsito e em lugares com pouca visibilidade e de circularem na berma desde que não perturbem os peões, tanto como a necessidade dos veículos a motor de salvaguardar uma distância lateral de 1,5 metros. O objetivo é garantir uma mobilidade mais segura para todos.
As Escolas de Condução tiveram de adaptar os seus currículos às alterações ao Código da Estrada. Espera-se agora que os alunos estejam a ser mais sensibilizados para a hierarquia de responsabilidade (automóvel> bicicleta> peão) e para a fragilidade de quem circula sem a proteção que 2 toneladas de chapa de carro oferece.
As estradas já não são só dos carros
Mas não basta passar no exame e adquirir a carta. A formação e a consciencialização têm de ser permanentes e as nossas cidades têm muito para que se adaptar. É preciso mudar ruas e mentalidades.

O que diz o manual: “Os anteriores valores que geriam a nossa forma de ser e viver connosco próprios, com os outros e com a sociedade em geral perderam a sua clareza, o que criou uma dificuldade crescente em percebermos como orientar as nossas condutas”.
Por oferecer uma certa reflexão sobre a atualidade, pode parecer estranho que esta passagem tenha sido retirada de um dos manuais escrito pelo engenheiro António Alves Costa, utilizado pelas escolas de condução na formação de futuros condutores. Faz parte do Módulo Comum de Segurança Rodoviária que pretende dotar o condutor de uma atitude responsável e de um maior civismo perante os outros utentes da via.
Após o atropelamento de uma utilizadora de bicicleta na Avenida da Índia e ao observar os números de vítimas mortais por atropelamento no município de Lisboa, como aluna de uma escola de condução pensei na importância de perceber como estão os futuros condutores a ser formados para a futura Lisboa mais verde, com menos carros, mais peões e mais pessoas a pedalar.
Como diz a citação, os nossos valores estão a mudar e também a nossa mobilidade.

A Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa e Ciclável 2020-2030 (ENMAC 2020-2030) aprovada pelo Conselho de Ministros em 2019 estabeleceu a meta de uma quota de viagens em bicicleta nas cidades portuguesas de 4% até 2025 e de 10% até 2030. Mas para que isto aconteça, as pessoas têm também de se sentir mais seguras. A mesma estratégia pretende reduzir a sinistralidade rodoviária de ciclistas em 25% até 2025 e em 50% até 2030.
Segundo um relatório da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, em 2019, houve 26 vítimas mortais entre os condutores de bicicletas e 105 feridos graves. Perante a previsão de aumento da presença de utilizadores de bicicleta nas estradas, com as metas da ENMAC 2020-2030 e no seguimento da Petição “Pelo Direito a Pedalar em Segurança”, a Assembleia da República veio apelar ao Governo na Resolução nº29/2019 que se “reforce as ações de sensibilização sobre cidadania rodoviária e proteção dos utilizadores mais vulneráveis, nomeadamente em escolas e na obtenção da carta de condução”, entre outras recomendações
Como as cartas de condução podem contribuir para a cidadania rodoviária
Está definido por lei que o Módulo Comum de Segurança Rodoviário, que aborda temas como o perfil do condutor, o comportamento cívico, segurança rodoviária e mobilidade sustentável, inicia o ensino teórico dos candidatos a condutores de veículos das categorias A1, A2, A, B1 e B. A este módulo as escolas de condução terão de dedicar sete horas. É neste momento da aprendizagem que os alunos devem ser orientados sobre os comportamentos a adotar perante peões e velocípedes.
Maria Almeida tem 20 anos e está a tirar a carta de condução para veículos ligeiros na Escola de Segurança Máxima do Alto dos Moinhos. Recorda-se das suas primeiras aulas e sabe que falou bastante sobre comportamentos de risco, as consequências de uma condução sob influência de álcool, num estado emocional mais atribulado ou com cansaço. Só mais tarde, quando entrou no Módulo da Teoria da Condução e começou a falar sobre os sinais de trânsito, é que foi referida a especial prudência que tem de se ter perante os peões, principalmente crianças e idosos.
O Módulo da Teoria da Condução segue-se ao Módulo da Segurança Rodoviária. São-lhe dedicadas 16 horas. E, mais uma vez, há uma parte que aborda o condutor e os comportamentos que deve adotar perante os outros utentes da via. Este módulo deve ser acompanhado de uma componente prática em que o aluno pode fazer-se à estrada com a supervisão do instrutor. Este é o momento que Ricardo Vieira, Diretor de Serviços da Associação de Escolas de Condução, considera fundamental para que o candidato a condutor perceba o seu papel e responsabilidade na via ao ter de interagir com os outros utilizadores.
Isto porque as primeiras aulas de condução são hoje muito diferentes do que eram. Grande parte das Escolas de Condução recorre a um simulador para habituar os alunos à tarefa. O simulador tem volante, caixa de mudanças, pedais e um ecrã que confronta o aluno com ambientes, manobras e situações comuns a quem conduz. Tudo na realidade virtual.
Este carro não treme e não anda, só na realidade reproduzida pelo ecrã. Este carro tem espelhos diferentes, dentro do ecrã. Este carro não tem parte de trás, nem parte de lado, não tem bagageira e o sistema virtual a que está associado muitas vezes falha. Não conseguimos adquirir as competências básicas de noção de espaço e muitas vezes acabamos irritados e frustrados porque o sistema não funciona.
É uma boa introdução ao uso dos pedais ou da caixa de rodagem, mas não mais que isso.
Eu e a Maria Almeida partilhamos uma experiência idêntica com o simulador. Uma das lições é feita em ambiente urbano, temos de reagir aos sinais luminosos e de velocidade que nos aparecem, aos outros veículos e às ultrapassagens. E também aos peões.
Ambas nos recordamos que, na realidade virtual, estes peões eram um tanto fantasmagóricos, ora estavam ainda a uns metros da passadeira, ora, no instante a seguir, já estavam à frente do nosso carro a passar a estrada. Se lhes tocássemos o vidro virtual partia-se e do outro lado ouvia-se um grito. Mas era estranho e não dava, de todo, a noção da realidade.
Quando a Maria confrontou o instrutor com a situação, este respondeu-lhe que não era nenhum erro do sistema: os condutores devem estar preparados para qualquer situação e os peões idosos e as crianças podem ser imprevisíveis.
O mesmo é dito nos manuais das escolas de condução.
Maus hábitos ainda antes das aulas de condução
Hoje em dia, só depois de oito aulas com o simulador é que se pode passar para as oito aulas na estrada. “Só com a componente prática é que vêm a exame”, diz esclarece Ricardo Vieira, explicando que isso acontece precisamente para salvaguardar que o aluno percebe a necessidade de respeitar o outro na estrada.
Foi o que aconteceu com a Beatriz Pereira, que tem 19 anos e frequenta a Escola de Condução de Sacavém. Está a terminar a parte teórico/prática em que a última parte aborda a perceção de risco, a distração na condução e a eco-condução. Nestas últimas aulas, Beatriz lembra-se de lhe ser mostrado um vídeo sobre os cuidados a ter com os outros utentes na via, velocípedes, peões e veículos pesados. No Exame Teórico é possível que haja perguntas sobre como lidar com os peões e velocípedes.

Foi a treinar para o exame que percebi que ao longo dos anos já tinha adquirido maus hábitos – até a observar os outros condutores, nomeadamente no que toca ao uso da buzina.
A pergunta mostrava uma fotografia com dois peões a circularem numa faixa de rodagem relativamente estreita, encostados ao lado direito. Já não me lembro bem de todas as hipóteses, sei que escolhi “buzinar para alertar os peões” como resposta. Estava errado. Buzinar pode assustar os peões e assustados estes podem ter comportamentos imprevisíveis. O correto seria manter uma distância de segurança e continuar atrás deles até poder ultrapassar em segurança ou até que os “utilizadores vulneráveis” encontrassem uma berma ou passeio.
Isto, na teoria. Na prática, ainda só tive a oportunidade de pegar num carro uma vez. E foi uma experiência estressante: muitas coisas a acontecer, muitas coisas em que tinha de mexer e a que ter atenção. A minha perna tremia imenso sobre a embraiagem e a certo ponto já nem me lembrava qual era o pisca da esquerda e qual era o pisca da direita. Dizem que com o tempo a pessoa habitua-se e mecaniza os movimentos.
Quantos condutores experientes ainda se lembram das suas aulas de código?
Tanto a inexperiência como a descontração podem ser um problema nos primeiros anos, diz Ricardo Vieira. “Enquanto estiverem com o instrutor, tudo bem. O problema é depois do exame. Depois de estarem mais à vontade é que vão andar sozinhos e isso é que preocupa para os níveis de sinistralidade. Daí o regime probatório”, esclarece.
A Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) reconhece a importância do ensino e dos exames de condução no comportamento dos futuros condutores. Mas no desenvolvimento do Plano Estratégico de Segurança Rodoviária 2021-2030 – Visão Zero 2030 pela Autoridade de Segurança Rodoviária recomenda alguns acrescentos e alterações ao Relatório da Prova Prática do Exame de Condução.
Por exemplo: o aluno pode reprovar se comprometer a segurança do veículo. A MUBi sugere que a esta causa de reprovação seja também acrescentado “a segurança dos seus passageiros ou de outros utentes da via pública”.

Esta é apenas uma das várias sugestões que a MUBi fez chegar ao Presidente do Instituto da Mobilidade dos Transportes para que seja mais explícita na avaliação a necessidade de avaliar as competências de civismo ao volante, adquiridas pelo aluno no decorrer da formação.
Se tudo correr bem, torno-me uma condutora certificada até ao final do ano. Se tudo correr bem e não cometer nenhuma infração nos próximos de três anos, termino o regime probatório e não tenho de repetir os meus exames. Se tudo correr bem na minha vida como condutora, não perco nenhum ponto na minha carta e não terei de comparecer a ações de formação. O Código da Estrada sofre constantes alterações e o condutor como cidadão tem de se manter atualizado. Não basta ter a carta. A formação e a sensibilização têm de ser permanentes. Quantos condutores experientes é que ainda se lembram das suas aulas de código?
Carros, pessoas e bicicletas: e na escola?
Na Avenida da Índia, 70% dos condutores de veículos ligeiros ultrapassaram a velocidade máxima de 50km/h, sendo a média das suas velocidades 57,8 km/h, segundo dados da Prevenção Rodoviária Portuguesa, em 2014,
84,5% dos veículos ligeiros observados não parou no sinal de stop e 82,7% não cedeu passagem, segundo outros dados da PRP. A desobediência à sinalização foi observada em 38,4% dos veículos.
Mário Alves, presidente da Estrada Viva e especialista em mobilidade, explica que existe “um caldo sociológico” e um “paradigma do automóvel” por detrás dos números de sinistralidade.
“As ruas são desenhadas a pensar no carro, o que faz com que as pessoas também se sintam, por razões naturais e humanas, mais poderosas dentro do carro, o que induz a comportamentos menos corretos”. Refere que há uma “distância humana entre quem está dentro do carro a conduzir e quem está lá fora a atravessar a rua”, causada pelo facto de os carros oferecerem mais proteção e conforto.
Com o ar condicionado, o rádio e os airbags, o condutor sente-se deslocado do ambiente urbano.
Depois do atropelamento de uma mulher que circulava de bicicleta na Avenida da índia, no início do mês de julho, a MUBi fez uma petição que relembrou as recomendações feitas pela Assembleia da República, em 2019: a criação de um grupo de trabalho interministerial para lançar e coordenar a implementação de medidas para reduzir o risco de rodoviário sobre os utilizadores vulneráveis, a intensificação da fiscalização, a colaboração com os municípios para a criação de mais zonas de velocidades reduzidas nas cidades portuguesas e o reforço das ações de educação e sensibilização para a cidadania rodoviária e proteção dos utilizadores mais vulneráveis. A MUBi acusa o governo de continuar sem dar resposta a estas recomendações.
Isto apesar de, em 2012, estas questões terem sido estabelecidas nos “princípios orientadores da organização e da gestão dos currículos, da avaliação dos conhecimentos e capacidades a adquirir e a desenvolver pelos alunos dos ensinos básico e secundário” pelo Ministério da Educação e da Ciência.

Antes de começar a tirar a Carta de Condução, tudo o que sabia sobre o Código da Estrada, coisas básicas como parar para atravessar, olhar sempre para ambos os lados, circular de frente para os carros caso não haja passeio, aprendi com os meus pais, por intuição e, ainda muito nova, no jardim de infância.
A formação das crianças é necessária, mas Mário Alves alerta que “ensinar uma criança a ter cuidado perante uma situação injusta é pouco ético”.
O especialista dá conta de que a Estrada Viva e outras associações “têm-se debatido para que os peões e as crianças tenham muito mais uma indicação de cidadania, de exigência, de qualidade de vida e de segurança”. É nesse sentido que é preciso formar as crianças e não no sentido de “adaptação a uma situação injusta”.
As ações de sensibilização sobre cidadania rodoviária e sobre os respeito dos utentes mais vulneráveis não podem acontecer só no momento da obtenção da carta, é importante que o condutor seja relembrado sobre o que é circular como peão, talvez isso reduza a distância.
Neste momento, em Portugal só é obrigatório comparecer a ações de formação quando o condutor tem menos de 5 pontos na Carta de Condução. Um condutor com seis ou mais pontos também poderá comparecer para recuperar um ponto e é impossível que exceda os 16 pontos.
Este sistema entrou em vigor em Portugal em 2016 e pode ser uma forma de garantir uma formação mais permanente. Mário Alves atenta que “ainda está por esclarecer se a carta por pontos teve efeitos positivos ou negativos”.
A formação não deve ser apenas feita pelas Escolas de Condução e num momento particular em que se tira a carta. Uma formação permanente e menos focada no veículo deve acompanhar o cidadão ao longo da vida. Porque esta é uma questão de todos os dias. Para toda a vida.
* Salomé Rita está a estagiar na Mensagem. Nasceu e cresceu em Faro e há dois anos decidiu vir para Lisboa estudar esta necessidade que todos temos de comunicar. Sucessivos confinamentos e restrições afastaram-na da cidade, ainda se perde pelas ruas, mas é perdida na capital que encontra boas histórias para contar.
Um artigo abrangente onde reflete sobre diversos temas interligados com a condução. Fiquei não só informado como também serviu para refletir sobre comportamentos menos corretos que tenho diariamente.
Excelente artigo.
Excelente artigo! Exaustivo e preciso, em vez de superficial e especulativo, como infelizmente se lê em demasiados órgãos de comunicação social.
A Mensagem dignifica o jornalismo, mesmo com um texto de alguém que é “apenas” estagiária.
Muito bem! Eu própria tirei a carta há pouco mais de um ano e sou confrontada com esta mesma realidade. Está na altura de começarmos a criar condições verdadeiramente seguras para os “utilizadores vulneráveis”, mas também a consciencializar os condutores para evitarem os comportamentos de risco. Em Portugal, pecamos muito no incumprimento do código da estrada e nas boas práticas, sobretudo, para com os ciclistas.
E se queremos cidades mais verdes, temos que dar atenção a artigos como este. Muito pertinente.