Podia começar por falar de como é isto de gostar de Lisboa e de cinema. Foi aqui que nasci, no ano de 1942, numa casa de Campo de Ourique, porque nessa altura era em casa que se nascia, em casa de avós maternos, neste caso. Mas a casa dos pais era na Avenida Afonso III, junto ao Tejo. Vivi por ali pouco tempo, o meu pai que era pintor e professor, foi colocado em Portalegre, onde passei sete anos da minha adolescência. Bem passados, apesar do cinzentismo da época. Foi ali que me apaixonei pelo cinema (e não só que disto de amor, também comecei cedo) e pelos livros e os jornais.

Foi no Teatro Portalegrense, no Cine Parque e, mais tarde, no Cine Teatro Crisfal que vi muitos filmes, e foi na Rabeca, do republicano Senhor Casaca, que comecei a escrever, tinha 12 ou 13 anos, os primeiros textinhos sobre cinema. Lembro-me de confessar publicamente, em letra de forma, a minha eterna admiração pela Audrey Hepburn, da “Guerra Paz”, além da minha paixão pela Sarita Montiel.

Que dizer do dia em que uma companhia teatral por ali passou com a belíssima Maria Dulce, que fui esperar à porta da Pensão Central, e que nos seus encantadores 14 ou 15 anos, resolveu ofertar uma frisa para os putos de Portalegre poderem ir ao teatro ver a jovenzinha que tinha interpretado “Frei Luís de Sousa” no cinema. Estávamos no início dos anos 50. Antes disso, em Lisboa, já me tinha apaixonado desalmadamente por “Bambi”, primeiro filme de que me recordo ter visto ao colo do meu pai (numa altura em que não havia ainda classificação etária).

Quando regressei a Lisboa, em 1958, iniciei o meu périplo pelas salas de cinema de bairro, do Europa ao Paris, do Royal à Voz do Operário, consoante estudava no Pedro Nunes ou no Gil Vicente, do Avis ao Pathé, através do ABC Cine Clube de Lisboa ou o Cine Clube Universitário, ao mesmo tempo que começava a escrever na “República” (na página “Bastidores”, dirigida pelo Baptista Bastos), na “Plateia”, de Baptista Rosa e Vitoriano Rosa, nos cineclubes onde ia pertencendo às direcções.

Em finais de 1967 entrei com o Eduardo Prado Coelho para o “Diário de Lisboa”, onde iniciámos com algum estrondo e escândalo público a crítica diária de cinema. Daí até hoje foi um longo percurso, sempre ligado ao cinema, à leitura e aos jornais. Sempre gostei de escrever sobre cinema (bem como sobre outros espectáculos que igualmente amo, o teatro, a ópera, o circo…), mas nunca fui um realizador frustrado, que escrevia sobre cinema porque não podia realizar os seus próprios filmes.

Isso só aconteceu muito mais tarde, depois de ter feito alguns filmes e de ter provocado ondas de choque que levaram alguns a dizer que “esse gajo não volta a filmar!”. Isso é uma outra história.

No cinema, passei por quase tudo. Trabalhei nos cineclubes de Lisboa, escrevi nos seus jornais e revistas sobre cinema, dirigi festivais, um cinema estúdio, o Apolo 70 (que dentro de dias fará 50 anos!), dei aulas de cinema no ensino superior, em Lisboa e no Porto, frequentei festivais de cinema por todo o mundo, com filmes meus, como júri, como crítico, como simples espectador, organizei (e ainda organizo) masterclasses sobre cinema, sobretudo sobre o cinema que mais amo e que mais difícil se torna de ver presentemente, o cinema clássico.

Uma paixão nunca se extingue. Sempre procurei transmitir a minha. Por isso acabo de oferecer a minha biblioteca de cinema e de imagem à cidade de Setúbal, onde organizo uma das minhas masterclasses há alguns anos e onde tenho sido muito bem recebido. Ainda tentei Lisboa, mas a capital já tem muitas iniciativas, entre elas uma boa Cinemateca. Essa Casa da Imagem é inaugurada hoje (se não houver mais nenhum adiamento, pois já se adia desde Novembro do ano passado).

Além de biblioteca, mediateca e arquivo pessoal, a Casa da Imagem irá apresentar ciclos retrospectivos  (o primeiro será dedicado ao Filme Negro, a começar em data oportuna), que serão acompanhados por livros originais, sessões infantis, vai organizar um arquivo do cinema português, com gravação de entrevistas de vida com algumas personalidades do nosso cinema, e pensa ainda desenvolver muitas outras iniciativas para sensibilizar e dinamizar um público cada vez mais desacompanhado nestas coisas de cultura.

Portanto vamo-nos encontrar por aqui a falar de Lisboa e de Cinema. Podem ocupar as vossas cadeiras. Ainda com as devidas precauções. Mas esperemos que por pouco tempo.

*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema. Vai escrever na Mensagem a partir desta semana.

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2 Comentários

  1. Ó velho amigo Lauro António! Então, ao citar várias publicações one colaborou, não houve uma memória para “A Capital”? Foi pena porque, tanto quanto me lembro, os seus artigos no meu jornalinho foram bastante apreciados. Espero que ainda saiba quem eu sou. E, se assim for, fica um abraço!

  2. Meu Caro Appio Sottomayor, não o esqueço a si, nem à Capital. Mas só citei jornais onde exerci crítica diária. De resto colaborei em tantos outros que não esqueço. Um grande abraço amigo.

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