O Brasil não é para principiantes, mano, o Brasil não é para estagiários, bicho, o Brasil não é fácil, cara, o Brasil é complexo, velho… independente do sotaque, da região, do grau de escolaridade, todo brasileiro sabe ou no mínimo intui que esse Brasil, devedor da sua caleidoscópica herança multiétnica, das contradições do seu sincretismo religioso, da sua miríade cultural, fruto de tudo isso misturado e batido num liquidificador e espalhando num país de dimensões continentais, vai exigir paciência, dedicação, humildade e resiliência para quem tentar decifrá-lo.
Uma ousadia na qual muitas vezes o próximo passo a dar é um passo atrás, seja para corrigir a rota e retomar a jornada, seja para abrir a perspetiva e observar melhor o cenário.
Há, porém, entre as tantas tentativas falhadas de retratar o perfil dessa esfíngica nação, algumas muito bem conseguidas e a exposição “Complexo Brasil”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, é uma delas. Justamente ao perceber desde o início a dimensão utópica do desafio e sabiamente aceitar que impasses, arestas, ruídos, contradições, desvios, muros e precipícios não constituem um problema, pelo contrário, são variáveis fundamentais nesta equação.
Pois um país é cozinhado em fogo brando nesse caldo denso, caótico e agridoce.

Antes de mais, antes de mergulhar nessa imensidão que com suas cores, alegrias e dores enche de vida e quebra a monotonia e certa assepsia arquitetónica modernista do prédio principal da Gulbenkian, é preciso enfatizar aos lisboetas e portugueses em geral que a exposição não é uma declaração de guerra dos brasileiros aos antigos colonizadores, nem um statement decolonial, nem a exigência de reparação histórica ou o desejo de infligir penitência e comiseração.
Como propõe o curador José Miguel Wisnik no catálogo da exposição – por si, só, uma obra de arte editorial – a exposição não reclama uma reparação histórica, mas um reparar na história colonial, observá-la e não “atentar contra ela, mas atentar para ela” e incluir o outro “em si, em vez de excluí-lo como ameaça”.
Está dito.

Assim, “Complexo Brasil” está mais para um POV de um monumental e sensorial reels, convidando os nossos irmãos a enxergar o Brasil pelo point of view dos brasileiros, uma oportunidade importante, crucial até, em tempos onde essa relação está mais sujeita a blocks do que a likes.
Uma tela para deslizar o olhar e melhor perceber esse estranho familiar com quem se convive cada vez mais, às vezes tão parecido e quase sempre tão distinto, um brasileiro para além do brasileiro da novela, da bola e do samba no pé, da capoeira, do frevo, do sotaque cantado, da malandragem e da sedução.
Um brasileiro que é tudo isso, mas não é só isso, e se tornou esse sujeito poliédrico moldado por uma sucessão de acontecimentos e contextos históricos e sociológicos, devedor da latitude que aquece a sua carne e o seu sangue, fiel aos seus deuses e aos seus orixás.
Um brasileiro realmente complexo, fruto de um “Complexo Brasil”… de tirar o fôlego.
Saiba mais sobre a exposição:
Para portugueses e brasileiros redescobrirem o Brasil:
“Complexo Brasil” nasceu de um convite da Fundação Calouste Gulbenkian a Miguel Wisnik. Aliás, de um convite tardio para o propósito, a celebração dos 200 anos da independência brasileira, celebrada em 2022. No período, porém, o Brasil vivia às sombras do governo Bolsonaro, soterrado, entre tantos pântanos, no fracasso das relações externas.
Aos 77 anos, o primeiro impulso de Wisnik – que havia prometido a si mesmo nunca mais ser curador ou membro de um júri – foi de agradecer e negar o convite. Coube ao filho, Guilherme Wisnik, arquiteto, curador e professor de história da arte, persuadir o pai a levar à frente o desafio.
“Cê tá louco, pai. Um convite desses não se deixa passar”, argumentou Guilherme.
O breve colóquio familiar revela o ADN de uma exposição que tem como principais pilares a música, maior objeto de estudo de Miguel, e a arquitetura e arte contemporânea, métier de Guilherme. Mas não só: a inclusão de Milena Britto, pesquisadora na área de literatura, no casting de curadores, fechou o circuito e selou o futuro exitoso do projeto.
Há ainda de se ressaltar o papel crucial da cineasta, dramaturga, iluminadora e cenófraga Daniela Thomas ao dar corpo ao conteúdo curatorial, ocupando os dois pisos da Gulbenkian uma instalação multissensorial onde a luz, a cor e o som dialogam, às vezes em sussurros, noutras aos gritos, com os visitantes.
Para reforçar o que parece óbvio, apesar de “Complexo Brasil” ter sido pensada para abrir esse diálogo com os portugueses, é uma excelente oportunidade de o brasileiro imigrante em Portugal se reconectar com o país que deixou para trás pelo motivo que seja, permitindo-se levar e se emocionar, redescobrindo-o.
Até porque a essência da diáspora está nas urdiduras da exposição, ao reunir obras de autores brasileiros e estrangeiros espalhadas pelo mundo – inclusive por museus de Lisboa – assim como a presença brasileira está amplamente vertida pelos quatro cantos do planeta.
Ou seja, parte do material exposto também “imigrou”.

A curadoria também privilegiou o fluxo inverso, dos europeus que imigraram ao Brasil, como o neerlandês Albert Eckhout, pintor da comitiva de Maurício de Nassau durante o período holandês. A pintura logo na entrada da exposição que ilustra um nativo originário Tapuia no litoral de Pernambuco é esclarecedora sobre esse olhar estrangeiro debruçado nesta nova terra.
Acostumado com as paisagens holandesas, Eckhout não incluiu o azul nas matizes de cores na sua bagagem artística e assim o céu do litoral pernambucano é tão cinzento quanto o de uma paisagem em Amesterdão ou Eindhoven. O tapuia brasileiro, apesar da pouca roupa apropriada aos trópicos, hoje congela numa parede do Museu Nacional da Dinamarca.
O que vai encontrar nesta exposição:
Em uma das entrevistas sobre a exposição, o Wisnik pai, jogando com as possibilidades semânticas da palavra “complexo”, lembrou que no Brasil os novos espaços comunitários na periferia das capitais, mais notadamente no Rio de Janeiro, são denominados de complexo, como é o caso do mais famoso deles, o Complexo do Alemão.
Essa nova forma de organização social e cultural peculiar à urdidura urbana brasileira acabou por contagiar a estrutura em que o “Complexo Brasil” se apresenta nos dois pisos da Gulbenkian, ao mesmo tempo respeitando e não respeitando um percurso cronológico, escapando pela tangente dos perigos do estanque museológico.
Um exemplo é o espaço que recebe os visitantes, dedicado aos brasileiros originários, chamados pelos portugueses de “índios”, denominação oriunda da controversa narrativa aprendida nos livros de história de que as caravelas de Cabral tinham destino a Índia. Está lá o tapuia de Eckhout e o seu firmamento cinzento, representante de um registo colonialista da época.
O tapuia poderia surgir um percurso expositivo cronológico se o indígena do quadro não encarasse diante dele o manto tecido pela neo-originária Glicéria Tupinambá, artista, professora e liderança indígina, que retomou a cultura do seu povo ao voltar a tecer os mantos, imbuídos de simbolismo religioso para os tupinambás.
O manto de Glicéria, ao lado de um outro tecido por Arthur Bispo do Rosário e dos Parangolés de Oiticica, são uns dos deslumbres da exposição e serão descosturados em outra das quatro matérias que a Mensagem de Lisboa vai dedicar ao “Complexo Brasil”, ao lado da relação dos brasileiros com a Amazônia e as nuanças da ágora urbana de matriz brasileira.
Um conselho importante aos visitantes é o de dedicar o tempo necessário para assistir aos vídeos espalhados em quatro espaços de exibição, desde o primeiro, uma timeline audiovisual das imagens e músicas que traduzem esse Brasil complexo, mas principalmente o que faz a transição entre os dois pisos e convida a assisti-lo sentado nos degraus que leva ao andar inferior.
O documentário O Peixe, do pernambucano Jonathas de Andrade, cristaliza a peculiar relação de respeito e sinergia do brasileiro com a natureza ao retratar uma comunidade piscatória do estado de Alagoas onde os pescadores, após a pesca artesanal, abraçam-se ao peixe retirado da rede num comovente consolo enquanto o animal agoniza até morrer.

Arte contemporânea, pintura e fotografia se entrelaçam para contextualizar as heranças do flagelo da escravidão, desde a tentativa de “branqueamento” da população negra oriunda de África, à opressão religiosa, marcada na obra Cruz Negra, de Nuno Ramos, uma instalação in progress na qual um ancinho mecânico lentamente rasga uma cruz pintada na areia.
A instalação onde o cristianismo é “arado” pela tecnologia dos tempos está bem em frente à outra onde a severidade geométrica construtivista é ocupada pelo etéreo das religiões de matrizes africanas e seus orixás, num sincretismo de cores fortes com direito a suas próprias “cruzes”, como o machado-cruz de Xangô.


As várias camadas presentes em “Complexo Brasil” convocam constantemente o visitante a refletir sem nunca confrontá-lo ou acusá-lo, é sempre bom mais uma vez frisar, o que não impede dessa reflexão retirar da sua zona de conforto quem para diante de uma das obras e se permite ser tocado pelos estímulos.
Mas a principal sensação ao encerrar o percurso – não sem antes uma pausa de repouso e reflexão nas redes armadas e disponíveis aos visitantes – é de que talvez seja preciso dar o tal passo atrás sugerido no início do texto e retornar à uma ou outra peça ou vídeo para que o puzzle desse Brasil tão complexo se encaixe melhor, tanto no olhar dos descendentes dos colonizadores como dos colonizados, revelando quem realmente somos.
Assim como o reflexo de portugueses e dos primeiros brasileiros nos espelhos trazidos nas caravelas que desembarcaram no Brasil.

Complexo Brasil
Galeria Principal e Piso inferior da Fundação Calouste Gulbenkian
Até 17 de fevereiro de 2026
Quarta a segunda, das 10h às 18h
(sábados, até às 21h)

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