A 15 de agosto celebra-se o feriado da Assunção de Nossa Senhora e em Lisboa assinala-se também o dia que a tradição considera ser o do nascimento do seu santo mais popular. Fernando de Bulhões já nasceu diferente dos outros, no melhor bairro e numa das melhores famílias da Lisboa contemporânea de D.Sancho I, o segundo rei de Portugal.
O pai de Fernando, nobre abastado, teria uma propriedade frente à Basílica de Santa Maria Maior, hoje conhecida como a Sé Catedral, era um homem de armas descendente de cruzados e dedicava-se a instruir o seu filho a ser cavaleiro do reino.
Fernando tinha tudo para ser um senhor. Mas Fernando não queria guerrear, antes observar e escutar o outro, e ler, ler todos os livros do mundo. Naquela época, as bibliotecas habitavam nos mosteiros.
Com apenas 15 anos, depois de ter recebido a primeira instrução junto à Sé, Fernando entra no Mosteiro de São Vicente de Fora, na Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho.
Faz a sua primeira viagem partindo para Coimbra, que era na altura a capital do país, onde completa a sua formação no Mosteiro de Santa Cruz e é ordenado sacerdote com 25 anos.
Em fevereiro de 1220 experiencia um choque emocional que haveria de mudar toda a sua vida: no adro do mosteiro são depositados, vindos directamente de Marrocos, os restos mortais de cinco missionários franciscanos tornados mártires – cinco cabeças decapitadas pelo filho do sultão.
Esta visão, todas as histórias que se contavam sobre a tortuosa jornada que envolveu aqueles cinco, e ainda por cima por os ter conhecido pessoalmente em vida, poucos anos antes, naquele mesmo mosteiro, impressionaram Fernando de Bulhões.
Rendido à fé e coragem, sobretudo à simplicidade e voto de pobreza dos frades, decide abandonar a ordem dos Agostinhos juntando-se aos Franciscanos.
Troca de hábito, troca o sumptuoso mosteiro por uma humilde ermida (Santo Antão dos Olivais), e até troca de nome! Só não troca de nação porque se sentia do Mundo.
Viaja para Marrocos para prosseguir ele próprio, sozinho, a missão dos 5 mártires amigos, evangelizar o Califa, o Sultão, o filho e todo o reino islâmico. Felizmente para ele, e para nós (pois seria ali muito provavelmente morto, acabava-se a história e não teríamos hoje Arraiais de Lisboa), que uma febre de todo o tamanho o atirou à cama obrigando-o a desistir a meio do caminho.
De regresso, uma tempestade mais forte que mil febres atira-o para a Sicília, onde descobre outros frades amigos. O relato da sua missão falhada oferece-lhe protagonismo.
Dali parte para a Itália continental, para Assis, onde conhece pessoalmente Francisco, o pai fundador da ordem. É depois nomeado orador principal em Montepaolo, depois Forli, Vecelli. A sua eloquência e formação intelectual dão nas vistas.
Em Bolonha inaugura uma escola de teologia que se torna numa das bases da Universidade desta cidade. Continua a viajar, incansável, devoto e sedento de conhecimento. Por terras de França ensina nos conventos de Toulouse, Montpellier e Puy-en-Velay.
Este lisboeta, em viagem contínua, recusa limitar-se à simples profissão de fé. É também homem político, agente social defensor dos fracos e oprimidos, seria hoje apelidado de perigoso activista. Lutou, pela palavra, contra ditadores, déspotas e usurários. Ao contrário de muitos dos seus pares esteve sempre ao lado dos pobres, das prostitutas, dos que não tinham chão.
E contudo, mesmo habitando os espaços da agrura, teria uma boa-disposição fora do comum: quando, na cidade italiana de Rimini, após várias tentativas de chegar à fala com os seus habitantes que recusavam a ouvi-lo, resolve virar-se para a margem entre o rio e o mar e começa a falar com os peixes:
– Ouçam a palavra de Deus, ó peixes do mar e do rio, visto que estes hereges infiéis se recusam a fazê-lo.
Fernando de Bulhões morre em Pádua no dia 13 de junho de 1231. Já todos o conheciam como Santo António. Dizem que fez milagres – não o fazem todos os grandes revolucionários?
*Artigo publicado originalmente a 15 de agosto de 2022, republicado um ano depois

Nuno Saraiva
Lisboeta empedernido, colaborou praticamente em toda a imprensa nacional. Cartunista político, o seu traço é o traço de Lisboa, é o autor das imagens das Festas de Lisboa de 2014 a 2017, criador dos troféus das marchas, e há 10 dos seus murais nas paredes da cidade. O seu livro Tudo isto é Fado! ganhou o prémio do Festival internacional de BD Amadora. Dá aulas na Lisbon School of Design e na Ar.Co. São dele todos os desenhos na homepage da Mensagem.

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Adorei conhecê-lo. Que belo camarada este santo. Muito agradeço ao senhor.