O conjunto de dois moinhos do Parque de Moinhos de Santana está na lista dos imóveis que serão reformados. São também o que apresentam os melhores aspetos.

A primavera mal começou, mas o calor pelos lados de Campolide já é veranil. À sombra e a salvo, sentado na cadeira posicionada no passeio, um morador acompanha o registo fotográfico das ruínas do antigo moinho de vento. Um dentre os sete que outrora funcionavam na pacata via e que lhe deram o nome de Rua dos Sete Moinhos.

“Vão reformá-lo?”, pergunta, vencido pela curiosidade, enquanto o sogro observa o diálogo em silêncio. “Vão, sim, entretanto não sei se reformarão estes, da rua”, respondo, preparando-me para ouvir uma boa história.

“Se forem, então, terão que tirar os moradores de lá”, completa, apontando para um segundo moinho na rua, ao longe. O sogro confirma com a cabeça.

O vereador Josué Caldeira, um dos responsáveis pela proposta de recuperação de dez dos moinhos de Lisboa junto do moinho semirecuperado no Restelo.

De uma maneira ou de outra, ainda há moinhos a funcionar em Lisboa, a cidade que chegou a ter mais de 500 deles em plena operação, no século XVIII. Movidos a vento, rios, marés, tração animal e à força humana, eram o topo de gama da tecnologia, isso antes do vapor, do carvão, da eletricidade, da industrialização e das linhas de montagem condenarem-lhes à obsolescência, ao esquecimento.

Resgatar os moinhos do esquecimento é justamente a pretensão da proposta 128/2021, do vereador Josué Caldeira (PCP) que, apesar do apelido movido a vapor, é um entusiasta das simpáticas estruturas que, há séculos, se beneficiavam da potência do vento para, dentre tantas funcionalidades, alimentarem o país.

A perspetiva de ter parte dos moinhos de Lisboa recuperada é um alento no Dia Nacional dos Moinhos, comemorado a 7 de abril, quando normalmente estariam abertos para receberem visitas em todo o país. Os ventos da pandemia, porém, fecharam-lhe as portas pelo segundo ano consecutivo e a única celebração possível será através das redes sociais.

Resgate da história económica e social de Lisboa

Aprovada por unanimidade e subscrita por todos os partidos na Câmara de Lisboa em março, a proposta de recuperação dos moinhos não prevê que voltem a moer trigo, mas que ilustrem como os gigantes quixotescos usavam o mesmo combustível das caravelas – os ventos – para darem sustento à expansão do império.

“A recuperação física dos moinhos é também o resgate da história económica e social de Lisboa”, resume Josué Caldeira, comunista, 56 anos, um economista filho de um padeiro, o que prova que, para além do materialismo dialético de Marx, Freud também pode ter algo a dizer sobre as motivações dos projetos políticos.

A proposta prevê que, inicialmente, dez moinhos de Lisboa sejam integralmente recuperados. Na lista está o altivo par no Parque dos Moinhos, em Belém, que reúne as melhores condições no património molinológico da cidade. “Originalmente, são do século XVIII, mas foram reformados pela Câmara, em 1965”, conta o vereador.

A dupla de moinhos chegou a ter um moleiro residente, responsável por receber os visitantes do parque, mas atualmente encontra-se inoperante. As velas foram retiradas para evitar que o vento volte a acionar a estrutura, danificando-a, enquanto a torre, construída para girar sobre o prédio em busca das correntes de ar, agora está fixa.

A reforma nesses será menos dramáticas, mas a questão é que ambos são exceção à regra. A maioria vai precisar de uma repaginação severa, estrutural. O vereador conduz a um giro por mais dois nomes da lista, nas Chaminés D’El Rey e no Caramão da Ajuda, os dois moinhos já sem as velas, as vidraças partidas e grafites nas paredes. Incapazes de serem postos a funcionar até mesmo para o melhor dos moleiros.

Por falar em moleiro, o projeto contempla ainda a contratação ou, o mais provável, a formação de novos profissionais, além da elaboração de um plano que integre as juntas de freguesia, a comunidade e as instituições de ensino para que as velas do moinho voltem a girar com a força do vento e da participação dos lisboetas.

A expetativa é que os dez moinhos da lista final estejam a funcionar de vento em popa dentro de cinco anos.

Na Rua dos Sete Moinhos, só restam três

O estendal armado com as roupas a secar no “quintal” das ruínas confirma a informação repassada pelo vizinho à sombra, no passeio da Rua dos Sete Moinhos. Na ausência de campainha, resta bater palmas, uma, duas, três vezes, mas em vez dos donos da casa, surge um cão, a ladrar, com cara de poucos amigos. A visita ficará, então, para outro dia.

As roupas a secar no estendal indicam que as ruínas do moinho estão a ser utilizadas como residência, em Campolide.

O moinho residência em Campolide não é o único exemplo de reutilização “alternativa” do património molinológico lisboeta. Há um que abriga, inclusive, um empreendimento, o Biclas de Monsanto, uma loja de reparos e aluguer de bicicletas, a funcionar no Moinho de Penedo, no parque florestal de Monsanto.

Após a tentativa frustrada de contato com os residentes do moinho, volto à companhia do morador e do seu sogro. “Foram os cães, não foram? E são dois”, só agora alerta o lisboeta, que prefere não ter o nome publicado na matéria. “Escreve apenas que sou um morador”, sugere. Morador da Rua dos Sete Moinhos desde 1965, nascido e criado em frente a um dos três moinhos que ainda se mantêm mais ou menos de pé, mas que nunca viu funcionar.  

“Nem eu nem o meu sogro, ou seja, faz tempo”, reforça. O sogro confirma com a cabeça. “Durante anos, vi os moinhos serviram de apoio dos reclames luminosos para os motoristas que passavam na avenida Duarte Pacheco. Isso, eu vi”, conta, apontando para os oxidados suportes dos outdoors, remanescentes no teto do moinho.

O vereador Josuá Caldeira conta que a proposta inicial se guia pelo Plano Diretor Municipal de Lisboa e esse, inexplicavelmente, não contempla nenhum dos três moinhos da Rua dos Sete Moinhos. Entretanto, há a possibilidade de a lista ser alterada, de acordo com parâmetros a serem estabelecidos no futuro, e a via seja incluída no projeto.

“Ah, então vão ser reformados, sim, para virem os turistas, pagarem uma coisinha e visitá-los”, diz o morador, agora mais otimista. “Aí, vou à Câmara pedir uma autorização para montar um quiosque e vender água e miniaturas de moinhos”, completa, já a antever futuros negócios.

O sogro, mais uma vez, concorda com a cabeça.

Um moinho lisboeta num museu londrino

De entre os quatro moinhos que já não estão na Rua dos Sete Moinhos, um deles tem uma história bem curiosa: é peça do Museu de Ciências de Londres.  O moinho que não existe na capital portuguesa, mas é destaque na inglesa, é uma espécie de relíquia para o presidente da Rede Portuguesa de Moinhos, Jorge Miranda.

“Um dia, um carpinteiro de moinhos norte-americano disse-me que havia visto os desenhos de um moinho português em Londres. Não perdi tempo e fui ver isso de perto. Fiquei tão fascinado, que comprei os direitos das imagens e os trouxe de volta para Portugal”, conta o antropólogo Jorge, sobre os desenhos que ilustram a matéria.

O percurso que levou um moinho de Lisboa para Londres data de 1840, quando o engenheiro britânico Simon Goodrich havia protagonizado um Brexit pessoal e trocara o fog londrino pela luminosidade lisboeta nos anos de reforma. A história está contada no livro Portugal, Terra de Moinhos, escrito por Jorge Miranda.

O livro narra que, certa vez, ao passear pela zona de Campolide, a mesma onde hoje o morador à sombra na calçada sonha com o seu quiosque de miniaturas de moinhos, o inglês se encantara com o conjunto de sete moinhos e resolvera documentar o funcionamento destes engenhos, à época já em início de processo de extinção.

Para além de reproduzir as imagens no livro, Jorge Miranda não esconde o desejo de um dia utilizar os desenhos para soerguer, ele próprio, o exemplar já destruído. A oportunidade pode estar à porta, com a aprovação do projeto pela Câmara. Quem sabe, então, a Rua dos Sete Moinhos recupere um de seus engenhos perdidos e os bons ventos voltem a soprar com mais força sobre os moinhos lisboeta.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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1 Comentário

  1. Encontrei um moinho em pleno funcionamento perto de Coimbra em 2016. Boa conversa além do quanto alimentava em muitas casas. Agora também deslumbrante, por ir ao encontro do que é sustentável. Entre outros de grandes histórias, fantasias, arte e ligação. Na Serra de Carnaxide existe alguns transformados num monte de pedras entre um património natural a ser preservado, são objetivos pendentes e com valor associado. Parabéns pela iniciativa.

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