O Teatro São Luiz tem uma longa história. Data a sua inauguração de 22 de Maio de 1894, começando por se chamar Teatro Dona Amélia, em honra da rainha de Portugal, mulher de D. Carlos. Abriu as suas portas com uma opereta de Offenbach, “A Filha do Tambor Mor”.

Foi Guilherme de Silveira, actor e encenador de poucos méritos, segundo reza a história, quem impulsionou a sua construção. Estávamos já na segunda metade do século XIX, precisamente em 1875, quando o actor associou à sua carreira de intérprete a de empresário com companhia própria, instalando-se no Rio de Janeiro, no Brasil, onde fez fortuna.

De regresso a Portugal, trazia o sonho de um teatro. Em 1892 cria uma sociedade com outros sócios (além dele próprio, os embros eram o Visconde de São Luiz Braga, Celestino da Silva, Alfredo Miranda, Alfredo Waddington e António Ramos), e lança as bases daquele que é ainda hoje um dos mais antigos teatros portugueses e um dos raros que sobrevive à vertigem da “modernidade”.

Mudou de nome com a implantação da República, passou por incêndios e modificações várias, de que um dia daremos nota, teve várias administrações (os membros da sociedade foram-se revezando na empreitada, até chegar aos herdeiros de António Ramos) e, finalmente, foi comprado pela Câmara Municipal de Lisboa, em Maio de 1971. Passa a ser o Teatro Municipal de São Luiz e juntou-lhe uma sala anexa, o Teatro Mário Viegas. Um dia falaremos com mais detalhe desta história riquíssima em pormenores.

Situemo-nos nos anos 60 do século passado. O São Luiz era dirigido por João Ortigão Ramos, jornalista, apaixonado por automobilismo e homem de cinema, e mantinha uma parceria com o Cinema Alvalade, no outro extremo da cidade.

Situado na esquina da Rua Luís Augusto Palmeirim com a Avenida de Roma, esta sala foi projectada em 1945 pelos arquitectos Lima Franco e Filipe de Figueiredo e estreado em 1953, com a exibição do filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto. Resistiu durante mais de três décadas, mas em 1985 foi vendida à Igreja Universal do Reino de Deus. Assim se manteve até 2000, altura em que foi destinada ao abate.

Em seu lugar surgiu um edifício de oito andares, concebido pelo arquitecto Rui Rosa, destinado a habitação, “Hollywood Residence”. Manteve na base algumas das características da antiga sala, nomeadamente um painel de Dorita Castelo Branco, e quatro salas de cinema. Do velho cinema que conseguia reunir cerca de 1.500 espectadores por sessão, restam salas com 80 e 100 lugares. Novas realidades, adaptadas a novas necessidades.

Pois bem, durante décadas, o São Luiz no Chiado e o Alvalade na Avenida de Roma projectavam o mesmo filme. História curiosa e divertida de contar. Quando dissemos que projectavam o mesmo filme não nos referimos a passarem cópias de um idêntico título, mas sim exibirem a mesma cópia.

O engenhoso esquema montava-se da seguinte forma: numa das salas o filme começava às 15.00 horas, na outra às 15, 15 horas. Na que começava mais tarde, antes do primeiro intervalo, exibiam-se um jornal de actualidades, um documentário curto, um filme de animação e ainda trailers de próximas estreias. O filme de fundo só iria iniciar-se em princípio cerca de 40 ou 50 minutos depois do arranque da sala anterior. O tempo suficiente para as primeiras bobines que tinham passado, por exemplo, no São Luiz chegarem ao Alvalade, levadas por um estafeta de motorizada que fazia o percurso por três ou quatro vezes por sessão.

Quando não havia muito trânsito, a coisa corria bem, quando acontecia algum engarrafamento era pior. Um dia, estava eu no Alvalade a ver um filme, e o intervalo nunca mais acabava: o estafeta tinha sofrido um acidente na sua moto e alguém teve que substituir o acidentado e retomar as bobines numa outra viatura. Parece que não foi nada de grave para o estafeta, nem o filme sofreu escoriações a mais do que as normais naquele tempo.

Em 2001, a Câmara de Lisboa editava uma muito interessante colecção chamada “Lisboa Porta a Porta”, para a qual escrevi alguns volumes. Um deles dedicado ao São Luiz. Escrevia então: “Quando vemos, hoje em dia, com alguma regularidade, estrear um filme com 30 ou 35 cópias em salas portuguesas, muitos não saberão que há algumas décadas apenas, nos anos 60, uma mesma cópia de um filme podia ser lançada em simultâneo em dois cinemas de Lisboa, o que criava obviamente alguns problemas de gestão de tempo e espaço. O espectador atento que permanecia no hall desta última sala de espectáculos, durante um dos intervalos, podia assistir à chegada do estafeta com as bobines debaixo do braço, entrando na sala e subindo vários andares, até chegar à cabina de projecção, onde depositava tão preciosa carga, por todos aguardada. Assim se fazia durante as sessões da tarde e da noite, regularmente, sete dias por semana. Durante anos, Elizabeth Taylor e Richard Burton, Marlon Brando, David Niven e Doris Day, entre milhares de outros actores, cruzaram as avenidas de Lisboa, em viagens relâmpago”.

A evolução da tecnologia torna arcaicos textos com poucos anos. Hoje, 2021, já não se importam 30 ou 40 cópias, como nos anos 90. Hoje, o filme é emitido dos estúdios produtores para as salas de cinema de todo o mundo sem necessidade de cópia física.

Durante o seu tempo como sala de cinema, o São Luiz organizou diversos eventos cinematográficos, ao longo das décadas, além das célebres tardes e noites de Carnaval, que durante anos tiveram uma composição mais ou menos constante: um filme de Jerry Lewis, a presença de Ivon Curi, a apresentação de Artur Agostinho, e ainda outras atracções.

Em meados da década de 60, o São Luiz foi o cinema escolhido pela Casa da Imprensa para aí iniciar ciclos cinematográficos de Verão, que dariam depois origem ao primeiro Festival Internacional de Cinema de Lisboa (três edições, as outras no Monumental e no Europa).

Com direcção de Diniz Machado, aí surgiu o ciclo “O Realizador e o Filme”, a que se seguiram em anos consecutivos, novos ciclos, desta feita organizados pelo Vasco Granja e por mim: “Cinema Americano, 1960, 1965” (Maio/Junho de 1966), “Dez Anos de cinema Europeu” (15 a 30 de Junho de 1967), “Alguns d’ Os Melhores Filmes, 1963/1967, eleitos pela crítica portuguesa” (14 de Junho a 1 de Julho de 1968), “Mestres do Cinema Americano” (20 de Junho a 7 de Julho de 1969),  e finalmente “O Fantástico e o Maravilhoso no Cinema” (19 de Junho a 3 de Julho de 1970). Estes ciclos eram organizados conjuntamente no São Luiz e no Alvalade. Com salas cheias.


*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.

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