young woman selecting purchases in supermarket
Foto: Gustavo Fring/ Pexels.com

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Quando viajamos (coisa rara por estes dias de pandemia) gostamos de experimentar as diferenças. Bebemos uma cerveja que não se vende em Lisboa. Comemos um prato típico daquela cidade onde estamos. Sentamo-nos numa esplanada única. Mas, por vezes, também tentamos recuperar o conforto do que conhecemos. Pedimos uma Coca-Cola e esperamos que seja exatamente igual à que costumamos beber em casa. 

A globalização trouxe-nos essa experiência sem fronteiras. Algumas marcas são tão populares em Lisboa como em Vilnius, em Atenas como em Londres, em Roma como em Varsóvia. Por isso, quando compramos uma marca global estamos à espera de receber o mesmo produto, onde quer que estejamos. Mas as marcas globais são muito mais locais do que imaginamos.

Foi para esclarecer essa dúvida que o consórcio internacional de jornalismo de investigação Investigate Europe partiu para uma experiência: aproveitando o facto de ter uma rede com jornalistas em várias cidades da Europa, escolheram-se 24 produtos em muitos supermercados diferentes, em 15 cidades europeias. Depois, passámos horas a encher folhas de excel com ingredientes e valores nutricionais. Esta comparação é o início desta história. 

Mais para leste, menor qualidade de alimentação?

As listas de ingredientes destes produtos globais, que talvez não façam parte do nosso cardápio diário, originou uma acusação séria: nos novos Estados-Membros da UE, na Europa Central e Oriental, estavam a ser vendidos alimentos de menor qualidade do que no Ocidente. Em 2011, a Associação Eslovaca de Consumidores fez testes laboratoriais em cestos de produtos alimentares – incluindo refrigerantes, chocolate e café instantâneo – que foram comprados em oito países da UE. Os resultados mostraram diferenças de qualidade na maioria dos produtos comparados.

Desde então, foram realizados vários inquéritos, estudos e testes, quer pelas autoridades de inspecção alimentar quer por organizações de consumidores, nos países de Leste. As provas começaram a acumular-se. 

Os governos da Croácia, República Checa, Eslováquia, Eslovénia e Hungria levantaram a questão em Bruxelas. O ministro checo da agricultura Marian Jurečka disse que o Leste estava cansado de ser “o caixote do lixo da Europa”.

O cabaz analisado pelo Investigate Europe.

Após um aceso debate público sobre esta diferença na qualidade dos alimentos, em 2017, a Comissão Europeia prometeu que a situação mudaria. No seu discurso anual sobre o Estado da União Europeia, o presidente da Comissão Jean-Claude Juncker afirmou que “numa união de iguais, não pode haver consumidores de segunda classe”. “Não posso aceitar que em algumas partes da Europa, na Europa Central e Oriental, se vendam alimentos de qualidade inferior aos de outros países, apesar de a embalagem e a marca serem idênticas”, disse. “Os eslovacos não merecem menos peixe nos seus palitos de peixe. Os húngaros não merecem menos carne nas suas refeições, nem os checos menos cacau no seu chocolate. A lei da UE já proíbe tais práticas.”

Em Lisboa, boas notícias

Fiquemo-nos pelos exemplos de Juncker, que parecem escolhidos para nos mostrar, em Lisboa, como o assunto é complexo. Comecemos pelas boas notícias.

Os produtos do cabaz alimentar que incluem chocolate tendem a ser de maior qualidade em Lisboa do que em todos as outras cidades. O gelado Cornetto vendido em Portugal é o único, dos nove países da amostra, que contém manteiga de cacau. E tanto a tablete de chocolate Coté d’Or como as bolachas de chocolate Mikado têm mais manteiga de cacau nas versões vendidas em Lisboa, do que nas outras cidades. 

Já no que diz respeito à quantidade de peixe nos douradinhos da Iglo, Lisboa fica a perder na comparação. Se na Eslováquia, como dizia Juncker, não devia haver menos peixe nos palitos do Capitão Iglo, isso também não deveria acontecer em Portugal. Mas acontece. Em Bratislava e em Lisboa, os douradinhos têm 58% de peixe. Em Roma têm 60%, em Estocolmo 61%, em Atenas e em Bruxelas 65%.

A leste, óleo de Palma

No cesto de compras que os jornalistas do Investigate Europe analisaram há alguns exemplos importantes que mostram uma clara divisão de qualidade entre os produtos vendidos aqui ou na Europa de Leste. O mais evidente é o uso de uma gordura mais barata, e menos saudável: o óleo de palma.

Por exemplo, os biscoitos de chocolate Leibniz vendidos na Bulgária têm óleo de palma entre os seus ingredientes, ao contrário do que acontece nos outros seis países onde as bolachas foram compradas. O gelado Cornetto clássico é feito com óleo de coco e óleo de girassol em oito dos nove países da amostra. Apenas em Portugal é acrescentado um ingrediente “bom” à lista: manteiga de cacau. Na Polónia o gelado tem outro ingrediente único na nossa amostra: óleo de palma. Perguntámos porquê à Unilever (proprietária da marca Cornetto), mas a empresa optou por não responder. 

O óleo de palma é, de longe, o óleo vegetal mais barato disponível no mercado. É também mais prático, porque está numa forma fixa à temperatura ambiente, pelo que pode ser comparado à manteiga, diz Björn Bernhardson, director e co-fundador da ONG sueca Äkta Vara, que promove alimentos sem aditivos. “Podemos cultivar óleo de colza aqui [na Europa], mas transportamos óleo de palma do outro lado do globo, e ainda é mais barato”, explica. 

Terá o gelado Cornetto com óleo de palma, na Polónia, um sabor diferente do mesmo gelado que comemos em Portugal, que tem manteiga de cacau? Provavelmente não, diz Bernhardson, porque o óleo será processado para remover todo o sabor original. “Primeiro faz-se tudo o mais insípido possível e depois adiciona-se os sabores que se quer. Provavelmente poderiam fazer um teste cego sem que as pessoas notassem a diferença”.

Mas há razões evidentes para fazermos esta pergunta. O óleo de palma tem muito mais gordura saturada do que outros óleos vegetais (as gorduras saturadas aumentam o chamado mau colesterol, que está ligado a doenças cardíacas). A gordura saturada como parte da gordura total no óleo de palma é de 49%, o que é quatro ou cinco vezes mais do que no óleo de colza, óleo de girassol ou óleo de milho. 

Muitas agências alimentares europeias recomendam uma redução do consumo de gorduras saturadas. Por exemplo, os países nórdicos recomendam que um máximo de um terço de toda a gordura que consumimos – ou 10% de toda a energia que consumimos -, deve provir de gordura saturada. A razão é que a gordura saturada tem estado ligada a um aumento das doenças cardiovasculares. 

Existe outra possível preocupação de saúde com o óleo de palma. A Autoridade Europeia de Segurança Alimentar avaliou o risco para a saúde pública de substâncias formadas durante a refinação de óleos vegetais a temperaturas elevadas de, cerca de 200°C e superiores. Os níveis mais elevados de substâncias nocivas foram encontrados no processamento do óleo de palma.

Existem preocupações a nível da UE sobre a utilização do óleo de palma, razão pela qual os fabricantes de alimentos serão forçados a rever a composição dos seus produtos no que diz respeito à sua utilização. O primeiro exemplo é a empresa Ferrero. E um dos seus principais produtos, Nutella – o popular creme com polpa de avelã. Contém 32% de óleo de palma na sua composição, e os esforços do fabricante dirigem-se principalmente às crianças.

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Para extrair o óleo de palma muitas florestas são dizimadas. Foto: Mohamed Sarim/ Pexels.com

Para além dos riscos potenciais para a saúde, a produção crescente e a utilização generalizada do óleo de palma tem enormes custos ambientais. O baixo preço deste óleo é alcançado com a expansão da área cultivada, através da queima de florestas tropicais. 

Diferentes informações nos supermercados e online

Nos supermercados online tanto na Hungria como na Estónia, a lista de ingredientes e a informação nutricional das bolachas Oreo não corresponde à informação que se encontra agora na embalagem nas lojas físicas. Os primeiros têm óleo de palma e o dobro de gordura saturada que os segundos. A empresa alimentar Mondelez confirma que os biscoitos Oreo vendidos na Hungria e na Estónia deixaram, agora, de incluir óleo de palma. 

As Oreo tinham informações diferentes de ingredientes nos supermercados e online no leste. Foto: Donald Giannatti/ Unsplash

“A Oreo passou por uma reformulação que foi concluída em finais de 2020. Reduzimos o óleo de palma e introduzimos óleo de colza. Isto reflecte-se na embalagem. Devido a esta mudança, estamos a actualizar as lojas de retalho sobre as alterações na informação do produto que é apresentada aos consumidores durante o momento da compra”, explica um porta-voz da empresa. 

A história é semelhante com os “nachos” com sabor a queijo Dorito, produzidos pela multinacional Pepsico e vendidas em todo o continente europeu. São fritas em óleo de milho, colza ou girassol, ou numa mistura dos três. Na Estónia, a embalagem afirma que são fritas em óleo de milho. Mas em duas das principais cadeias online a informação inclui o óleo de palma.

A Pepsico Estónia diz que tem vindo a importar os Doritos da mesma fábrica turca desde 2018. Acrescenta que o produto não contém óleo de palma e que não tem uma explicação para as diferentes informações nas lojas online. “Em toda a Europa estamos empenhados em fornecer produtos de alta qualidade que os nossos consumidores amam, esperam e merecem. Os nossos Dorito’s Nachos para a Estónia são fabricados com óleo de milho e têm um perfil nutricional semelhante ao da marca noutros mercados da região. Ao longo dos últimos anos, temos vindo a reformular os nossos produtos em toda a União Europeia para fazer a transição para óleos vegetais com menor teor de gordura saturada, como o óleo de milho”, esclarece um porta-voz da empresa.

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Os Doritos são um dos produtos com diferenças. Foto: Edu Carvalho – Pexels.com

A lista de ingredientes da pizza de presunto congelada vendida sob o nome “Dr Oetker Ristorante Prosciutto” – que estava no cesto de alimentos do IE -, demonstrou ser mais ou menos a mesma nos 11 países onde foi encontrada, tanto no Oriente como no Ocidente. Mas outra das pizzas congeladas da Dra. Oetker, “Feliciana Prosciutto e Pesto”, que foi comprada na Bulgária, difere da “Ristorante Prosciutto” em mais do que apenas a cobertura de pesto. Enquanto a primeira pizza tem azeite, a segunda tem óleo de palma. A pizza Feliciana só é vendida na Polónia, Bulgária, Croácia, Eslovénia, Hungria, Roménia, Lituânia, Eslováquia, República Checa e Rússia. 

A empresa Dr Oetker explica que usa óleo de palma com “razões tecnológicas (por exemplo, processamento da massa, crocância)” e que o óleo de palma está incluído em algumas das suas outras gamas de pizza, tais como Casa di Mama e Big Americans. Estas duas pizzas também podem ser encontradas nos mercados ocidentais.

As multinacionais alimentares rejeitam que haja qualquer descriminação e que pratiquem uma política comercial que procura deliberadamente enganar os consumidores. Explicam as suas estratégias como um esforço para adaptar a sua oferta às diferenças culturais e outras preferências dos consumidores em países diferentes. 

Gosto ou lucro?

Contudo, Isabel Januário, professora do Departamento de Ciências, Biosistemas e Engenharia da Universidade de Lisboa, não acredita que as diferenças nos produtos vendidos em toda a Europa se devam apenas ao facto de as empresas atenderem ao gosto local. “Penso que a principal razão para estas diferenças é económica. As empresas tentam fazer lucro com a diferença entre o custo dos ingredientes e o preço do produto final”, esclarece. “Depois, há também o diferente nível de conhecimento dos consumidores e as suas exigências. Se os consumidores se organizarem, e tiverem um bom conhecimento dos ingredientes utilizados, podem exigir mudanças”.

Alicja Michałowska, advogada de direito alimentar em Varsóvia, também critica a diferença de ingredientes. “A questão da substituição do óleo de colza por óleo de palma é uma mudança na qualidade que não deve ser introduzida. Porque não é algo que os consumidores possam escolher”, diz. “Não vi um estudo em que os consumidores elogiassem ou preferissem o sabor do óleo de palma em detrimento de outros óleos”. Isto é – aos olhos da lei – uma mudança na qualidade”.

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Foto: Polina Tankilevitch/ Pexels.com

Joanna Wosinska, da Fundação Pro-Test de Varsóvia (que realiza testes de produtos) diz que a directiva da UE não tem tido sucesso. “Na altura em que a Comissão abordou esta questão, houve muita pressão por parte dos produtores”, explica. “Existe uma lacuna na directiva, o que significa que ainda podem existir diferenças entre os mesmos produtos com os mesmos nomes e os mesmos rótulos em países diferentes. O lado negativo desta directiva é que o consumidor tem de provar que foi induzido em erro por um produto de dupla qualidade. É evidente que ninguém vai travar batalhas judiciais por causa de um pacote de bolachas.”

No caso dos alimentos, as preferências dos consumidores são repetidas pelos fabricantes como um mantra, acrescenta Wosinkska. “Mas é difícil imaginar que os polacos ou checos queiram ter ingredientes inferiores nos seus produtos… Não é disto que se trata as preferências dos consumidores”. 

Refrigerantes: mais e menos açúcar

Quando se trata de refrigerantes, a Coca-Cola, Fanta e Sprite -, produzidos pela empresa Coca Cola – utilizam diferentes edulcorantes no Ocidente e no Leste da Europa. Em Lisboa, os refrigerantes incluem açúcar normal, com ou sem edulcorantes artificiais. Nos países mais a leste, o açúcar é substituído pela alternativa mais barata – o xarope de frutose e glucose.

“Os edulcorantes nutritivos são uma alternativa, pois apresentam uma composição semelhante, contêm quase o mesmo teor calórico e são também regulados igualmente pela legislação comunitária existente”, explica um porta-voz da Coca Cola. 

“O edulcorante local que utilizamos foi principalmente selecionado devido a considerações locais, tais como a disponibilidade regional de ingredientes. O abastecimento local dos nossos ingredientes garante que podemos apoiar as cadeias de abastecimento e economias locais e manter a acessibilidade e o sabor das nossas bebidas”. Por outro lado, os refrigerantes concorrentes Pepsi e 7 Up – fabricados pela empresa Pepsico -, utilizam o mesmo edulcorante tanto no Leste como no Ocidente.

O gelado Magnum clássico tem açúcar, xarope de glicose e xarope de glicose-frutose em 12 dos 13 países em que comprámos. Mas na Polónia, o único edulcorante utilizado é o xarope de glucose. Tal como o óleo de palma em relação a outros óleos vegetais, o xarope de frutose e glicose é mais barato do que o açúcar. 

“O açúcar comum é feito de beterraba ou de cana de açúcar, recursos que não se podem cultivar em todo o lado. Mas o xarope de glucose, por outro lado, é feito a partir de milho, batata ou trigo. Pode-se usar qualquer amido, o amido local ou aquele que actualmente é mais barato, e transformá-lo numa espécie de açúcar”, explica Ivar Nilsson da ONG sueca Äkta Vara.

Mas será menos saboroso? Há algumas alegações de que é. Num estudo de 2011 da Universidade Estatal de Michigan, um painel de 99 pessoas provou e avaliou o iogurte que tinha sido adoçado com sacarose (açúcar normal) ou xarope de fruto-glucose. O que tinha  açúcar normal era o preferido. 

Em geral, existe uma forte ligação entre o açúcar e a prevalência do excesso de peso e da obesidade. Entre as crianças, o excesso de peso tornou-se uma pandemia global, de acordo com os cientistas. Nos países da UE, 17,9 por cento das crianças em idade pré-escolar tinham excesso de peso ou eram obesas durante o período 2006-2016. No entanto, quando se trata de nutrição, não há consenso científico de que qualquer tipo de açúcar – glucose, frutose ou sacarose – seja melhor ou pior.

Mas os diferentes açúcares têm diferentes graus de doçura. A glicose, por exemplo, é apenas 60% tão doce como a sacarose (o açúcar “normal”), enquanto a frutose é mais doce que a sacarose. Dependendo da mistura de xarope, é necessário haver mais de menos para obter a mesma doçura que o açúcar normal.

“As nossas bebidas açucaradas podem ser adoçadas com açúcar de cana, açúcar de beterraba, edulcorantes derivados do milho ou uma mistura destes”, explica a Coca Cola ao Investigate Europe. “Por exemplo, isto aplica-se à Coca-Cola Original Taste, que está disponível em mais de 200 países em todo o mundo. Contém a mesma mistura de ingredientes e pode ser adoçada com açúcar de cana, açúcar de beterraba, edulcorantes derivados do milho ou uma mistura”, escreve a empresa na sua resposta às nossas perguntas. 

Para garantir o mesmo sabor, “os edulcorantes derivados do milho são utilizados em quantidades marginalmente superiores ao açúcar”, o que explica as diferenças nutricionalmente insignificantes referidas na tabela nutricional (em embalagem)”. 

De acordo com o lobby europeu dos produtores de amido, Starch Europe, o uso mais alargado do xarope de glucose-frutose nos Estados Membros da Europa de Leste não é um exemplo de dupla qualidade alimentar. Pelo contrário, as diferentes escolhas em açúcares para mercados diferentes devem-se a duas coisas, explica aquela organização: a primeira é a abundância de milho, do qual deriva o xarope de milho, na Europa de Leste. Durante o regime de quotas de açúcar da UE, que terminou em 2017, aos Estados membros da Europa de Leste foram atribuídas quotas de produção de xarope de glucose-frutose mais elevadas do que aos países ocidentais.

Quer sejam ou não diferenças baseadas na qualidade, existe um claro padrão Este-Oeste quando se trata da utilização de xarope de glucose em vez de açúcar. 

Mas há outras diferenças. O refrigerante Fanta difere na quantidade de sumo de laranja e limão – ver mapa abaixo. Nos países do sul da Europa (Grécia, Itália, França, Espanha e Portugal), a Fanta tem uma quantidade elevada de sumo de fruta (8-20%), enquanto que nos países do norte têm uma quantidade inferior (4-6%).

A empresa Coca Cola que produz a Fanta diz que as diferenças nas receitas têm a ver com o cumprimento das preferências locais, o abastecimento local de alguns ingredientes, a adesão à regulamentação local, bem como os esforços da empresa para reduzir os açúcares adicionados. “Todas as nossas receitas de Fanta Laranja contêm sumo de laranja, e embora as quantidades de sumo variem devido a razões tais como regulamentos anteriores, permanecem em conformidade com produtos locais comparáveis em cada país”, comenta a empresa. 

Mas para a maioria dos alimentos do nosso cabaz, as diferenças na composição dos alimentos não seguiram qualquer padrão geográfico específico.

O conteúdo de carne no molho à bolonhesa da Barilla varia entre 16 e 19 %  na nossa amostra. Em Portugal os frascos da marca italiana têm 9,5% de carne de vaca e 9,5% de carne de porco, o que coloca o país nos primeiros lugares (a Polónia tem mais 0,4% de carne na receita), à frente da Alemanha, Reino Unido ou Bélgica, onde o molho só tem 16% de carne.

A quantidade de avelãs no chocolate da Milka varia entre 17 e 20%. Mesmo que não exista um padrão geográfico específico que ajude a perceber a diferença, esta é muito clara. Em Portugal, a tablete tem uma informação nutricional muito diferente da que encontramos na Alemanha ou na Bélgica, e melhor: menos gordura, mais hidratos de carbono, menos fibra, menos proteínas.  

Iguais? Só Nutella e Ketchup

No cabaz alimentar que a nossa equipa comparou, mais de metade dos produtos eram significativamente diferentes, quer utilizando ingredientes diferentes, utilizando quantidades diferentes dos mesmos ingredientes ou mostrando diferenças significativas nos valores nutricionais. Apenas um punhado dos produtos, como o ketchup de tomate Heinz e o creme de avelã Nutella parecem idênticos a partir dos ingredientes e da informação nutricional.

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Apenas a Nutella tem ingredientes semelhantes na Europa. Foto: Anna Tukhfatullina/ Pexels.com

Após o discurso de Jean-Claude Juncker em 2017, a Comissão Europeia solicitou ao Comité Misto de Investigação da UE (CCI) que comparasse os produtos em toda a UE, utilizando um método uniforme de teste. 

O relatório do CCI saiu em 2019. Dos mais de 100 produtos comparados, o estudo concluiu que 33 % tinham composição idêntica, enquanto a maioria dos produtos eram, de facto, diferentes. No entanto, o estudo afirma que não “revelou qualquer padrão consistente de diferenciação de produtos para regiões geográficas específicas”. 

Não deveriam os produtos vendidos sob o mesmo nome conter exactamente os mesmos ingredientes e os mesmos valores nutricionais? 

“Em princípio eu diria que sim, a mesma marca deveria vender o mesmo exacto produto na Europa, diz Isabel Januário da Universidade de Lisboa. “Não esperaria que o refrigerante que compro em Portugal tivesse ingredientes e valores nutricionais diferentes em Espanha, ou em França. Isto é algo que deixa os consumidores confusos, especialmente porque os consumidores raramente têm acesso à comparação de ingredientes em diferentes países”.  

As empresas estão proibidas de desenvolver estratégias enganosas e agressivas, que prejudiquem os interesses económicos do consumidor. Depois da discussão sobre a qualidade alimentar na Europa, a diretiva foi alterada em 2019 e foi acrescentada uma disposição específica sobre a dupla qualidade. 

A lei impede enganar os consumidores na comida

A lei da UE diz agora que é comercialmente enganoso um produto que for comercializado como sendo idêntico nos países da UE, tendo ao mesmo tempo “uma composição ou características significativamente diferentes”, a menos que tal seja “justificado por factores legítimos e objectivos”. 

A alteração, que confere maior clareza jurídica à questão, aplicar-se-á em toda a UE a partir de 28 de Maio de 2022, e tornará a tarefa das autoridades nacionais mais fácil. São as autoridades nacionais que podem avaliar, caso a caso, se as diferenças num produto alimentar, comercializado como idêntico, são suficientemente significativas para que um consumidor possa fazer uma escolha diferente, caso tivesse conhecimento da mesma. 

“A legislação da UE geralmente não regula a composição dos produtos. No que diz respeito aos produtos alimentares, os produtores devem cumprir os rigorosos requisitos de segurança ao abrigo da legislação alimentar da UE. Podem adaptar os seus produtos aos requisitos locais, por exemplo, métodos de produção variáveis ou utilização de matérias-primas em diferentes locais de produção. No entanto, não devem comercializar esses produtos diferenciados como sendo os mesmos”, explica um funcionário da Comissão Europeia. 

“A questão em jogo é a comercialização de produtos diferentes como sendo idênticos e não a sua ‘qualidade’ como tal, o que é uma noção em grande medida subjectiva e juridicamente indefinida”, diz o responsável da Comissão.

Biljana Borzan, eurodeputada croata pelos social-democratas, que foi co-autora de uma resolução do Parlamento Europeu em 2018, reconhecendo e criticando a dupla norma alimentar, diz que é uma questão de confiança dos consumidores que alimentos diferentes sejam vendidos com o mesmo nome na UE. O consumidor espera a mesma qualidade da mesma marca, independentemente do país de produção ou de compra, sublinha.

A composição, favorável, do Cornetto, em Portugal.

Embora não se possa negar que os mercados orientais recebem produtos que consideramos ser de menor qualidade, como em todas as leis da UE, o diabo está nos detalhes. Será uma questão de interpretação constatarmos que o gelado Cornetto polaco feito com óleo de palma tem uma “composição ou características significativamente diferentes” do Cornetto português que é feito com manteiga de cacau e nata? 

E se o preço do açúcar e a disponibilidade de amido de milho é ou não um “factor legítimo e objectivo” para a utilização de xarope de glucose-frutose na Coca Cola húngara enquanto se utiliza açúcar no refrigerante austríaco?

Mais cedo ou mais tarde, estas disposições legais terão mesmo de ser interpretadas – se os consumidores estiverem na disposição de abrir uma guerra jurídica por um pacote de bolachas. 

  • Com Wojeciech Ciesla e Sigrid Melchior. O Investigate Europe é uma cooperativa de jornalistas de oito países europeus que investigam em conjunto temas de relevância em toda a Europa e publicam em vários meios de comunicação social europeus. O projecto é apoiado pelas fundações Schöpflin, Rudolf Augstein, Fritt-Ord, Open Society Initiative for Europe, Adessium, Reva e David Logan, assim como por doadores privados. 

Paulo Pena

Estudou jornalismo. Durante 15 anos foi repórter, e editor, da revista semanal Visão: Em 2014 mudou-se, como grande-repórter para o jornal diário Público. Entre 2018 e 2020, foi grande-repórter do Diário de Notícias. Escreveu três livros de não-ficção e uma série de ficção televisiva (Teorias da Conspiração, RTP, 2019). É um dos fundadores da cooperativa europeia de repórteres de investigação, Investigate Europe.

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