Lisboa está cheia de elefantes. Há um, pequenino, quase Dumbo, num friso em baixo-relevo à entrada de um belo prédio na Marquês da Fronteira, esquina com a Rua Castilho. Não longe, em Sete Rios, há elefantes verdadeiros, de carne e osso, marfim e tromba, albergados no Zoológico, quase a chegar a Benfica. E aí, em Benfica, na Capela dos Castros, novos animais ocorrem, de pedra mármore.

Belém, então, é um festival paquidérmico. Surgem elefantes, desde logo, a amparar a estátua de D. Afonso de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, frente ao palácio presidencial. A obra, da autoria do escultor Costa Mota e do arquitecto Silva Pinto, foi erigida graças à benemerência de Luz Soriano, intrépido cronista das guerras liberais, que legou em testamento 35 contos para que se pudesse erguer o monumento ao Terrível, em cuja base vemos não uma nem duas, nem sequer três, mas oito cabeças de elefantes, com ar pachorrento e sábio.

A dois passos, no lado poente do Museu de Arte Popular, tropeçamos em mais bichos, provavelmente ali deixados pela Exposição de 40. Ricamente vestidos, de franja na testa, têm um olhar pesaroso e tristíssimo, até faz dó.

Diferentes, bem diferentes, são os exemplares austeros da capela-mor dos Jerónimos, construída por iniciativa de D. Catarina, regente do reino entre 1557 e 1562. Lavrados por Jerónimo de Ruão, segundo dizem, os proboscídeos suportam, em esforço, o pesado peso de vários túmulos régios, que na capela estão dispostos por ordem bíblica: do lado do Evangelho, sepulcros de D. Manuel e de D. Maria; do lado da Epístola, os de D. João III e de D. Catarina. Ensina-nos Paulo Pereira, numa magnífica monografia sobre o local (Mosteiro dos Jerónimos, IGESPAR/Scala, 2007), que a composição é classizante, de pirâmide assente em dois elefantes de mármore, inspirada no Templo Malatestiano, de Rimini, com inscrições latinas da autoria do humanista André de Resende. 

O Templo Maltestiano é uma obra arquitectónica de tal forma densa e complexa, com tantos laivos de paganismo e de mística, que seria necessária uma vida inteira para a compreender, ou sequer tentar.

Os elefantes foram idealizados por Jerónimo de Ruão, segundo dizem, e suportam, em esforço, o peso de vários túmulos régios. Foto: DR

Para não maçar muito os leitores, digamos apenas que o Templo foi desenhado pelo grande arquitecto Leon Battista Alberti, às ordens de Sigismondo Pandolfo Malatesta (1417-1468), um audaz e pouco pio condottiere, conhecido por «lobo de Rimini». Destinava-se a homenagear a sua amante e terceira esposa, Isolla degli Atti. A heráldica de Sigismondo estava prenhe de elefantes e, por isso, não admira que os tivesse escolhido para escorar o seu túmulo, e o da gentil amada. Foi aí, ao que parece, que se inspiraram os elefantes dos nossos Jerónimos. 

Sobra-nos tão-só a dúvida: existindo em vida de D. Manuel I uma presença tão frequente de paquidermes, fará mesmo sentido ter ido buscar inspiração elefantina à longínqua Itália? É que, segundo a hipótese de Jorge Segurado, o autor dos sarcófagos dos Jerónimos terá sido Francisco de Holanda. Ora, em matéria de elefantes, Francisco de Holanda teve contacto directo com o célebre Hanno, ofertado por D. Manuel I ao Papa Leão, não precisando, por isso, de ir meter-se com os paquidermes do Templo Malatestiano. Serão os elefantes dos Jerónimos inspirados nos de Rimini ou terá havido outro modelo, outras fontes?

Questão que se deixa em aberto, sob reserva de melhor estudo.

Por ora, fica tão-só o convite, quase súplica, para uma visita aos Jerónimos, em datas precisas. Como diz Paulo Pereira, em certos períodos do ano o Sol entra de uma forma muito especial pela capela-mor dos Jerónimos adentro, lançando os seus fulgentes raios sobre os túmulos reais, adornados por elefantes.

É verdade. Há ali um alinhamento planetário que, durante vinte dias, antes do equinócio da Primavera, bem como entre 28 de Outubro e o trigésimo dia após o equinócio de Outono, produz estranhas luzes, que Paulo Pereira garante terem a ver com uma «mística solar» que resulta da peculiar orientação do dormitório, da rosácea e da igreja. E, afirma Pereira, nada disso é fruto do acaso nem gesto involuntário: quem fez as coisas assim, sabia o que o que fazia.

Escreve também o Padre Felicidade Alves na investigação que dedicou ao mosteiro:

«Mencionam os cronistas a claridade e luz que ilumina este templo em todo o tempo do ano. Mas comprazem-se, particularmente, no que acontece em duas épocas do ano, ou seja, de 13 de Fevereiro até 20 dias antes do equinócio da Primavera, durante quase um mês; e de 28 de Outubro até ao 30º dia após o equinócio de Outono, durante mais de um mês. Então, desde a hora de véspera até ao pôr-do-sol, “seus raios de ouro, entrando pela parte ocidental, na distância de 450 passos, por linha direita de todo o côncavo do dormitório, coro e igreja, até ao sacrário, fazem mais vistos todo o pavimento, do que se um ourives o dourasse a fogo. Parece pede licença o Sol ao seu Criador para ausentar-se, nas breves horas nocturnas, de tão insigne convento, prometendo que que logo ao nascer o tornará a ilustrar…”  (Frei Diogo, p. 29; cf. Frei Diogo, p. 243; Frei Jacinto § 76; Frei M. B. castro, fl. 657). É curioso que eu próprio tantas vezes me maravilhei com a luz do Sol que, nas referidas épocas, entrando pela rosácea do coro-alto, ia incendiar a capela-mor e o sacrário com uma luz inolvidável…»

(José da Felicidade Alves, O Mosteiro dos Jerónimos, vol. 1, Lisboa, Livros Horizonte, 1989)

Eis, portanto, uma boa razão para rumar aos Jerónimos por esta altura do ano. Uma vez lá, admirai os elefantes, vede os raios d’oiro, regurgitados pelo astro em espasmo equinocial, e pensai, meditai, sobre se Lisboa não é mesmo uma cidade do caraças.

O autor escreve sem o novo acordo ortográfico


António Araújo

Nasceu em Lisboa, em 1966. Jurista e historiador, fez a licenciatura e o mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e o doutoramento em História Contemporânea na Universidade Católica Portuguesa. Exerceu funções como consultor político dos Presidentes Aníbal Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa e é administrador executivo da Fundação Francisco Manuel dos Santos e diretor de publicações. Colabora regularmente com a imprensa escrita, e é editor do blogue Malomil. Foi um dos fundadores do blogue Lisboa SOS e é membro do Fórum Cidadania Lx. 

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