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A processar…
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Quando Ermelinda Simões trocou a barra dos tribunais pela venda de marisco, o cenário na Ribeira era outro, não o silêncio que hoje vive. O mercado era “um espetáculo”, recorda a ex-advogada. Nesses tempos, ainda antes da revolução da Time Out, que dividiu o mercado em dois, um para turistas e restaurantes, o outro para bancas e locais, era um entra e sai de pessoas, a testar entre si quem falava mais alto. E, na banca das Simões, mãe e filha, uma pressa para vender o próximo quilo de “ameijoa boa” ou percebes – o que mais sai daqui. Por isso é que Ermelinda, 49 anos, trocou o escritório de advogados, e o emprego para o qual se licenciara com cinco longos anos na faculdade, pela banca onde Maria de Lurdes, 71, já oficiava desde que a filha tinha 18 anos. “Deixar isto não era opção.”

As coisas mudaram. O silêncio foi trazido pela pandemia. No mercado, as pessoas que se avistam estão quase todas do lado de dentro dos balcões. São as vendedoras, que falam entre bancas, olham para as várias entradas, de mãos nos bolsos dos aventais, à espera de alguém que nunca mais chega. Clientes. Os donos e funcionários de restaurantes da cidade, os maiores clientes destas bancas, quer vendam peixe, carne, fruta ou legumes. São coisa rara por aqui, por estes dias.

Coloque os auscultadores e entre no Mercado da Ribeira, tal como o ouvimos atualmente
Ermelinda Simões, uma ex-advogada que faz a luta no mercado da Ribeira. Foto: Orlando Almeida

Na luta que por aqui se trava, em surdina, pode dar jeito uma advogada. É uma luta contra a pandemia, mas também contra a burocracia que impede cerca de 50 comerciantes que aqui trabalham – entre eles várias famílias, como as Simões – de aceder aos apoios da Câmara Municipal de Lisboa, no programa #LisboaProtege. Em janeiro, o apoio financeiro foi alargado a empresas com uma faturação até um milhão de euros, assim como a empresários em nome individual sem contabilidade organizada. Mas a candidatura exige que o proponente tenha sede fiscal em Lisboa.

É precisamente nesta alínea que começa a exclusão dos vendedores dos mercados municipais – e há dois: o Mercado da Ribeira e o Mercado de Campo de Ourique. Ora, ditam as regras da Câmara que a sede de quem opera num espaço camarário, como estes, não deve ser nestes lugares, mas sim na própria morada dos comerciantes. No Mercado da Ribeira, apenas dois vendedores moram na cidade e, por isso, são legíveis para aceder a este apoio.

Um berbicacho burocrático, com consequências reais. Com os restaurantes – de onde chega cerca de 80% do rendimento dos comerciantes da Ribeira – fechados, os corredores estão mais vazios do que nunca. E os negócios por um fio.

A questão foi colocada à CML, que está ciente do problema. Uma carta aberta foi dirigida ao Presidente da Câmara, Fernando Medina, e Ermelinda Simões teve, depois, oportunidade de participar numa reunião de Câmara, onde expôs o seu caso. “O senhor Presidente sugeriu abrir uma exceção a essa alínea, para os mercados. O vereador Miguel Gaspar entendeu que seria melhor fazer uma pesquisa junto dos comerciantes para saber exatamente o volume de quebras e o que todos estão a passar, para estudarem um apoio dirigido especificamente aos mercados.”

O prazo de entrega da informação sobre as quebras de faturação termina esta quinta-feira, e segundo o vereador Miguel Gaspar os serviços de economia estão a analisar uma solução para propor a estes comerciantes, depois de o assunto ter sido validado em reunião de Câmara. Em cima da mesa está o alargamento das regras de acesso a este apoio, ou a criação de um apoio específico para os trabalhadores dos mercados municipais.

A situação “é sobretudo mais delicada no Mercado da Ribeira”, alerta Ricardo Moreira, deputado municipal do Bloco de Esquerda, que tem acompanhado o processo desde o início. Precisamente pelo contexto, “em plena Baixa lisboeta, onde já quase não há pessoas a morar, enquanto o de Campo de Ourique está inserido num contexto de bairro.”

Ao longo do último ano, três bancas do Mercado da Ribeira não resistiram à pandemia. “Um talho – era um rapaz da minha idade, não aguentou para as despesas. Uma senhora já reformada que resolveu fechar o negócio do marisco, porque já não estava para correr riscos de saúde. E foi um senhor de peixe congelado que, já estando reformado, resolveu que estava na altura de aproveitar a vida, aproveitou o andamento da coisa.” Todos tiveram quebras de faturação acima de 50%, diz Ermelinda Simões, a porta-voz dos comerciantes nesta luta.

E ela sente a crise na primeira pessoa. Antes, chegava a vender dez quilos de ameijoa diariamente para um só cliente. Agora, podem dar para mais do que um dia e a banca fica cheia por mais tempo. Vem um cliente, raro, e os olhares de Ermelinda e da mãe, Maria de Lurdes, são de ansiedade. Um que seja fará a diferença nos dias parados que se vivem.

Um negócio de família e apelidos

Maria de Lurdes e Ermelinda, lado a lado, na banca que as juntou no ofício. Foto: Orlando Almeida

Antigamente, vinham fornecedores de todo o país, “até do Algarve”, para venderem diretamente aos comerciantes do mercado, que depois vendiam aos restaurantes da cidade. “Meteu-se a crise e eles começaram a mandar também para os restaurantes”, encurtando a cadeia de venda, conta Maria de Lurdes. Nem todos: a vendedora agarra uma mão com a outra, levantadas, como quem agradece a sorte dos seus clientes a manterem como fornecedora.

A banca da família Simões não é exceção neste mercado: muitas são assunto de família, sobretudo entre mães e filhas. Foi o corre-corre da Ribeira que atiçou a filha Ermelinda para a venda. “Toda a vida, desde muito pequenina”, conheceu os meandros deste pavilhão de ferro. A cidade era outra, à volta do mercado ainda viviam lisboetas – onde agora tem mais morada o alojamento local. “Vinha todos os dias, com a minha mãe, com a minha avó, fazer as nossas compras.”

Maria de Lurdes, 71 anos, passou o legado da banca de marisco à filha. Foto: Orlando Almeida

Maria, a mãe, cuidou dos filhos, depois de ter sido telefonista numa companhia de telefones e atender numa casa de comércio da Baixa. Mas, com eles já crescidos, respondeu ao apelo de uma comerciante conhecida no mercado que precisava de alguém para substituir a funcionária de baixa. “Vim. Ao fim de uma semana, a senhora já me estava a perguntar se queria ficar, mesmo quando a empregada regressasse”. Ao final de dois anos, alugou a sua própria banca de marisco, onde até hoje vende com a ajuda da filha.

Ermelinda não pensava seguir as pisadas da mãe. Escolheu Direito para se licenciar. Chegou a fazer o estágio completo e a abrir um escritório no Montijo, para onde foi depois morar, já casada. Mas continuava com o bichinho do mercado. “Conciliar as duas coisas era praticamente impossível e deixar isto nunca era opção. Já tínhamos um negócio de há 30 anos e ficou sempre, mais do que um negócio, uma parte de amizade, quase uma coisa familiar. Achei que queria continuar. A certa altura, comecei a pensar: o que me faz mais feliz? É eu ficar aqui, com este ritmo de trabalho, com esta dinâmica, ou fechar-me num escritório? Por outro lado, estava a exercer uma coisa para a qual lutei muito e estudei?”

A resposta acabou na banca de marisco. Aqui, namoriscou pela primeira vez com aquele que viria a ser o seu marido, um talhante que passeia de bata branca, quase a versão moderna do fado de Amália Rodrigues que conta o namorico do Chico com a Rita. Por isso, é o mercado mais casa do que aquela em que dorme atualmente.

A situação atual, no entanto, mudou as perspetivas, e daqui para a frente não será assim, garante: o nome da família neste mercado termina com ela, tem a certeza. A filha, de 13 anos, “gosta muito disto, acha muita graça em vir ajudar de vez em quando, mas fazer disto a sua atividade, não”. É um sacrifício, explica. “Na minha área, que é marisco fresco e congelado, não preciso de ir ao MARL, porque os fornecedores vêm aqui entregar-me as coisas. Mas a parte do peixe é muito dura. Estas pessoas têm de se levantar à meia noite para ir para o MARL. Vêm aqui para a porta do mercado fazer tempo para entrarem às 6 horas. Hoje em dia, os jovens não querem este tipo de vida.”

“Isto vai ficar por esta geração”

A mesma questão é referida por Carla Campos, 48 anos, de avental rosa, a um quarteirão de mercado de distância da banca de Ermelinda e Maria de Lurdes. “Isto vai ficar aqui na nossa geração. Quem é que vem para aqui agora?” No corredor central, faz montra com as suas frutas e legumes, no mesmo lugar onde a sua avó trabalhou.

É já a terceira geração da família aqui e perdeu a conta ao tempo em que o seu apelido ali mora. Enruga a expressão, atira o olhar para o vazio e esforça-se para chamar a memória. “Então, a minha avó faleceu com 80 e tal anos e veio para aqui novinha. A minha mãe já aqui está há uns 30 e tal anos. A minha avó deve ter vindo quando ela tinha uns 20 ou 30 anos.” A dúvida perpetua-se, mas ficamos a saber que há décadas de família nesta banca.

Não estava nos planos de Carla aqui ficar. Não foi destino discutido à mesa, sonhado nas horas vagas e ponderado. Há cerca de dez anos, o desemprego atirou-a para aqui. Tinha trabalhado como funcionária de um consultório de análises e numa fábrica de reclames luminosos. “Vim por vir ajudar a minha mãe, acabei por ficar. A minha mãe veio para ajudar a minha avó e acabou por ficar. Como toda a gente vem para o mercado.”

Carla Campos não quer o filho no mercado. Quer que acabe Direito e escolha outra vida. Foto: Orlando Almeida

Há uma parte de hábito e uma parte de… vício. Apesar dos problemas, nota-se que há aqui uma sensação de família, uma união no trabalho. “Quem vem fica. Não me pergunte qual é a beleza disto. Não sei responder. Sei que o mercado é viciante”. Carla fala da familiaridade de um espaço onde tantas famílias se cruzam e coabitam durante anos, mesmo sem cama e sala de estar. E da falta de monotonia.

Tal como Ermelinda, Carla acredita que a sua geração será a última. Aliás, ela própria faz questão de quebrar a corrente e mantém o filho, de 21 anos, afastado da sua banca, para que “o bichinho” de querer aqui estar não se entranhe também nele. “Não o quero aqui, nem pensar nisso. O meu filho está no 3.º ano de Direito. Se tiver que vir, vem, mas se puder ter outra vida, é melhor do que isto, de certeza absoluta.”

“Isto” já era uma situação precária, que endureceu desde a pandemia. Todas estas famílias são empresas e estas empresas são famílias. Com um rendimento tão aleatório como é o comércio. E as despesas continuaram a somar, apesar de a cidade ter parado. Pagar o sistema de HCCP (Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos) – exigido a todas as empresas do sector alimentar que se dediquem a qualquer fase da produção ou distribuição de géneros alimentícios -, contabilistas, entre outros custos. Uns atrás dos outros.

Enquanto não vem o apoio de emergência, o único apoio que tiveram, de momento, foi a isenção do pagamento da renda, para todos os estabelecimentos comerciais em espaços municipais. Sem isso, garante Ermelinda Simões, que tem sido porta-voz deste comerciantes, “mais já teriam fechado bancas”. Aqui, alugar um espaço pode ir dos 200 aos mil euros, diz. Valor que depende do tamanho e localização das bancas.

Apesar das dificuldades, a colega de ofício Carla Campos não pensa em fechar. Tem a resposta na ponta da língua. “E vamos fazer o quê? Esta é a nossa vida.” Confessa que pensar na manutenção da sua banca vai muito além da questão financeira. Toca ali no “apreço” pelo ofício e por todos os que precisam dela. “O nosso cliente pode aparecer e nós temos de estar aqui. É assim. A nossa vida é esta. Nem que seja para aparecer um cliente. Mas nós temos de estar cá para o servir. Nós somos das fortes. Não temos outra hipótese.”

O mercado vazio de clientes. Foto: Orlando Almeida

Novos (e mais próximos) clientes

A conversa é interrompida. Há um senhor, de andar cambaleado, que estava sentado do lado de dentro da banca de Carla e que pede agora licença para passar e ir embora. Carla explica que “este senhor que acabou de sair é um dos clientes, dono de um restaurante”. “Veio aqui só ver-nos, dizer ‘estou vivo’”, conta. O restaurante dele ainda mais fechado e periclitante do que a banca dela.

De resto, o silêncio é quase ensurdecedor. Quase podemos ouvir o peixe, a fruta, os legumes “a virar caixote de lixo”. Como lembra Carla, o que não vendem “estraga-se” e se um dia passa sem que sejam levados é o suficiente para lhes ditar a morte.

Um cliente ou outro anima o negócio de Carla e da sua mãe (na fotografia). O que não se gasta, vai para o lixo nos dias seguintes. Foto: Orlando Almeida

No início da pandemia, em março do ano passado, os vendedores acharam que, afinal, o mal que este vírus pudesse trazer à economia não lhes tocava. Lembra Carla que “começaram a aparecer clientes particulares”, “assustados”, prontos a açambarcar, sem saber se o cenário de outros países – que estavam a fechar supermercados – se iria replicar por aqui. “Eu vi pessoas a saírem daqui com batatas e cebolas, que acho que ainda estão a comer”, brinca.

Ermelinda Simões diz que a comunidade local se tornou metade dos seus clientes. Mas acabaria por ser sol de pouca dura. Passado um ano, acrescenta Carla, destes clientes “restam poucos”. E o futuro da Ribeira, familiar ou com outros rostos, está de respiração suspensa.

Sobre o Mercado da Ribeira:
Antes de abrir portas junto ao Cais do Sodré, teve várias moradas. Em 1100, nasceu na antiga Praça do Pelourinho como o Mercado da Ribeira Velha. Já em 1600, operando em frente à conhecida Casa dos Bicos, ganhava fama europeia pela sua dimensão. A zona da Ribeira Velha é destruída em 1755 pelo terramoto que abalou toda a cidade de Lisboa. É apenas em abril de 1771 que volta a ganhar vida num projeto de rede de mercados elaborados por Marquês de Pombal, como Mercado da Ribeira Nova. Acabaria por ser inaugurado a 1 de janeiro de 1882, na localização atual.
Sofreu ampliações e requalificações ao longo dos anos, a mais recente com a entrada do grupo Time Out para explorar os dois pisos do mercado. O Time Out Market Lisboa foi inaugurado em 2014.


Catarina Reis

Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

catarina.reis@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. Adorei a reportagem , sou cliente da banca do melhor marisco fresco da Ribeira da D. Lurdes e da Ermelinda . É uma pena ver a ribeira assim com pouca gente , há poucos moradores nessa zona , daí também as poucas pessoas que lá compram. Recomendo a compra desse fresco marisco e a simpatia da mãe e filha também nos cativam .

  2. Excelente reportagem.
    Trabalho no Mercado da Ribeira a 33 anos e posso dizer que os comerciantes da Ribeira e Mercafo de Campo de Ourique são do mais resiliente que existe. Levamos pancada com obras, houve uma altura que estávamos constantemente a mudar de sector, caiamos e levantamo-nos ainda mais fortes. Todas as pancadas deram-nos experiência de vida.
    A nossa vida é essa.
    O simples facto de se ser comerciante em Mercados e Feiras é muito enriquecedor em vários níveis. Cada comerciante tem a sua história de vida… e algumas curiosas.

  3. Rodrigo, gostavamos muito de as conhecer, a essas histórias. Se quiser contar algumas…

  4. A propósito dos Mercados Municipais (só em Lisboa chegaram a ser quase três dezenas), “desenhei” quatro cenários prováveis para o futuro dos mesmos, associando-lhes uma “narrativa” que…dizia (quase) tudo:
    A – “Não os Matem, que Eles Morrem”;
    B – “Se não os Vences, junta-te a Eles”;
    C – “Vão-se os Anéis, Ficam os Dedos”;
    D – “Futuro passa por…, Via Barcelona”.
    (trabalho publicado na revista Distribucion y Consumo, em…2010)

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