“É capaz de estar um bocadinho morto.” Diz o polícia, à entrada no carro, como quem adivinha a desilusão dos jornalistas. “Um mau dia para sair em reportagem”. Nunca é. Mesmo que, chegados à esquadra da PSP, na Rua da Palma, em pleno Martim Moniz, o escuro se afigurasse assim, calmo.

O trânsito do dia dera lugar à calma, carros, não mais do que os que conseguiríamos contar pelos dedos das mãos, no ar ecos dos relatos do jogo de futebol que a Seleção Portuguesa disputava frente à eterna rival França.

Mas Lisboa não se conta por uma rua e bastou uma aproximação ao rio, onde os jovens se têm juntado, e os restaurantes abriram muitas esplanadas, para perceber: a noite não seria calma, mas sim uma pequena amostra da festa que a cidade perdeu nas ruas quando esteve confinada devido a uma pandemia.

O que acontece quando a noite cai na cidade da região que agrega mais infeções por covid-19? “Desde que começámos novamente o desconfinamento, o que há mais é ajuntamentos das pessoas. O tempo começa a ficar bom, nós passamos de um estado de emergência para um estado de calamidade, as pessoas acharam que podiam baixar a guarda e que isto já estava melhor”.

São sobretudo jovens que o agente Alexandre Oliveira, oficial de serviço neste dia, se habituou a multar. E multa. São eles, quer portugueses quer turistas, que têm rompido o silêncio em que a noite da cidade repousava. “Grupos grandes, a maior parte sem máscara”. Trazem a sua cerveja, porque a partir das 22h30 o comércio encerra, e brindam à porta de um bar ou jardim que antes lhes dava música. Em nome dos velhos (e não pandémicos) tempos.

Ao volante da primeira ronda da noite a sair desta esquadra, está Paulo Pereira, 39 anos, há mais de uma década neste posto, onde a carreira começou. O agente Alexandre Oliveira, colega de formação, 50 anos, já aguardava dentro do carro, de intercomunicador na mão. É ele o responsável por ditar a rota e fazer as comunicações com a central, através da qual são divulgadas as ocorrências. A cada hora que passa, estão mais perto de terminar este turno de 24 horas que cumprem desde a manhã de quarta-feira, mas a noite – já o sabem – promete sempre mais trabalho.

No banco de trás, nós, jornalista e fotojornalista, como mirones daquilo que ainda ninguém adivinhava vir a acontecer.

Coloque os auscultadores e siga-nos nesta viagem sonora, numa noite passada com a PSP em Lisboa

O carro arranca. O rádio está ligado, mas o volume a que é ouvido torna quase indecifrável o que se diz do lado de lá. Normalmente, “são músicas, porque já basta o stress do dia a dia”. Hoje, há exceção: passa pouco das 21 horas e Portugal perde com França, numa partida decisiva para o Euro2020, embora nenhum destes dois agentes parecesse preocupado com estatísticas da bola. A modalidade que se preparam para jogar é outra: no final da noite, chamaram-lhe “corrida do gato e do rato”, entre eles e os mais novos da cidade.

“You must walk”

No carro, discute-se o que sairá desta noite de jogo. Alexandre Oliveira põe as fichas na tranquilidade. “As pessoas estão a ver o jogo em casa. As que estão nos restaurantes vão para casa assim que o jogo acabar e os estabelecimentos tiverem de fechar.” Ainda para mais, era quarta-feira, meio da semana. Se há mais movimento do que o normal, o expectável é que aconteça às sextas-feiras e sábados, não neste dia.

Até que o carro patrulha chega ao Cais do Sodré.

Com o vidro da viatura entreaberto, o ouvido estranha a diferença ao virar da esquina. De repente, a paisagem de ruas desertas é substituída pela visão de dezenas de pessoas, em pé, vidradas num televisor. O burburinho é quase ensurdecedor. Percebe-se que se aproximam momentos decisivos para a seleção nacional. O agente Alexandre Oliveira agarra no intercomunicador e declara a necessidade de reforços. “Vamos tentar tirar as pessoas dali, as que estão em pé. Vou esperar aqui pela equipa de intervenção e reação que está de piquete.”

Há dias, a transmissão de jogos na via pública tinha sido proibida pela autarquia. Mas o agente da PSP lembra que a questão pode ser ambígua: “se o ecrã estiver virado cá para fora, mas dentro do estabelecimento, não podemos fazer nada”.

A faixa etária dos 20 aos 40 anos tem representado metade dos novos casos na região de Lisboa, uma parcela da comunidade ainda por vacinar.

Cada passo, uma decisão sobre qual a batalha a travar. Na esplanada, iam chegando cada vez mais jovens para assistir à, até então, derrota de 2-1 de Portugal. Sobretudo estrangeiros. A carrinha de intervenção chega, aos colegas são dadas as indicações, porque a história reza que de uma abordagem pacífica podem nascer situações perigosas, e segue-se caminho em direção ao grupo de espectadores ilegalmente ali.

Torna-se difícil de imaginar, com esta imagem à nossa frente, que Portugal está a lutar contra uma pandemia e numa fase ascendente de infeções. A maioria destes jovens escolhe não usar máscara, embora a distância de segurança não esteja a ser cumprida entre a plateia. Mas cada batalha a seu tempo: “mais vale dispersá-los, mantê-los afastados uns dos outros, do que estar a criar atritos por causa do uso de máscara”.

“Portugal, Portugal, Portugal”. Há empate na Hungria, mas a vitória não duraria muitos segundos na Rua do Arsenal. “É para andar, é para andar.” Grupo a grupo, os agentes policiais vão questionando a presença dos que ali viam o jogo, interrompendo os braços no ar e mais uma carica separada de uma garrafa de cerveja em sinal de celebração.

Are you sitting there? No? Then you must walk“, insistem. “Eu ponho a máscara, eu ponho a máscara.” Há quem tente negociações. Mas o problema é outro: pela cidade, iam-se multiplicando os ajuntamentos, as festas improvisadas na rua, as garrafas de álcool no chão e bancos de jardim.

Apesar das tentativas de negociação, ninguém oferece resistência e a Polícia segue caminho por outras ruas da cidade. De volta ao carro, Alexandre Oliveira alerta o colega ao volante: “Se houver mais alguma coisa, voltamos aqui. Mas eles agora vão juntar-se noutros sítios”. Nem a esquina tinha sido dobrada pelo carro patrulha, já se formava nova enchente no restaurante da Rua do Arsenal.

A juventude e o álcool, de mãos dadas

Numa esquina, futebol, numa noutra um espetáculo de fogo. A cidade parecia estar à medida de todos os gostos. E não fossem estes tempos de pandemia, esta seria apenas mais uma noite habitual. Ainda há espaço para artistas, desde que não tenham plateia.

Em frente ao café A Brasileira, o barulho em tudo se assemelha ao de um espetáculo: palmas firmes, ao som de uma melodia que não existe mas que todos vão adivinhando nas suas cabeças; interjeições de admiração e risos. No centro, uma mulher de traje preto e dourado cospe fogo a partir de varas e de um hula hoop, enquanto se espreguiça no chão em trejeitos de ginasta e faz arregalar os olhos de quem passa.

No carro de patrulha, não se levantam dúvidas sobre o incumprimento das normas de segurança que este pequeno espetáculo no Chiado representa. O agente Alexandre Oliveira aproxima-se da artista e pede-lhe que termine o número. Consciente da sua presença, escolhe ignorar o que lhe é ordenado e os espectadores, muitos turistas, aumentam as risadas, ligam os telemóveis e juntam-se à dança da ginasta, como que a validar o interesse que o espetáculo ganhou com a chegada da PSP.

Mas este largo continuou a chamuscar, porque o dever chamou os agentes de regresso ao carro, que correram para o volante com urgência. “Vamos, vamos, vamos. Arranca.” A partir daqui, o que vemos em tudo se assemelha com as séries policiais que nos habituámos a ver na TV: um carro e uma carrinha de polícia a alta velocidade, até em contramão, para responder a um incidente de grande prioridade que acontecia numa das ruelas paralelas à praça do Martim Moniz. Num pequeno comando entre os dois lugares da frente do carro, Alexandre Oliveira aciona as luzes azuis e a buzina para passagem de emergência. Neste ponto da cidade, há festas que não terminaram com palmas.

Foto: Francisco Romão Pereira

Chegados ao local, um rapaz de casaco de ganga com rastos de sangue nas costas, mas não ferido, conta o que terá acontecido. É irmão daquele que diz ser a vítima, que já deu entrada no Hospital de São José, com cortes na cabeça. Tudo começou numa festa de aniversário, no restaurante em frente ao qual relatava o episódio, que acabou em desacatos entre este homem e um grupo de indivíduos que, por aquela altura, já estariam a monte. O cenário não deixa margem para dúvidas: aqui, parecia ter passado um pequeno furação, entre estilhaços de garrafas e marcas ensanguentadas no chão e nas paredes.

Já passava da hora de fecho dos restaurantes, mas este grupo de amigos terá ficado na esplanada até depois do permitido, a terminar as bebidas alcoólicas que terão causado a confusão. O testemunha e irmão do jovem encaminhado para o hospital, com menos de 30 anos, alerta que o grupo de atacantes ainda poderá estar dentro do restaurante, agora de grades e portão fechado. Vários agentes unem-se para verificar o local e abordar a proprietária, que lá aguardava, assustada. Lá dentro, apenas ela e o marido.

É hora de avançar para outra urgência: “Dezenas de pessoas no Jardim Dom Luís [junto ao Mercado da Ribeira] em conflito”. Novamente, as luzes, a buzina e o carro a toda a velocidade, desta vez sem esperar pelo acompanhamento do carro de patrulha. No Príncipe Real, outro jardim onde, não havendo desacatos, se testemunhava grandes ajuntamentos. Mas, assim que se ouve a buzina, as pessoas dispersam, como pombos surpreendidos por um passo firme no chão.

Os que ficam, ficam com a resposta na ponta da língua: “Estas garrafas? Não são nossas. Até as púnhamos no lixo, mas agora com isto da covid…” E, proibidos de beber bebidas alcoólicas na via pública a partir do fecho dos estabelecimentos, reagem com rancor à obrigação de deitar uma litrosa para o caixote de lixo.

Os mais novos estão cansados

A noite fazia-se de rostos jovens, grande parte destapados, em euforia. Há muito que o jogo tinha terminado, mas a noite, como diz o velho ditado, ainda era uma criança – mesmo que a pandemia a restrinja para as 22h30. Sem bares, os jardins e largos tornam-se discotecas a céu aberto, com o álcool sempre presente.

Uma cidade em alvoroço e os números a subir. No início de junho, as autoridades de saúde alertavam: o aumento exponencial de infeções em Portugal tem um grande reflexo nos mais novos. Cada vez mais, afluem aos hospitais pessoas mais jovens e infeções com maior grau de gravidade. A faixa etária dos 20 aos 40 anos tem representado metade dos novos casos na região de Lisboa, uma parcela da comunidade ainda por vacinar.

Mesmo nas instituições de ensino superior, onde foram disponibilizados testes à covid-19, a testagem voluntária não tem sido significativa. Na Universidade de Lisboa, a adesão diminuiu de dois terços para um terço, com a reitoria a considerar a resistência cada vez maior.

“Desde o início da pandemia, o comportamento dos jovens depende do seu risco moral: um comportamento tem de ter um custo pessoal para eles o evitarem. E a culpa, aqui, é do discurso [dos governantes].”

Leonel Garcia Marques, psicólogo
Leonel Garcia Marques, Psicologia Cognitiva e Social

Estão os jovens assim tão tranquilizados relativamente ao impacto da pandemia nas suas vidas? Leonel Garcia Marques, especialista em psicologia cognitiva e social, estudioso do comportamento dos mais novos face à pandemia, explica que esta é “uma reação normal” às circunstâncias, sobretudo para quem, como eles, vive uma fase decisiva de crescimento social.

“Desde o início da pandemia, o comportamento dos jovens depende do seu risco moral: um comportamento tem de ter um custo pessoal para eles o evitarem. E a culpa, aqui, é do discurso [dos governantes]. O nosso discurso não é de união, nós culpamos os jovens, quando o maior risco se prende com a saúde dos mais idosos, e eles não entendem porquê”, explica.

Embora a precaução esteja explicada com o perigo de transmissão para os grupos de pessoas mais vulneráveis à infeção, Leonel Garcia Marques acredita que “se o discurso não fosse de culpabilização e medo, poderíamos ter melhores resultados”. “Há uma certa contradição no discurso: os cientistas enganam-se nas previsões, porque estamos a lidar com uma coisa desconhecida; os governantes tomam más decisões, porque isto está sempre em mudança; mas os erros nunca são assumidos e a culpa é sempre do povo.”

Sem certezas de que ainda haja tempo para dar a volta à retórica, o psicólogo pede mais empatia relativamente aos jovens. “Para quem está a terminar o secundário, está a passar [socialmente] ao lado desta transição. Para quem está na faculdade, ainda mal conhecem os colegas e vão para o segundo ano de curso, sem saberem bem com quem estão a trabalhar [em grupo]. Eles estão a dizer-nos : ‘Estamos cansados do medo’. E temos de os ouvir.”


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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