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Nasci em São Sebastião da Pedreira, como tanta gente. Lembro-me vagamente (tão vagamente que nem sei mesmo se me lembro, ou se recordo apenas o que ouvi contar à minha mãe) de viver no Bairro da Milharada, onde saia de casa sozinho, cinco reis de gente, para ir comprar pão à mercearia da esquina. Tenho memória, esta julgo que mesmo minha, de usar o troco para comprar chupa-chupas ácidos, que enchiam potes bojudos de vidro e custavam cinco escudos.
A certa altura, mudei-me para São Domingos de Benfica, onde vivi até sair de casa. Andei na escola primária n.º 57, em Telheiras, e foi também nesse bairro que estudei até ao 6.º ano, numa escola amarela na Rua Mário Chicó. Foi não muito longe, em Carnide, na Secundária Vergílio Ferreira, que fiz o terceiro ciclo e o secundário, que fiz amigos que são família, e que me apaixonei pela primeira vez.
Apanhava daí o 26, em frente ao Colégio Militar, e seguia até às Laranjeiras, onde joguei durante cinco anos no Sport Futebol Palmense, perto da Loja do Cidadão. O clube, fundado em 25 de fevereiro de 1910, é o terceiro clube mais antigo da cidade, mas foi dos últimos a ter um relvado. Naquele pelado, eu esfolei joelhos, escorreguei na lama, cresci e aprendi com companheiros que vinham de todo o lado, de Odivelas, do Cacém, da Tercena, de Massamá, e mesmo dali, do Bairro da Palma, uma pérola de outros tempos perdida na cidade urbanizada.
Trabalhei quatro anos na Avenida Fontes Pereira de Melo, com vista para o Marquês e para a António Augusto de Aguiar. Nalgumas manhãs de sol que vi nascer da janela do escritório, pus baixinho a tocar a canção “Lisboa que amanhece”, e as vozes do Sérgio e do Caetano reanimaram o meu corpo cansado para uma última estirada de trabalho antes de ir passar o corpo pela cama. “O vento, enfim, parou, já mal o vejo por sobre o Tejo, e já tudo pode ser, tudo aquilo que parece, na Lisboa que amanhece”.
Quando consegui juntar dinheiro para comprar uma scooter, varri Lisboa-cidade de cima abaixo, vencendo as fronteiras que as colinas e a falta de metro me vinham impondo, conhecendo os miradouros e as encostas, os quiosques e as tasquinhas. A melhor mobilidade trouxe-me a melhor cidade.
Quando fui viver para o estrangeiro, fui com Lisboa na boca, e sorri de orgulho a cada elogio, a cada memória de um estrangeiro. Tenho a sensação – absolutamente fantasiada, claro – que eles aprendem a palavra “saudade” só para saber dar voz àquela sensação de amor e de nostalgia com que lembram a minha terra.
Eu sou lisboeta, mas não conheço Lisboa como a palma da mão, porque Lisboa não são só ruas e praças, jardins e monumentos, são sobretudo pessoas e as suas histórias, comunidades que nascem, relações de vizinhança e de amizade e inimizade, são estórias nos livros, são versos em poemas e refrões de fadinhos, são sons e são cheiros e luz branca refletida na calçada.
Conheço apenas a minha Lisboa como a palma da minha mão, e amo-a porque é a minha casa, mesmo quando não vivo nela. Mas gostava de conhecer outras Lisboas, que existem nas palmas de outras mãos, maiores, mais pequenas, de outras cores, calejadas, novas e antigas. Mãos sem força, mãos sem meios, mãos sem microfones.
Eu quero muito conhecer a Lisboa que não conheço, para saber afinal, com verdade, com luz, o que é Lisboa, quem é Lisboa, para além da que habita os meus eixos, da que faz os meus programas, da que convive nos meus espaços, para além da Lisboa do poder, do centralismo, da Lisboa que aparece diariamente nas manchetes dos jornais nacionais e nas reportagens da televisão.
Quero conhecer a Lisboa que mora a 15 minutos do Terreiro do Paço, sem aquecimento em casa. A Lisboa parada no trânsito da ponte, a Lisboa sem casas para jovens, a Lisboa que nasceu no estrangeiro antes de ser Lisboa.
É para isso que nasce “A Mensagem”: para dar a conhecer Lisboa pelas vozes, pelas histórias, pelos sons, pelos cheiros, através de um jornalismo que passeia pela cidade, com os problemas numa mão e as soluções possíveis na outra.
Em tempos de aceleração, de generalização, de simplificação, em tempos de massificação, de alienação, de despersonalização, um projeto de jornalismo local é um dos mais belos gritos de revolta que se podem dar. Um olhar carinhoso, demorado, à procura do que é especial, que abraça a complexidade para a desconstruir, que quer falar da pessoa, do humano, da sua história e do que ela pode representar para outros.
Numa altura em que o jornalismo atravessa dificuldades sérias para se financiar e se concretizar, um novo projeto de jornalismo local é também um grito de coragem, uma remada contra a corrente. É acreditar que o bom jornalismo, independente, honesto, ainda pode ser um bom negócio, porque há sempre quem o queira comprar.
Ver finalmente nascer este projeto emociona-me, embarga-me a voz, porque sei que nasce de corações apaixonados pela cidade, corações bons de jornalistas extraordinários como a Catarina Carvalho e o Ferreira Fernandes, feito numa redação jovem e experiente, portuguesa e estrangeira, a partir d’A Brasileira do Chiado, berço cultural de tanta coisa boa.
Já não é todos os dias que a ternura e a coragem se juntam para fazer nascer algo novo. Este é um bebé que tem de ser celebrado, apoiado e acarinhado, porque nasce para nós, Lisboetas. Hoje, amanhecemos com uma nova voz. Que falemos através dela por muitos, muitos anos.

João Marecos
Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Aqui cresceu, fez amigos, estudou Direito, tornou-se advogado, antes de a curiosidade o levar para Nova Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beira do Tejo. É o amor que o mantém fora de Lisboa, será o amor a fazê-lo voltar.
Um bom projeto com gente boa, gente decente, termo bem caro a um seu mestre.
E acompanhei esse percurso que me permitiu saber qual o 3º clube mais antigo de Lisboa. E contam muito estas curiosidades dadas aqui a conhecer.
Parabéns , os lisboetas já mereciam que gente gira lhe desse voz . Bora lá.
Gostei deste bom texto e do patrício lisboeta. Eu nasci na Enfermaria de Santa Bárbara, no último andar do Hospital de S. José, onde o Prof. Costa-Sacadura tinha estabelecido a primeira consulta pré-natal em Portugal. A Enfermaria de Magalhães Coutinho seria aberta em 1927
e, em 1931, seria inaugurada a Maternidade Magalhães Coutinho (MMC) com lotação de 143 camas, em 1969 transferida para o Hospital de Dona Estefânia, nome da Rainha, esposa de D. Pedro V, que doou o seu dote de casamento para custear a enfermaria e o hospital, de tão impressionada ficou com a promiscuidade existente no tratamento de enfermos, crianças e adultos.
Que extraordinária iniciativa. Como lisboeta fico muito orgulhoso e irei suportar no que for possível esta demanda.
Obrigada Ricardo. Em breve receberá a newsletter com a campanha de apoio. Até breve?
Que lufada de ar fresco, obrigado!
Tão bom ler sobre a minha Lisboa, que é bairrista, cosmopolita, multicultural e que desperta o sentimento saudade em quem a conhece.