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Há pessoas que são o seu trabalho. Dou como exemplo alguém que podia apresentar-se assim: “Olá, eu sou o fotógrafo.” Quem for lisboeta atento e agradecido poderia responder-lhe: “Olha, o senhor Fernando Correia dos Santos!” Eu, que sou muito atento, até diria mais: “Estás bom, Corrêa dos Santos?”
Aquele acento, entre o agudo e o grave, é a sua vontade de sublinhar o cume, o cimo, o telhado, enfim, o circunflexo. Esse acento, ele quere-o na sua assinatura, não para o tipo discreto que é, mas para aquilo que ele faz e cria. Já trabalhámos juntos e acho que cheguei duas ou três vezes a brincar (era uma homenagem), pedindo-lhe, no fim de um serviço: “Deixa-me ver a fotôgrafia”. Ele mostrava e eu confirmava sempre que ela merecia a garridice do circunflexo.
Corrêa dos Santos, repórter fotográfico, lisboeta, do Chiado, 87 anos, há 70 atrás de uma lente, todos os dias com a máquina a tiracolo, toda a atenção virada para a necessidade de a apontar, tem uma exposição inaugurada esta semana (Galeria de Santa Maria Maior, Rua da Madalena, 147). Ide lá olhá-lo. Foto a foto. Nossas memórias. Cada uma valendo mil vezes mais do que tudo que a seguir escrevo.
Estive com o Corrêa dos Santos na mesma redação de jornal (o há muito ido Diário Popular) e dele nunca eu soube das questões menores. Era do Benfica? Sabia quem foram os fundadores da agência Magnum?… Pois, não sei. À porta do jornal, ele perguntava-me: “Qual é o serviço?” Tópico dado por alto, alheava-se da equipa. Como bom caçador, era um solitário.
Atenção, não estou a dizer que esse é o método de trabalhar em reportagem, perdi ou empobreci algumas por desencontros entre a escrita e as fotos. Estou a dizer é que com o Corrêa dos Santos sempre me bastou sabê-lo pelas imediações. Porque o que ele trazia de volta, caça miúda ou grossa, eram sempre boas fotos.

Fomos camaradas de jornal, cruzo-me com ele há décadas por Lisboa, mas, julgo (exagero um bocadinho), eu seria capaz de passar e não o reconhecer. Bastava ele andar sem a sua condição: a máquina fotográfica à mão ou, pelo menos, com ela escondida no saco a tiracolo que nunca larga.
Mas, lá está, se nunca o larga e o saco é de máquina fotográfica, é sempre de desconfiar que aquele saco da Nikon com ele à ilharga é o Corrêa dos Santos. Sobretudo agora que em Lisboa há cada vez menos velhos de 87 anos com máquina fotográfica, a tiracolo ou escondida.
Mas, insisto na hipótese absurda: sem ela, a máquina fotográfica, o Corrêa dos Santos seria um vulgar Correia ou um qualquer dos Santos. Com o seu instrumento de trabalho, ele apara ligeiramente o nome, ganha um acento circunflexo como o alfinete de gravata dos cavalheiros antigos e transforma-se em Corrêa dos Santos, um homem na cidade.
O primeiro a chegar ao Chiado
Um dia, pouco depois das 5 da manhã, ele veio à janela (3º andar, rua Garrett, mais perto da rua do Carmo do que de cima, largo do Chiado,) e viu um carro de polícia estacionado de forma esquisita. Tão de madrugada tudo parece esquisito, mas outro fotógrafo talvez voltasse para os lençóis. O Corrêa dos Santos encheu de rolos os bolsos largos, pendurou a Nikon ao pescoço, desceu as escadas de dois em dois degraus (era ainda um garoto de 54 anos) e abriu a porta da rua. Havia fagulhas no ar, era agosto de 1988, o Chiado ardia.
Dir-me-ão, sorte a dele, morar no centro dos acontecimentos. É não conhecer aquela figura esguia, de cabelos raros e colados, sorriso discreto, um falso que faz de conta que quer que não se dê por ele, para aparecer, horas depois, nas capas dos jornais com a prova, as suas fotos, de que ele passara por ali.
Se ele morava à volta do Chiado era porque o avô, alfaiate, já tinha oficina em cima do Adão Camiseiros, na rua Augusta, a mãe e o pai moraram ao lado da pastelaria Ferrari e aos 4 anos já ele estava instalado na rua Garrett – um filho, pois, daquela Lisboa onde acontecia. Ele nasceu para ser testemunha e naquele dia fatídico ele estava na hora certa, mas lamentavelmente no sítio errado. Como todos os grandes predadores, Corrêa dos Santos aprendeu a esperar, esperar anos e pronto a disparar.
Quando saiu de casa e viu as centelhas, ainda hesitou em telefonar ao chefe de redação: “Telefono ao Abel Pereira?” Naqueles tempos seria voltar a subir ao 3º andar, ao telefone fixo. Foi barata tonta mas só por segundos, decidiu ir logo para o trabalho solitário. Correu para os armazéns Grandella já iluminados pelas chamas. Se ele morava no Chiado e foi chamado, testemunhou. Os rolos de 36 fotos foram sendo despachados.
Voltou a subir a Garrett (estava cheia de gente de pijama), atravessou o Camões, meteu-se pelo Bairro Alto, gritou ao porteiro do jornal para chamar os chefes, entrou no gabinete fotográfico e a resfolegar pôs-se a revelar fotos. Pelo rádio a pilhas ouviu a Renascença, vizinha, da rua Capelo, a gritar ao fogo.
Foi a primeira vez que se lembrou da casa: “Porra, a minha casa!” E continuou a revelar as fotos. Deixou-as, para a primeira edição do Diário Popular.
Voltou ao incêndio, passou pela sua janela, olhou para o 3º andar, ainda havia um quarteirão de permeio até às chamas, encolheu os ombros e foi para a passarela do elevador de Santa Justa. Lisboa, aquela Lisboa, cheirava a cinzas e ardia, muito dela já sem telhado.
Voltou para o jornal, já encontrou a primeira edição com dez páginas cheias de fotos suas, e foi revelar mais testemunhos. Haveria outra edição. Nessa tarde, enfim, o fotógrafo subiu cansado as escadas de sua casa, abriu a porta, cheirava ainda a fumo, mas era dos outros.
Um dia, pouco depois, estava em casa, ouviu sirenes dos bombeiros, encheu os bolsos de rolos, desceu a rua, ouviu que era incêndio, para as bandas da Vítor Cordon… Para lá foi. “Corri, depois parei. Porquê correr, se já fechou o Diário Popular?…” O jornal acabara em 1991.
Das Remington do pai… à Rolleiflex
Corrêa dos Santos passou a vida inteira na aprendizagem de que trinta e um de boca vale mil vezes menos que um documento preto no branco e com todas as nuances da paleta dos cinzentos – uma foto. O pai foi representante das Remington, mas as máquinas de escrever palavras nunca o seduziram. Aquelas com um olho e fole, que reproduziam imagens, essas sim.
Garoto, com um caixote desses guardou a imagem de sua mãe no Campo Grande e encantou o avô alfaiate ao mostrar-lhe, em papel lustroso, a farda de almirante que o velho cosera. No quarto, com uma mesinha de cabeceira improvisou um estúdio de revelação.
O que se seguiu, ao Corrêa dos Santos, foi uma sucessão de “eu estive lá”. É como nós, cheios de histórias dessas: a Kate Winslet a olhar-nos apaixonada, o Mané Garrincha a ser fintado por nós, o capitão Salgueiro Maia a perguntar-nos: “Sempre avanço?…”
Ao fazer 70 anos atrás de uma máquina fotográfica, o Corrêa dos Santos teve uma vida assim. Como a nossa. Com uma diferença: cada afirmação dele vem acompanhada da prova de que ele viveu mesmo aquilo.
Tem passado a vida a testemunhar. Ainda não tinha 20 anos, ele e uma Rolleiflex mostraram Amália Rodrigues com Daniel Gélin nos bastidores das filmagens de Os Amantes do Tejo, na rua Augusta, em 1954. Só de recordar que por esses dias Amália lançou o Barco Negro pelo mundo fora…

No meio dessa mesma década, ele aproximou-se o bastante para se ver o cardeal Cerejeira, sorriso cúmplice, dando a mão enluvada que Salazar, inclinando-se, agarra e beija, amizade antiga de estudantes de Coimbra – tudo iluminado e escondido pelo flash de explosão única da sua máquina Wolklander.
Mais de vinte anos depois, Álvaro Cunhal visita o forte de Peniche e olha a cela de porta aberta e o catre que foi o seu – como não reparar no espanto do garoto que acompanha a visita? Vai-se a ver, afinal nós sempre tivemos uma vida do caraças – vimo-la pelas fotos do Corrêa dos Santos.

Em 1957, a rainha Isabel II de Inglaterra visita Lisboa e, pela Avenida da Liberdade, ao lado da carruagem corre um rapaz de pernas compridas. O Presidente Craveiro Lopes, chapéu de penacho e ombreiras douradas está encostado ao veludo do assento. A jovem rainha inclina-se ligeiramente, centra-se com a janela do meio, sorri ao Corrêa dos Santos pernilongo e ofegante e nesse momento todo o lado esquerdo da carruagem é a sua moldura. Sabemos exatamente onde o esplendor imperial se passou, porque o fundo é o Hotel Vitória, que seria vinte anos depois a sede do PCP.
Acasos. Corrêa dos Santos foi para o jornal da sua vida, o Popular, onde fazia biscates, porque um chefe lhe perguntou: queres fazer as férias do Benoliel? Este era Judah, filho do mítico Joshua Benoliel, da mais famosa linhagem portuguesa de fotógrafos. Ao vir de férias Judah morreu num acidente e Corrêa dos Santos herda-lhe o posto. Em geral a vida é assim, é preciso estar lá. No fotojornalismo é condição imperativa.
Como naquela foto: estando dentro da ambulância, o que é um mistério, Corrêa dos Santos fixa um cobertor sujo de fuligem, de onde sai um pé calcinado. Um enfermeiro grita com o fotógrafo, lá fora está escuro, tudo é um enigma naquela noite de 4 de dezembro de 1980, em Camarate, quando caiu uma avioneta e com ela a esperança da direita, Francisco Sá Carneiro.
O zebro rasga o Tejo docemente, a sua espuma é menor da que é feita pelo catedrático de barbicha e pálpebras como estores corridos que, à proa, nada. O nadador parece dramático, até por causa dos estores, mas os quatro ocupantes do pequeno barco distraem-se dele. Podia ser um editorial arguto mas era só uma foto certeira: tirando o mergulho, ninguém ligou à campanha de Marcelo Rebelo de Sousa pela Câmara de Lisboa, em 1989.

E a foto de uma menina feliz. Lisboa, 1968, ela tinha 23 anos e a ironia de um penteado de diva menor – a franja de Mireille Mathieu, então na moda – usado por ela, que já é Elis Regina, rainha. Como conseguiu Corrêa dos Santos levá-la para o quarto de hotel para uma foto sem programação? Quarto vulgar, ela salta para se sentar numa das duas camas, atira os sapatos para a alcatifa, com pudor de menina põe as mãos sobre os joelhos e estende as pernas…
Elis sorri-nos com dois riscos nos olhos. Feliz. Ao fim de tanto tempo e ainda nos sentimos desconfortáveis por saber o que ela ainda não sabe.
*A exposição/tributo a Corrêa dos Santos, 70 Anos Atrás de Uma Lente, inaugura no dia 22 de abril na Galeria Santa Maria Maior, rua da Madalena, 147. As fotos aqui reproduzidas são da exposição.

Parabéns
Obrigada, Ferreira Fernandes, pela vossa iniciativa.
Sinto-me renascer no “Bairro dos Jornais” no dizer de Paulo Martins, agora movida pela saudade desse tempo de luta e também de humor – a força motriz na adversidade do tempo vivido, mas não esquecido. Saudades da camaradagem, das notícias de última hora, e, não tanto do lápis azul.
Parabéns. Não desistam!
Muito obrigado pelo excelente testemunho de um grande fotógrafo. Parabéns
Camarada e amigo de sempre o Correia dos Santos.
A escrita de outro amigo, o Ferreira Fernandes, e que justa homenagem que fizeste a este nosso amigo.
Tenho saudades vossas. Abraços fraternos e amigos,
Inácio Ludgero
Com saudades das conversas que tivemos, para o Corrêa dos Santos um forte abraço.
António Mil-Homens