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A processar…
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1. O rapaz tira a camisola, apesar do frio. Avança para o meio da rua. O outro rapaz está vestido e tem um boné, apesar de ser noite. É mais alto e aproxima-se, ameaçador. O tronco nu do rapaz brilha com as luzes dos faróis. Durante uns instantes os carros param na estrada e, surpresos, demoram um pouco até começarem a apitar. São 11 da noite, os vizinhos ainda estão acordados, e assistem das janelas. Naqueles segundos, os rapazes param de gritar um com o outro. Os rapazes rodam um sobre o outro, mudando de posições. Medem-se. Dão passos coordenados. Mostram o seu baile. Durante alguns minutos, são estrelas de si mesmos, das suas vidas. 

2. A minha filha pergunta-me porque é que se tem que tirar o chapéu na sala de aula. Eu improviso uma resposta mas a verdade é que a pergunta é mais interessante do que uma possível resposta. Porque é que se põe um chapéu quando não faz sol? Porque é que os homens tiram as camisolas para lutar? Porque é que arregaçam as mangas? Onde é que aprendemos a dança diária dos corpos? 

3. Quando fui viver para Londres tive dificuldade em adaptar-me ao ritmo da cidade. Eu sempre me tinha orgulhado de andar depressa, mas o meu andar não era rápido para o padrão londrino. O “London pace” era algo a que as pessoas se referiam com naturalidade e ou se era capaz de adquiro-lo ou não. Esse andar não era só uma questão de velocidade, mas também uma questão de atitude: de quem não será demovido, nem pela lentidão dos outros, nem por um cruzamento nem mesmo por um encontrão, é um andar de quem sabe que não se pode distrair em nenhum momento porque a vida é exigente. 

Claro que quando voltei para Portugal tive dificuldade em voltar a andar sem que parecesse que a própria vida corria atrás de mim.

Também foi só ao fim de muito tempo fora da minha cidade natal que me espantei por as pessoas se olharem tanto e tão directamente. No Porto, ainda que não parassem, parecia sempre haver uma pausa de reconhecimento no cruzamento entre duas pessoas. 

5. Em Lisboa aprendo a arte do desvio. Essa arte de estarmos próximos mas sabermo-nos afastar a tempo. De mudar de direcção sem o termos planeado, porque encontramos alguém ou porque não encontrámos alguém. De interromper a direcção do trânsito para começar uma luta – ou um romance. Às vezes, de deixar que uma pessoa conhecida passe sem chamarmos por ela, sem criar um impasse no movimento das ruas. 

Mas é possível que quando me afaste não veja na cidade uma coreografia tão elaborada. 

6. Os rapazes estão muito juntos. Podem bater-se a qualquer momento. Mas seria mais surpreendente se se abraçassem. Não fazem nem uma coisa nem outra. Depois da sua dança e de alguns movimentos ameaçadores de cabeça, acabam por se afastar. Desviam-se da luta, fingindo que ambos venceram. Quando a polícia chega já tudo acabou. 

7. Se eu disser que o rapaz que tirou a roupa é negro, o que é que muda? Se eu disser que há uma rapariga que nunca se afasta do passeio, que não invade a rua, que não tira a roupa, que fica como espectadora da cena e que observa a dança dos rapazes desde essa posição, de que maneira a cena passa a ser diferente? 

8. Outros exemplos, díspares, de desvios: as viúvas dos náufragos, antigamente na Nazaré, que evitavam o mar, e caminhavam por ruas interiores em vez de na marginal, para manifestar o seu desagrado com a natureza das ondas; os rapazes que correm sem protecção para os touros, que  chamam pelos touros e que se afastam dos cornos apenas no último minuto, o corpo desenhando um arco salvador; as adolescentes a virar a cabeça mesmo antes do beijo. 

9. Quando voltei para Lisboa, depois de uns anos em Londres, a mudança pareceu-me uma correcção de curso mas muitas vezes, agora, penso que talvez tenha sido um desvio de uma outra vida que me estava destinada. Talvez a nossa vida não seja uma sucessão dos caminhos que escolhemos mas dos desvios desses caminhos que fizemos. 

10. Há coisas inexplicáveis. Fenómenos estranhos. Sentimentos esquisitos que a literatura ainda não foi capaz de aprofundar. Reacções da vida selvagem e dos átomos que levarão anos aos cientistas a descrever com precisão. 

Depois, há as coisas que nós tornamos inexplicáveis. Que não questionamos. Que trabalhamos para que se tornem tão parte da vida como as plantas crescerem na terra e as ervas despontarem na calçada contra a nossa vontade. 

11. A minha filha não sabe porque é que se tira o chapéu na sala de aulas mas tira. A minha filha não sabe porque é que os rapazes lutam mas vê-os lutar na escola. Ela não sabe porque é que já apressa o passo – ou corre, se for sozinha com o meu enteado, um pouco mais velho – mas fá-lo. Em breve, vai aprender a atravessar o passeio estrategicamente. O seu corpo aprenderá movimentos inexplicáveis – e, talvez, ofensivos – mas que se tornarão instintivos para a sua sobrevivência. Em inglês há a expressão “streetwise”, mas não é tanto uma sabedoria, é mais um treino, uma prática diária, até que ela seja uma mulher que já não se pergunta porque anda de determinada maneira na cidade. 

12. O rio está sempre a mover-se. É algo que aprendemos em crianças. Que um rio corre e corre sempre na mesma direcção. Que conseguir um desvio do seu curso implica um enorme dispêndio de energia humana. Mas não é por o sabermos que constantemente não caiamos na ilusão de o acreditar parado. Como se esperasse por nós. 


Susana Moreira Marques

É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.

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