1.
Todos os grandes aventureiros o sabem: não existe ausência de som. Por mais que se vá aos confins do planeta há sempre sons para escutar. Deve ser isso que dá esperança a quem viaja para ver se há fim do mundo ou a quem viaja para fugir do fim do mundo: encontrar sinais de outra vida. 

2.
Vou dar com a minha filha mais nova já em cima da cadeira que está encostada à janela, a janela aberta. 

A casa tinha ficado silenciosa de repente. Levantei-me para ir procurá-la sem qualquer outra razão que não o facto de não a ouvir falar com os bonecos ou com o espelho ou a cantar canções do repertório da Frozen para um público invisível. 

3.
Há mais de uma década que vivo em terceiros andares, todos eles, claro, sem elevador. Já antes de ser mãe, vivia num terceiro andar sem elevador, e, mesmo depois da perspectiva de bebés com os seus carrinhos e tralhas, continuei a viver em terceiros andares sem elevador. 

Tinha as minhas razões, pouco compreendidas por avós e pessoas mais práticas do que eu, para escolher um terceiro andar: mais luz e menos barulho, que são de extrema importância para quem trabalha em casa, e, sobretudo, a possibilidade de uma vista. Era com uma vista que eu sonhava quando voltei para Lisboa depois de uns anos em Londres. Não uma vista qualquer mas: a queda lenta e harmoniosa dos telhados, o azul quase imóvel do rio visto de longe, e sobre tudo isso uma espaçosa faixa de céu. Seria essa a vista que traria respiração à vida, inspiração, quem sabe felicidade. 

Demorei bastante a perceber que não dependia da paisagem o silêncio que por vezes há em mim. 

4.
Em Arroios, muito silêncio é mau sinal. É sinal, por exemplo, de tragédia. É sinal de que não se pôde sair à rua. É sinal de que há um exílio a acontecer da vida normal, essa que é barulhenta, que se afirma acima do ruído dos outros, que nos dá a possibilidade de ser olhados mesmo numa multidão.  

5. 
Nem Londres, nem Nova Iorque, talvez nem São Paulo. O campo – com o seu tipo de silêncio – é o país mais distante das minhas crianças. Quando vamos para o campo – e eu faço questão de irmos para uma casa no meio do nada pelo menos uns dias por ano para lhes dar essa experiência – já sei que a primeira noite é difícil. A minha filha mais velha não consegue dormir porque não se ouve nada. E porque está tão escuro lá fora?

Na primeira noite, ainda que esteja no paraíso, ela quer voltar para Arroios. 

6.
Finalmente, grávida da segunda filha, o lado prático levou a melhor, e mudei-me para o bairro onde a mais velha já andava na escola, e onde poderia fazer tudo a pé. Por sorte ou por azar, acabei novamente num terceiro andar, mas sem vista de rio. 

Pequenas coisas que são agora a minha vista: o vaso de cravos do senhor idoso de um prédio em frente; o frenesim com que a rapariga toxicodependente, já de barriga, explora o contentor de doações da junta de freguesia na esquina de trás; o abandono cheio de ambição dos rapazes que partilham um apartamento e costumam fumar na varanda; o polícia a patrulhar o edifício do Banco de Portugal (Mãe, pergunta a mais nova, aquele prédio é daquele senhor? Não, filha, é de todos nós, respondo, sem ter a certeza do que digo). 

7. 
Mentiria se não dissesse que há silêncios visíveis todos os dias em Arroios. Há silêncios por vezes mais ruidosos do que o sobressalto provocado pelas ambulâncias, ou o frémito constante da Almirante Reis. Silêncios que medem a distância entre as pessoas num sítio onde vivemos demasiado perto uns dos outros – e que tantas vezes me fazem lembrar Londres. 

Poderia falar do silêncio entre a minha filha e alguns colegas chineses que, ao fim de três anos, ainda não têm palavras para estar na escola tal e qual os outros meninos. Ou do silêncio do rapaz nepalês que costuma estar à porta da mercearia sempre vazia da minha rua, enquanto as pessoas passam por ele sem o olhar. O silêncio dos homens imigrantes que andam nos passeios em pares ou trios mesmo quando conversam entre eles.

8. 
Podemos saber muitas línguas ou poucas. Mas todos aprendemos a dominar o silêncio. É talvez a única linguagem comum que temos. Essa dos sorrisos, dos olhares, do gesticular, de pequenos gestos que, por vezes, dizem o que não somos capazes de pronunciar. Mesmo quando temos uma língua para comunicar, numa cidade, num bairro como este, a simpatia está nas pequenas atenções dos silêncios. 

Neste caso, é um silêncio que não é tanto ausência de som mas uma forma de escuta. 

9.
Também vejo telhados da minha janela, mas como não estou no topo de uma colina, em vez de descerem, sobem. Erguem-se acima do meu olhar. Consigo apenas adivinhar as janelas mais altas, as que ficam mais longe da rua, mais silenciosas, mas também mais solitárias, sem a banda-sonora ao vivo da cidade. 

10.
Nos últimos dias a minha filha começou a responder-me com gestos como se, tendo aprendido a falar tão bem com três anos, precisasse de dominar a arte do silêncio. 

11. 
Dizem os especialistas que até aos sete anos de idade uma criança não é capaz de entender a morte, ainda que aprenda o nome “morte” e o verbo “morrer”, aprenda a conjugá-lo. Então, como explicar à minha filha o que acontece se ela cair do terceiro andar? 

Falo-lhe então da vida. Das coisas que ela não poderia fazer se caísse. A vida ela entende. Compreende correr, saltar, falar, cantar, abraçar, fazer barulho. 


Susana Moreira Marques

É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.

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4 Comentários

  1. Bonito texto, tocante para um quase vizinho, da Penha de França 😉

  2. Adorei esse conto! Tem construções gramaticais muito interessantes e um vocabulário simples e ao mesmo tempo rico, muito oportuno para usar com os meus estudantes de português na aula de tradução. Gostei muito do final, inspira vida e amor…
    Alem disso, eu também vivo no terceiro andar e, também simpatizo com momentos do silêncio que, a seguir, me trazem muito ânimo. Cumprimentos da Ucrânia!

  3. Que bom que é ouvir Lisboa, traduzida assim; eu que vivi num 6º andar sem elevador e claro com os seus 136 degraus, várias vezes contados (prédio já demolido no M Moniz) e depois 40 anos num 1º no C Santana; agora na P França com vista de Rio; que diferença ! Obrigado

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