1.
Aprender a esperar. Algo que aparentemente não requer qualquer esforço. Não exige nenhum tipo de acção da nossa parte. 

Esperar pela hora marcada. Esperar que alguém volte. Esperar que chegue uma encomenda. Esperar que passe a semana até ao fim-de-semana. 

Esperar por aquela viagem há muito planeada. Esperar por uma carta. Esperar que alguém se lembre de nós. Esperar que alguém receba a nossa carta. Esperar que melhore. 

2.
Alguns fait-divers: um homem recebe uma carteira que tinha perdido há várias décadas; uma mulher recebe um ramo de flores, com um bilhete anexado, de alguém que entretanto está morto; uma mensagem de uma criança chega ao outro lado do planeta numa garrafa de vidro quando a criança cresceu. 

O que é interessante não é a distância que os objectos percorreram mas o tempo que percorreram. 

São estas notícias que depois correm mundo, dessas que gostamos de clicar, porque são bonitas, são comoventes, e são a prova que constantemente procuramos que, de vez em quando, conseguimos mesmo enganar o tempo. 

3.
Aprender a medir a distância. Entre nós e os outros. Entre o tamanho do braço e o caminho que leva até que alguém nos agarre. 

Aprender que não é por estar perto que alguém nos entende. Que às vezes a comunicação é impossível. E trata-se de aceitar que viveremos extraordinariamente longe uns dos outros ainda que na mesma cidade. 

4.
Uma história que podia ter corrido mundo. É apenas uma frase, um detalhe num grande texto sobre a maneira como a incomunicabilidade se pode sobrepor ao amor. Leio que uma adolescente, envolvida numa guerra de guarda parental, e que não pode, por ordem de um tribunal, contactar a mãe, resolve deixar-lhe uma carta, dentro de um livro, dentro de uma biblioteca. Espera que um leitor ou um bibliotecário a encontre e que seja o seu portador da mensagem. Não importa se demorará muito. O que importa é que o objeto, mesmo chegando fora do tempo, é a prova de que houve amor naquele momento.

Outra frase que não é bem uma história e que talvez tenha a ver com um amor não por alguém mas pela humanidade, ou ideia de que somos melhores do que pensamos. Etty Hillesum, uma judia holandesa que escreveu um diário no tempo da ocupação nazi muito menos conhecido do que o de Anne Frank mas magnífico, lançou um postal pela janela do comboio que a levou do campo de trânsito de Westerbork, na Holanda, para o campo de extermínio de Auschwitz. Estava dirigido a uma amiga, era muito breve, e contava: “saímos do campo a cantar”. 

A letra de Etty Hillesum importa. Naquele dia, uma letra de gestos largos, nada perfeita. O objeto importa. É a prova de que alguém cantou nos piores momentos. E que não só o fez, quis contá-lo. 

5.
Aprender a esquecer. Algumas coisas ficam para trás. Nem todas as memórias se podem guardar a não ser que o mundo fosse um gigante arquivo, em que todos deixaríamos de viver para apenas guardar até ao infinito os momentos em que respirámos. Ainda assim, sobram algumas mensagens para o futuro. Deve ser isso que são as memórias, afinal: mensagens para o futuro. 

6.
Não tenho, por exemplo, as cartas que os meus avós terão trocado entre Portugal e Angola, quando o meu avô emigrou nos anos 50. Só posso reconstitui-las a partir de tantas outras cartas trocadas entre a metrópole e as então colónias, escritas num barco, num porto, em casas diferentes, e a partir daquilo que conheço deles. (É isto a ficção?) 

Mas quem sabe alguma aparece algum dia? Extraviada. Perdida em algum canto de alguma casa da família. Chegada pelo correio três quartos de século depois, como naquelas histórias de jornais que correm o mundo. 

Todos os dias verifico o correio com a secreta esperança de que me espera algo de especial, para além das contas e de postais do CTT para ir levantar livros que encomendei. 

7.
Aprender a olhar. Tomar o objecto pela pessoa. Aprender a encontrar num objecto uma história universal. Um carta. Um bilhete. Uma frase rasgada do que terá sido um caderno onde se apontaram observações que pareciam fundamentais. Observar o desencontro entre um objecto e o seu destino. Prendas devolvidas. Cartas que não chegaram. Outras que chegaram e não deviam ter chegado. Mapas de viagens nunca feitos. Bilhetes de comboio por perfurar, sem uso. Indícios de promessas que deram origens a grandes mal entendidos. (É isto a ficção, a arte do desencontro?). Histórias de gente que não esperou como contos lendários que nos fazem avisos. 

8.
Durante muitos anos fazia regularmente a viagem de comboio entre Lisboa e Porto, mas não guardei nenhum único sinal de que essas viagens aconteceram. Espanta-me que hoje não saiba de cor as paragens e as paisagens deste percurso. Que nem observasse como a janela ia mudando à medida que me dirigia a sul ou a norte. Que não fizesse grandes contemplações sobre o acto em si da viagem, sempre tão apto a comparações com a própria vida. Depois de provavelmente centenas de horas no Alfa e no Intercidades, não me lembro do rosto de nenhum passageiro nem das palavras que teremos trocado. 

O meu peito movia-se subitamente quando via o recorte do Porto sobre o traço escuro do Douro. Ficava finalmente atenta quando começava a ver a superfície lisa e espelhado do estuário do Tejo. Estava a chegar ao destino e sabia que, num lugar ou no outro, alguém me esperava. 

9.
Ao longo dos anos, poetas e políticos, que afinal têm mais em comum do que normalmente se julga, falaram da ideia de que não devemos esperar. Pelo menos, por ninguém a não ser nós próprios. Mas, a verdade, é que nós nunca somos aqueles por quem esperamos. Precisamos de esperar por outros. E em Lisboa, falhando tudo, podemos sempre esperar pelo D. Sebastião. 

A autora escreve sem o novo acordo ortográfico


Susana Moreira Marques

É jornalista e escritora. Tem colaborado sobretudo com o Público e o Jornal de Negócios. Publicou dois livros de não-ficção. Gosta de cidades pela quantidade de histórias que habitam nelas. Foi para se perder no meio de ainda mais histórias que viveu em Londres cinco anos. Saiu do Porto com 18 achando que era temporário, mas ficou em Lisboa e é a Lisboa que sempre regressa.

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