Na minha nova rua, no começo oriental de Alcântara, há mais do que uma velha. E mais do que uma tristeza. Mas até agora apenas conheço uma, à força de a imaginar.
No primeiro dia das mudanças, encontrei-a a meio da rua vestida com um casaco verde-fluorescente. Chamava-se Aurora e passeava com um coelho pela trela.
Era um roedor de pêlo esparso, as costas mais pareciam varridas pela mixomatose, e quase não se mexia. Quando me viu chegar, farejou-me – compreendeu logo que eu não era fiável –, e pôs-se a ladrar.
«Uma delícia de cãozinho», disse-me Aurora, pegando no bicho ao colo para eu o ver melhor. Frente a frente, o Delícia de Cãozinho não era coelho, e superava em anos de cão a idade da dona.
Dava ideia de que morreria de esforço se me mordesse, e que continuava vivo por preguiça. Mas tinha o charme das coisas excessivamente feias: metia alguma pena e um certo carinho. Nisto Aurora era igual ao cão, cumpria em cheio isso dos donos se assemelharem aos animais e vice-versa.
Assumi que a vida do Delícia era tirar Aurora do primeiro andar onde esta se punha à janela, e a vida de Aurora era meter a merda do cão dentro de saquinhos de plástico que atirava para cima da tampa do contentor – por ser demasiado baixa, não conseguia abri-la. Viviam o tipo de alegria a que prefiro chamar infelicidade.
Daí em diante, sempre que os encontrava na rua ou na Tapada das Necessidades, o Delícia gania para dentro, Aurora acenava-me e dizia: «É o meu novo vizinho, não é? Como se chama? Já viu um riquinho mais bonito?», e isto tornou-se o refrão das histórias que fui inventando, a ver se ela passava a viver o tipo de infelicidade a que prefiro chamar alegria.
Na minha primeira história, o Delícia levou Aurora ao reino dos mortos.
Pela Rua Maria Pia com a dona de arrasto, ia no encalço de qualquer cheiro, talvez o perfume a morango das adolescentes. Foi nos anos 90. A partir da Meia Laranja desciam os casebres que desde inícios do século XX se agarravam à encosta. Levada pelo cão, Aurora meteu-se nas ruelas.
O Delícia parava nas esquinas, farejava os sapatos dos mortos, mostrava os dentes e seguia. Por fim, na zona do vagadouro, chegou aos pés que cheirara desde o começo da Maria Pia.
Esses pés tinham levado um morto passo a passo até à primeira travessa de acesso ao Casal Ventoso, e desta para a seguinte e a outra depois, até se juntarem cansados aos magotes de outros pés e outros corpos que aguardavam o elixir da vida na avenida principal. Tomada a fórmula no braço, deixavam de ser corpos, por umas horas tornavam-se gente, seguiam cidade fora, mas logo se gastavam, reservando um fim de vida para voltarem ao bairro, de novo em busca do elixir.
Embora soubesse que ali não era sítio de velha sã, Aurora não conseguia controlar o Delícia, que agora lambia os pés ao morto. Ela não o queria ver, os sapatos de sola descolada bastavam-lhe para supor o resto. Pegou no Delícia para fugir mas o cão saltou-lhe do colo.
À sua frente, Aurora viu um rapaz de catorze anos num corpo de velho; mais velho em anos de rapaz do que o cão em anos de cão, e seja como for demasiado velho em anos de pessoa. Não vale a pena escrever a magreza e a roupa suja e o cheiro, mas convém mostrar os olhos ausentes. Esforçava-se por segurar o bicho que lhe caíra nos braços.
O Delícia chegou-lhe o focinho à cara e lambeu primeiro o queixo e depois as bochechas. De repente, o rapaz esqueceu-se do reino dos mortos, afagou o pêlo ao bicho, devolveu-o à dona e sorriu.
Depois, cão e dona saíram do Casal Ventoso.
Na vez seguinte, depois de Aurora repetir «É o meu novo vizinho, não é? Como se chama? Já viu um riquinho mais bonito?», pu-la passeando com o Delícia pelas Janelas Verdes até ao jardim que antecede o Museu Nacional de Arte Antiga.
Aí ficaram parados no Tejo, o Delícia sem decidir se via um mar ou um rio – que é um pensamento banal numa pessoa mas excepcional num cão. Ao descerem a escadaria para a 24 de Julho, deixando para trás os carros da Polícia que se concentravam à porta do museu, o Delícia decidiu que o Tejo era um mar com complexos de inferioridade.
Aurora estava cansada, aquela avenida sempre a amedrontara (imaginava-se cortada pela barriga por um eléctrico), mas sabia que era a volta preferida do cão, que adorava passar pelos lixos vários dos prédios abandonados, dos pedintes dormindo, das obras por acabar.
Num desses embargos, o entulho ocupava parte do passeio. De tanto esperar por quem se livrasse daquilo, a natureza cobriu o monte com chagas, cujas flores amarelas naquele dia escondiam mais do que apenas os despojos da construção.
O Delícia comia as flores quando reparou num quadro. Aurora achou a pintura antiquada, uma espécie de Menino da Lágrima em melhor, mas o Delícia gostou de roer a moldura. A dona seguiu para casa com o quadro debaixo do braço.
Agora dormiam os três juntos, ela agarrada ao cão, o cão espiando o anjo retratado na pintura pendurada à cabeceira da cama.
Nos dias em que o Delícia rosnava ao anjo, Aurora virava a tela ao contrário, de castigo a um canto. Quando o cão e o anjo faziam as pazes, Aurora voltava a pendurar o quadro na parede.
Claro que só usavam a televisão para a novela. Se pusessem na SIC Notícias, Aurora e Delícia saberiam que o quadro de Tiepolo desaparecido do Museu das Janelas Verdes continuava por encontrar.
Isto de eu lhe fazer histórias continuou durante meses. Até que na semana passada dei com Aurora à janela. Acenei-lhe e esperei que ela repetisse «É o meu novo vizinho, não é? Como se chama? Já viu um riquinho mais bonito?»
Talvez desta vez ela fosse admitida no programa espacial da ESA como primeira octogenária a bordo da Estação Espacial Internacional acompanhada do seu cão, ao jeito de Tintim no espaço. Talvez a envolvesse numa rusga em plena Avenida de Ceuta, e se provasse que as armas ilegais encontradas num Peugeot 205 eram suas, mas ela tivesse conseguido escapar alertada pelo Delícia. Talvez a pusesse como funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a funcionária ancestral que ninguém sabe o que faz excepto conhecer os recantos do palácio, de tal maneira que no dia da reforma ninguém a encontrou porque ela se escondera na divisória secreta cuja existência só D. Amélia tinha conhecido – onde antes a rainha chorara a morte do filho (não tanto a morte do marido), agora Aurora afagava o Delícia às escondidas.
Mas o refrão ficou por dizer, e eu tive de parar a imaginação. Olhei para a verdadeira Aurora à janela do primeiro andar no seu casaco verde-fluorescente. Antes de lhe conseguir perguntar pela saudinha, ela tapou os olhos com as mãos tentando que o choro não caísse para cima de mim.
«Eu sem ele não saio à rua, não me dá gosto», disse-me. «Você sabe, você tem visto. O que me foi acontecer! Morreu-me ontem o meu companheiro, o meu cãozinho.»
As mãos eram minúsculas para o tamanho do choro, e não lhe chegavam para abrir a porta e sair de casa. A mim também me morrera o Delícia, ocorreu-me, e por pouco não estávamos ali os dois de luto. Cá de baixo consolei-a, lá de cima ela ficou por consolar.
Agora, quando a encontro, Aurora repete um novo refrão. Chora como se contasse pela primeira vez a morte do Delícia de Cãozinho, e acaba dizendo: «Ó vizinho, perdoe-me a tristeza… E fale-me sempre.»

Afonso Reis Cabral
Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.
Há tantas Auroras e tantos Delícias. Muitas vezes invisíveis. Só querem que os tornemos visíveis, ouvindo-os dizer sempre as mesmas coisas. Falando-lhes.
Fantástico, Afonso! Quero dizer maravilhoso, porque é dum realismo incrível. E o sentimento está lá todo, em grande. Gostei imenso. Muito obrigada.
E gosto de saber que somos vizinhos de novo.
Muito bom! E surpreendente!