“Chelas city, meu lugar, Zona I, Zona M, Zona J, Zona L, N1, N2; Somos nós; Estamos juntos e misturados; União de todos os bairros; Amador, Flamenga; Loios e Condado; Alfinetes, Amendoeiras” (rap Chelas City)
Luís, Carlos, Hugo, Sandro, Rita. Querem ser músicos, gravar um videoclipe, mostrar o melhor ângulo para a câmara, exibir o hoodie de marca, deixar cair o cabelo sobre o rosto naquele gesto estudado para parecer descuidado. Que a mãe não os apanhe a sair na calada da noite, que os vizinhos não se queixem do barulho no pátio do prédio – toca de todos os sonhos e hormonas em sobressalto. Querem o que todos os miúdos querem: pertencer.
Mas Luís, Carlos, Hugo, Sandro e Rita, e outros tantos como eles – “mais de 100”, diz o rap “Chelas City” -, querem ainda com mais vontade. Querem que as pessoas se sentem ao lado deles no autocarro, que a polícia não leve tudo a eito numa noite de risos e barulho, que possam encomendar uma pizza sem terem de a ir levantar à esquadra.

Querem poder dizer “Zona J” e que isto não seja o mesmo que dizer “desistimos de vocês”. É isto tudo que contam no documentário “Chelas, nha Kau” (Chelas, meu lugar, em crioulo), que ganhou tudo que havia para ganhar no Festival Política, que acabou de decorrer em Lisboa e Braga: o Prémio Filme do Ano, o Prémio do Público e o Prémio Sub-30, para produções de realizadores com menos de 30 anos.
Hoje já na maioridade, quando o coletivo Bagabaga Studios chegou a Chelas, eram miúdos, tinham 14 e 15 anos. Mas já eram os Bataclan 1950 – o código postal do bairro que, garantem, “é a capital de Lisboa”. A jornalista Sofia Rodrigues, uma das autoras, lembra-se bem desse dia e do que Sandro (que é quem faz a maior parte das entrevistas no filme) lhe disse: “Tenho a certeza de que vocês vêm para aqui um mês ou dois e também vão desistir. Porque todos desistem”.
Ela lembra-se da frase porque hoje, cinco anos depois, não só não desistiram, como se tornaram amigos. E, em conjunto, conseguiram fazer o que ainda ninguém tinha feito: concluir um longo processo, deixar obra feita.
“Queres experimentar, nem tentes; Tu não aguentas; Somos mais de 100; Somos 1950; Pretos e brancos; Brancos e pretos; Também temos Ciganos no nosso gueto” (Chelas City)
Um filme coletivo
Tudo começou quando os Bagabaga Studios, um grupo de jornalismo audiovisual, dinamizaram um atelier com os aparelhos (gravador, telemóveis, câmara de filmar…) que os jovens tinham à sua disposição no âmbito do projeto de intervenção social “Dá-te ao Condado E6G”, promovido pela Associação Aguinenso, em Chelas.
Depois, o coletivo propôs aos Bataclan fazer um documentário no bairro, algo que queria há muito. Os Bataclan aceitaram. Afinal “Chelas City”, o nome do rap que os tornou conhecidos (tem mais de um milhão e meio de visualizações no YouTube) tornou-se o hino de Chelas, não apenas da Zona J, mas de todas as zonas. A principal mensagem que queriam – querem – passar é a da união.
O documentário, filmado maioritariamente por elementos do grupo – o núcleo base tem cerca de uma vintena de jovens, mas para os Bataclan eles são todos os jovens de Chelas – mostra orgulhosamente as paredes coloridas dos prédios do bairro oriental de Lisboa, o pátio num dos edifícios, onde se reúnem.
Como eram tantos e estavam tão apertados, quando aconteceu o atentado terrorista em Paris, a 13 de novembro de 2015, alguém se lembrou, até tristemente, de dizer: “Parece que estamos no Bataclan”. O nome ficou. Juntaram-lhe 1950 porque é o código postal da sua “cidade”, o sítio onde, dizem, os táxis não entram. O endereço que muitos tentam esconder, até eles, tão vaidosos do seu lugar, aprenderam a fazê-lo. “Se veem Chelas no currículo já sabemos que o vão rasgar”, diz uma das jovens no documentário.
Nas cenas do filme, falam de união e de amizade como também falam de violência, das rusgas da polícia, de como é difícil explicar aos miúdos mais pequenos que os polícias não são maus. “Mas eles já viram os agentes bater no pai ou na mãe. Como os convencer do contrário?”, ouve-se, a certa altura.
“Chelas, nha kau”, não é, no entanto, um filme sobre amargura ou revolta, mas exatamente o seu oposto. É um filme sobre amor, e é por isso que os únicos adultos que surgem no doc são as mães – foram os próprios jovens que escolherem os perfis das pessoas a serem entrevistadas. Uma dessas mães é a Dona Fanta. “Não aparecem os pais porque na maior parte dos casos os pais não são presentes”, diz Sofia.
“Posso eu ser um bom rapaz?”
As mães de Chelas são o alicerce de toda a comunidade, e os filhos, os sobrinhos, todos os jovens veneram-nas. Sem elas, nada. “A minha vida foi uma turbulência, sozinha, com três filhos, salário mínimo, não é fácil”, conta, a olhar para a câmara Mãe Fanta. Era a mão que embalava o berço e o trovão que os punha na ordem. “Eu fazia o turno da noite a limpar autocarros. Deixava-os a dormir, mas às vezes vinha espreitar se não estavam na rua”, lembra-se. A sua mão era uma, mas era forte.
Dona Fanta é a mãe do Mc BamBam (Carlos), hoje com trinta anos, e músico profissional. Na altura da gravação do videoclipe e do filme já era um dos mais velhos do grupo. “A minha mãe é uma grande mulher, se não tivesse sido ela, talvez nos tivéssemos metido em problemas”, admite, todo ele coração, um orgulho desmedido na mulher que não o deixou passar para o outro lado. E é tão fácil, afinal.
“Posso eu ser um bom rapaz?”, ouve-se num dos raps cantados no doc, todo ele pontuado a batidas. É esta uma das perguntas que atravessa o documentário. É possível ser de Chelas e um bom rapaz?
Eles sabem que sim, apesar de todos os outros acharem que não. Luís (Islu), 18 anos, a acabar o 12º ano, era um dos putos mais novos dos Bataclan, na altura em que o coletivo BagaBaga chegou. Sobre o filme, finalmente pronto e premiado, sabe aquilo que gostava que as pessoas sentissem, depois de o verem: “Não é como uma pessoa que não vê e depois começa a ver, é como alguém que não sabe e começa a saber”.
“Chelas é o meu lugar; Dizes que Chelas é isto; Dizes que Chelas é aquilo; Cala a boca; Estás a falar à toa; Zona normal; Com um lado marginal; Ou andas na linha, ou acabas no regime prisional; Não queremos dizer mal; Mas mal ou bem; Como Chelas, foda-se; Como Chelas, não há”.
*O filme não está disponível no circuito comercial.

Paula Freitas Ferreira
Nasceu em Moçambique e viveu em muitas cidades até chegar a casa, Lisboa. Acredita que os lugares são impossíveis de contar sem ouvir as pessoas e as suas histórias. É jornalista desde o ano 2000 e passou pelas redações do 24horas, Sábado e Diário de Notícias. Colaborou com a Notícias Magazine e escreveu três livros.
One love Chelas city
Olá meu nome é Magda Pinto,41 anos,quando me perguntam de onde sou com orgulho respondo Chelas zona J,criada no bairro,minha mãe toda a vida trabalhou e nos ensinou os princípios da vida,educação,honestidade,simplicidade,etc…cresci junto de seres humanos fantásticos,não trocaria nada da minha infância,por ter crescido num bairro não deixo de ter valores ou princípios…assim como todos os que la cresceram…juntos somos uma família…abraço
Um projecto de louvar! Sempre achei que este tipo de bairros são extensões das cidades e não têm que ser bairros maus! Más, são sim as condições em que muitos dos que lá vivem, com problemas sociais, sem trabalho e sem futuro à vista, têm de enfrentar! Os jovens destes bairros são jovens como todos os outros e quando conseguem construir oportunidades para se afirmarem com as suas culturas e desenvolver as suas capacidades, artísticas ou não, numa busca de si próprios dentro de um gueto que querem libertar de estigmas de que não têm culpa, estão só a lutar pela sua integração, mesmo que mantendo valores das multi-culturas que os identificam e não é por assumirem essas diferenças que são mais diferentes do que outros jovens que a cidade considera normais! O que vi nestes videos não foi violência nem más práticas, mas antes uma comunidade jovem que luta por uma vida melhor e mostra um louvável sentido de fraternidade e entreajuda! É preciso é que a sociedade os saiba aceitar, na medida em que eles também se esforcem por aceitar os outros, desconstruindo o muro de diferenças que os separam da cidade toda… do mundo todo!… passando eles também a ser mais uma nova conquista da sociedade. Quando a sociedade os receber, eles saberão também integrá-la com as suas diferenças e qualidades.