Nas duas últimas décadas, o Fado tem gozado de um enorme crescimento de popularidade e interesse em Portugal e no estrangeiro. Após o desaparecimento de Amália Rodrigues, muita foi a atenção que os media passaram a dedicar a uma nova geração de fadistas e músicos que então começara a aparecer nas principais casas de Fado de Lisboa e Porto. Com estas, por outro lado, deu-se um verdadeiro fenómeno da multiplicação, fruto também do boom turístico de que Portugal, quase que involuntariamente, usufruiu nos últimos anos.

Como quase todas as massificações, esta maior visibilidade e relevância do Fado fez com surgissem no mercado dezenas (ou mesmo centenas) de novos espaços onde se pode (podia?) ouvir ao vivo a canção de Lisboa, património da humanidade. Naturalmente, com o aumento da procura, disparou a oferta de músicos e cantores que, com maior ou menor sucesso, com mais ou menos qualidade, foram preenchendo os elencos desses novos espaços.

Muitos terão recebido, desde cedo, influências familiares ou culturais, fruto da convivência bairrista em Alfama, Mouraria, Bairro Alto ou Madragoa. Outros, sem prévias ligações ao género, atraídos pela beleza do fado ou por uma questão de oportunidade (legítima, diga-se), ali encontraram refúgio e sustento.

E fados em pastelarias, entre um palmier coberto e um eclair? Ou karaoke de fado?

Ora, sendo impossível controlar a qualidade de muitos destes novos recintos fadistas, bem como do nível dos executantes que neles atuam, é apenas natural que muitos fujam àquilo que seria desejável para que a oferta gastronómica e artística sirva verdadeiramente o propósito de promover a nossa cultura a quem nos visita. Aliás, a quem nos visita, mas também aos nossos, os que sempre frequentaram os tradicionais santuários de fado, os novos apreciadores, os portugueses de cá e os que, vivendo fora, vêm matar as saudades da melancolia e da emoção que esta canção encerra.

Assistimos, nos últimos anos, a um pulular desenfreado de espaços com Fado ao vivo, muitos deles excelentes e servindo muitíssimo bem o propósito; outros tenebrosos, desadequados, pretensiosos, ofensivos até… Que dizer de espaços que oferecem fado em karaoke? Sim, leram bem! Um pequeno sistema de som, um microfone, acompanhamento musical previamente gravado a tocar ao fundo e siga a dança!

Então e fados em pastelarias, entre meias de leite e palmiers cobertos? Vi eu, enquanto sorvia uma bica! Pois, tudo dito. Vá lá que ainda não se lembraram de promover fado nos famigerados Tuk Tuk… (Cala-te, não dês ideias!)

Há anos que venho dizendo que deveria haver um maior escrutínio na oferta de Fado, principalmente em Lisboa, mas também no Porto (embora aqui o crescimento não tenha acontecido de forma tão desenfreada e descontrolada). Especialmente após o reconhecimento do Fado como Património Imaterial da Humanidade, temos a obrigação de oferecer mais, naturalmente, mas principalmente melhor.

E quem podia fazer essa filtragem ou controlo? Há quem diga que o Museu do Fado poderia/deveria ter uma palavra a dizer sobre esse assunto, fiscalizando e garantindo que a qualidade da oferta é inquestionável, no mínimo aceitável.

Mas mesmo que essa tarefa fizesse parte das funções desta instituição, como em muitas outras coisas neste país, faltariam meios humanos e materiais para sequer pensar nesta possibilidade. Talvez criando-se um selo de qualidade, imparcialmente atestada por aquela entidade (ou outra de equivalente idoneidade). Podia ser esta ou qualquer outra solução semelhante que garantisse (ou que disso se aproximasse) que ali o Fado é bem tratado, bem servido, bem cuidado.

Isto não é mais do que garantir que uma “marca” internacionalmente reconhecida tem, no seu país de origem, o tratamento que merece. Digamos que seria como passarmos a ter o Fado D.O.P. (denominação de origem protegida).

A pandemia veio pôr a nu as enormes fragilidades de uma indústria – a da restauração – e afetou enormemente o universo cultural.

Enquanto não se chega sequer perto desta possibilidade, existe sempre outro filtro infalível: o tempo. Sempre disse que esse velho barbudo se encarregaria de destrinçar entre o que é realmente bom do resto, entre as verdadeiras catedrais de Fado (que são muitas, felizmente) e os antros de intrujice saloia.

Muitos, como eu, pensam que essa peneira seria fundamental. Mas bolas, que acontecesse aos poucos, gradualmente! Nunca da forma violenta que este soturno Covid precipitou.

A atual pandemia veio pôr a nu as enormes fragilidades de uma indústria – a da restauração – e afetou enormemente o universo cultural. As casas de Fado congregam estas duas realidades e viram-se, por isso, duplamente afetadas por este maldito vírus. Mais, como dependem fundamentalmente do turismo, como não são espaços vocacionados para serviços de takeaway e como o fado (ainda) não se pode servir em cuvettes ou tupperwares, viram-se sem qualquer possibilidade de resistência, sem qualquer alternativa de faturar um mínimo indispensável à sua sobrevivência…e foram fechando.

E a comunidade fadista, sem elas, vai definhando e desesperando. Muitos foram os que, nos últimos anos, abandonaram outras profissões para se dedicarem exclusivamente ao Fado, sonhando com uma carreira que há um ano parecia perfeitamente viável, mas que agora viram os seus sonhos desmoronar, de um dia para o outro, à bruta.

Entristece-me muito o que neste momento se passa no Fado. Preocupam-me muitos amigos, colegas, simples conhecidos que vivem situações severamente difíceis. 

Ainda assim, todas as crises são também momentos para repensar, refletir, renovar. Podemos ter aqui, no meio da catástrofe, uma luz que nos obrigue a mudar de perspetiva relativamente ao turismo, à cultura, a Lisboa…e lutar por fazer melhor, todos. E juntos, por um bem comum, pelo nosso património.

Agora…que venha rápido a tão esperada imunidade de grupo, que voltem depressa as hordas de turistas, que se encham novamente as ruas de Lisboa com Fado. Depois, à boa maneira portuguesa, logo se vê.

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Rodrigo Costa Félix

Rodrigo Costa Félix

É lisboeta, fadista com trinta anos de carreira, letrista, produtor, agente e coproprietário do restaurante Fado ao Carmo. Tem quatro discos editados, vários prémios e distinções – nacionais e internacionais – e uma vida inteira dedicada à promoção e divulgação da “canção de Lisboa”.

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