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A primeira coisa que lhe levaram foi a flor que tinha na mão. Ela não se importou muito. Mas depois levaram-lhe também os dedos e, quando ela julgava que nada mais havia para lhe roubarem, tiraram-lhe o antebraço. Um dia, Petúnia sentiu que alguém trepava por ali acima. Apontaram o spray e fizeram-lhe um desenho na cara. Foi a gota de água que fez transbordar o copo. Não iria suportar mais nada.
“- Estou farta – enuncia num tom cortante. – Estela, vamos tratar da saúde a esta gente. Chama as tuas amigas lá de cima, e alguém vá à Estufa Fria buscar a Patrícia. E vai dizer àquelas mandrionas em frente ao Pavilhão que aqui venham, que tenho uma tarefa para elas.”

Foi assim que começou a revolta das “estátuas anónimas” de Lisboa, tal como a imaginou a artista Isabel Brison.
Mas imaginou mais. Na série online “Ditas e Desditas da Estatuária Lisbonense”, a artista coloca-se na “pele” das estátuas e pergunta-se o que é que elas pensarão disto tudo: será que gostam do sítio onde estão?, será que não preferiam estar noutro espaço?, estarão confortáveis nas suas posições?, gostariam de ser mais reconhecidas pelas pessoas? E o que aconteceria se as estátuas, descontentes, decidissem sair dos seus plintos e fazer aquilo que realmente têm vontade?
À descoberta das estátuas de Lisboa
Isabel Brison é artista plástica e programadora informática e vive em Sidney, na Austrália, desde 2014. O seu trabalho como artista inclui sobretudo fotografia, fotomontagens e, cada vez mais, trabalhos digitais, como estas “Ditas e Desditas”, em que junta a parte gráfica a textos mais ou menos ficcionais e recursos online.

O interesse de Isabel pelas estátuas começou há muito tempo, quando ainda estava em Lisboa, e estudava escultura na Faculdade de Belas Artes, ao Chiado. “Por causa de alguns trabalhos de pesquisa, comecei a olhar mais para o que estava à minha volta e para a estatuária de Lisboa e cheguei a fazer um trabalho sobre o tema da família na estatuária do Estado Novo”, recorda. “Nessa altura, comecei a fotografar as estátuas. E quando, já a trabalhar, comecei a fazer fotomontagens com fotos de arquitetura, achei lógico usar também as fotos das estátuas e utilizar essa ferramenta para pensar em formas de mudá-las de um sítio para o outro e as alterações que isso poderia provocar no espaço. E foi assim que isto começou, há mais de dez anos.”
O trabalho teve, depois, “várias encarnações”, até que em plena pandemia, Ana Bigotte Vieira, programadora do Teatro do Bairro Alto, sugeriu-lhe que voltasse a pensar nas estátuas de Lisboa. “O teatro estava fechado e havia necessidade de fazer uma programação online”, explica Isabel Brison.
Além disso, no ano passado surgiram uma série de polémicas, um pouco por todo o mundo, em volta das estátuas. Em Portugal não se derrubaram estátuas, mas desde a escultura do Padre António Vieira ao Padrão dos Descobrimentos, passando pelos brasões da Praça do Império, tem-se discutido bastante os monumentos, o seu significado e a sua função.

Apesar de estar longe de Lisboa e impedida de viajar pelas medidas sanitárias, Isabel Brison aceitou o desafio. Gostaria de ter podido calcorrear as ruas da capital outra vez, com os olhos atentos e a máquina fotográfica na mão. Mas contentou-se em percorrer o seu arquivo e fazer buscas online: “É também uma forma de matar as saudades de casa, enquanto não é possível viajar”.
“Ditas e Desditas da Estatuária Lisbonense” é, portanto, uma série online em três partes, cada uma com dois episódios. Os primeiros foram lançados em março e incidem sobre “A Praça do Império” e “A Estatuária Retirada em 1974”. A segunda parte foi lançada agora e apresenta-nos “Os Escritores do Chiado” e “A Revolta das Mulheres”. Os próximos episódios chegam em outubro e vão olhar para duas esculturas feitas nos anos 1980 pelos operários da Sorefame como homenagem ao 25 de Abril e colocadas na Amadora e na Damaia.
E se aquelas estátuas não estivessem ali?
“Os primeiros episódios são mais históricos, referem-se a coisas que aconteceram: a Exposição do Mundo Português de 1940 e depois o 25 de abril e o que aconteceu a seguir”, explica Isabel Brison. “Os episódios mais históricos acabam por ser mais políticos, mas isso é porque aquilo que nós guardamos da história na maior parte das vezes é política.”
No entanto, apesar de ter feito bastante pesquisa para este trabalho, a artista não pretende dar lições de história a ninguém. “Já há muitas teses escritas sobre isto”, justifica.
O episódio tem alguma contextualização histórica e é óbvio que refere o agora tão polémico Padrão dos Descobrimentos mas tem sobretudo a capacidade de nos fazer olhar para as outras estátuas da praça e de, ao contar as voltas que algumas estátuas já deram e a quantidade de vezes que mudaram de sítio, mostrar-nos como nada disto é definitivo. Tudo contado com muito sentido de humor, claro.
Mais do que defender a preservação ou a demolição, Isabel defende a reflexão.

“O mais importante agora é ouvirmos as opiniões de toda a gente, sabermos que há este espectro de opiniões e percebermos o que é que podemos fazer, que não tem de ser necessariamente demolir o Padrão. Pessoalmente, não queria que ele desaparecesse completamente, que nos esquecessemos que ele existiu porque acho que ele tem uma história interessante e devia-se preservar alguma memória. Mas é importante pensar sobre estas estátuas e sobre o papel que elas têm hoje”, diz a artista.
“Deveríamos chegar a uma situação em que as pessoas se apercebam do património e em que possamos estar mais confortáveis com aquilo que temos ou então que possamos perceber o desconforto que aquilo eventualmente nos causa e decidirmos se queremos ou não continuar a provocar esse desconforto.”
Retirar as estátuas dos seus lugares, imaginá-las no meio do campo, por exemplo, ou substituí-las por árvores, como Isabel Brison faz nas suas fotomontagens, ajuda-nos a relativizar a importância das estátuas, a perceber que existem alternativas e a pensar na relação que temos com elas.
“Há espaços na cidade que poderiam ser melhor habitados, isto também devia ser pensado do ponto de vista urbanístico, do ponto de vista de quem usa ou pode usar os espaços.”
A luta feminista também passa por aqui
Os novos episódios são mais ficcionais, mas nem por isso são menos políticos. Isabel Brison assume o ponto de vista das estátuas – sobretudo aquelas que estão nos jardins e que são praticamente invisíveis.
As estátuas femininas de Lisboa são quase todas anónimas (algo que ela resolveu dando-lhes nomes) ou simbólicas (a República, a Ciência, a Arte…), quase todas nuas ou semi-despidas, quase todas meramente ornamentais. Há exceções, claro, mas serão poucas.
É por tudo isso que Petúnia começa a revoltar-se. Contra o vandalismo, sim, contra o esquecimento, também, mas sobretudo contra a discriminação. O “movimento de libertação das estátuas anónimas” começa, não por acaso, no Parque Eduardo VII onde, em 1975, aconteceu uma célebre manifestação feminista, e é também uma revolta contra séculos de patriarcado e de opressão das mulheres – em casa, na sociedade e, também, na estatuária.
“Os nossos corpos não são alegóricos”, lê-se num dos cartazes empunhados pelas muitas estátuas femininas de Lisboa, fartas de passarem frio apenas para que os homens possam adorar as suas formas.
Os seus gritos ouvem-se pela cidade e despertam a atenção das estátuas dos escritores da avenida da Liberdade: Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Oliveira Martins, Alexandre Herculano, António Feliciano de Castilho. Todos homens, todos com nomes completos, todos impecavelmente vestidos.
E, no entanto, quantos deles são ainda lidos hoje em dia fora dos currículos obrigatórios da escola? Quantas das pessoas que passam todos os dias atarefadas pelos passeios da avenida sabem quem eles são? Os escritores que se julgam tão importantes e que desprezam os protestos das mulheres (“são elas que estão a inventar, para chamar a atenção”) são, afinal, estátuas igualmente irrelevantes no quotidiano dos lisboetas.
Quantas vezes passamos pelas estátuas e não as vemos?
Veja-se o caso do Camões. “Aquilo é o Largo de Camões, tem uma escultura do Camões no meio, e nós sabemos que ele lá está, mas nunca o vemos. Se perguntar a uma pessoa na rua, provavelmente ela não sabe descrever a estátua, não sabe em que posição é que ele está, que objetos o acompanham. As pessoas não reparam. Há esculturas que servem de marcos, mas nós não olhamos para elas com atenção.”
Não há uma explicação exata para isto. “Por um lado, isso acontece porque a estátua faz parte da paisagem, nós interiorizamos que ela lá está como interiorizamos a arquitetura”, diz Isabel Brison.
Depois, tem a ver com o lugar onde a estátua é colocada. O Camões está demasiado alto para ser apreendido: só o conseguimos ver de longe, à medida que nos aproximamos deixamos de conseguir vê-lo. Não tem qualquer comparação com o Fernando Pessoa, que está sentado na esplanada da Brasileira. “É quase impossível não repararmos nele”, diz Isabel. Esta é provavelmente a estátua mais fotografada de Lisboa, os turistas sentam-se com ele, abraçam-no, fazem brincadeiras.
Mas, por outro lado, o Chiado está mesmo ali ao lado, também dá nome ao largo, nem sequer está assim tão elevado e no entanto… quem se lembra dele?

“É muito engraçado pensar nas relações que temos ou não com as estátuas.” E, já agora, imaginar o que elas – as estátuas – pensarão disto tudo. No caso de Camões e Pessoa, Isabel Brison fá-lo em jeito de fotonovela. E o resultado é delicioso. Estará Fernando Pessoa farto de aturar os turistas que não o deixam tomar um café descansado? Estará Camões aborrecido por estar lá em cima no seu plinto, sozinho, sem ninguém com quem conversar, apenas a levar com as cagadelas dos pombos? E se fosse antes dar um passeio até à praia para apanhar sol?
Ficamos à espera dos próximos episódios destas “Ditas e Desditas da Estatuária Lisbonense”. “Espero que as pessoas se divirtam tanto a ver esta série como eu me diverti a fazê-la”, diz Isabel Brison. E, já agora, ficaria contente também se por causa do seu trabalho começassem a reparar mais nas estátuas que encontram no caminho.
*Maria João Caetano é jornalista. Mora em Lisboa há quase trinta anos mas, como Elis, sonha com uma casa no campo, preferencialmente no Alentejo, onde nasceu em 1974. Também há quem a conheça como “A Gata Christie”.