Nascido em Angola, Lucas Massocolo Pedro é daquelas personagens da vida real que carregam consigo uma trajetória capaz de surpreender até os mais imaginativos autores de ficção.

Vindo de uma numerosa família de seis irmãos, perdeu o pai muito cedo e viu a mãe multiplicar os esforços para que nada faltasse em casa, apesar do ambiente de insegurança instituído por uma guerra civil. Os jovens eram continuamente recrutados para o combate e, com ele, não foi diferente.

Numa das incursões da tropa, partiu para a missão com mais quatro companheiros, dos quais voltou apenas um. Coube a Lucas dar a notícia das mortes. A partir dali, já não era mais o mesmo.

Foi o desporto que o salvou do perigo.

Começou a ser destaque no basquete e no atletismo, sendo este último a paixão que escolheu seguir e que acabou por levá-lo a uma carreira promissora. Sempre que havia competições, era dispensado da guerra e decidiu que a única batalha da qual queria participar era contra si mesmo, determinado a quebrar os próprios recordes.

Campeão no triplo salto, chegou à seleção nacional angolana e teve a honra de estar nos Jogos Olímpicos de 1988, em Seul, onde conheceu nomes de repercussão mundial, como Ben Johnson e Carl Lewis. Com o tempo, ganhou dinheiro, visibilidade e um convite para integrar o quadro de atletas do Benfica, onde permaneceu anos e consolidou a relação com Portugal.

O país onde um incêndio lhe levaria tudo, mas onde Lucas Pedro se formaria juiz social e conseguiria alcançar um dos seus maiores troféus: ajudar a emancipar outros através do desporto.

Lucas começou por conquistar troféus sozinhos; hoje, esta luta é coletiva, é a de uma comunidade. Foto: Rita Ansone

O fogo que levou as medalhas

Entre as promessas de um futuro no desporto, foi pai e a situação começou a mudar a partir dali: já não se dedicava tanto quanto aos colegas e, depois do segundo filho, a realidade bateu à porta. Conciliar a rotina regrada de exercícios com as responsabilidades da família parecia um sonho cada vez mais distante e decidiu, então, abandonar os treinos.

À procura de alternativas, encontrou na construção civil uma forma de garantir o sustento das crianças.

“Fui trabalhar para as obras. A maior parte dos imigrantes acaba por seguir este caminho, de profissões mais desgastantes e duras. Eu também fui levado a isso”, recorda.  

Acostumado ao prestígio e ao reconhecimento, Lucas percebeu que já não era visto pelas pessoas com o mesmo entusiasmo. “Nós íamos nos autocarros e éramos chamados de ‘pretos da Guiné’. Em certos trabalhos, apresentava-me e punham-me de lado. Pensavam: ‘não vale a pena porque vou deixar essa malta aqui e ainda pode roubar as coisas’. Havia ali pouca confiança”, lamenta.

Os momentos de angústia seguiram-se uns atrás dos outros.

Após a separação, passou a morar num barracão no quintal da irmã e, um dia, a caminho de casa, notou no olhar dos vizinhos que algo estava errado: um incêndio tinha levado tudo o que possuía – móveis, documentos, fotografias, medalhas e todas as lembranças dos tempos áureos da juventude foram consumidos pelo fogo.

Só sobrou mesmo a roupa do corpo.

O atleta que virou juiz social

Mas, na manhã seguinte, estava de volta ao trabalho decidido a recomeçar. Para Lucas, foram os ensinamentos da época de desportista que trouxeram resiliência para as fases mais difíceis: “Principalmente no desporto individual, tens que ir buscar forças no interior de ti. Se fazes um salto e o gajo passa-te, precisas de ir buscar as forças que não tens e que já deste além do teu limite para ultrapassar”.

O destino reservou outros planos para quem ele se tornaria.

Descobriu um refúgio nos estudos e, aos poucos, veio a tão esperada estabilidade.

Deu entrada na compra de um apartamento, licenciou-se em Serviço Social e seguiu para uma pós-graduação em Política Social. Assumiu diversos mandatos como juiz social, cargo que exerce atualmente no apoio a julgamentos realizados no Tribunal de Família e Menores de Sintra. A função é uma das formas de incentivar a participação de cidadãos que queiram contribuir com as atividades judiciais do município.

De novo o desporto, o caminho para a inclusão

Em 2010, fundou a associação Estrela da Lusofonia para a integração de imigrantes, principalmente angolanos, e seus descendentes.

Na Rua da Paz nasceu a nova missão de vida de Lucas. Foto: Rita Ansone

Os pedidos de ajuda que recebe são os mais variados, desde a dificuldade de resolver uma infiltração na casa até pagar os custos do velório de um parente. A entidade, localizada no Cacém, em Sintra, conta com centenas de membros, oferece apoio alimentar, psicológico e auxilia na resolução de problemas com habitação, desemprego e regularização de documentos.

Mas um dos projetos, em especial, faz brilhar os olhos do dirigente, que exibe orgulhoso a coleção de troféus em cima do armário. O projeto “Vida Saudável” faz do desporto a principal ferramenta para a inclusão dos jovens na comunidade, com xadrez, futebol, basquetebol e karaté.

A ideia é dar suporte para que desenvolvam não só as capacidades físicas, mas consigam ocupar o tempo livre com ações de reflexão e combate às múltiplas discriminações enfrentadas no dia a dia pela cor, nacionalidade ou origem étnica.

“O método que nós usamos é criar atividades desportivas antes ou depois de uma sessão de esclarecimento, para eles poderem ouvir. Sei que muitos não são capazes de saírem de casa só para irem à sessão. É um modo de poder captá-los”, explica.

E engana-se quem pensa que ele conseguiu afastar-se de vez do atletismo. Lucas Pedro continua a competir no triplo salto, agora na categoria de veteranos com mais de 55 anos.

Hoje é casado, tem cinco filhos, dois netos, e poucos planos para a reforma. “Eu já vivo dentro do meu sonho. Eu tenho tudo”, sorri. Tendo a guerra como uma das suas primeiras recordações, não por acaso criou as raízes da associação na Rua da Paz e fez dela a maior vitória que um dia sequer pensou que seria possível alcançar.

Muito além daquelas medalhas que o fogo um dia levou.


Nascida na Amazónia brasileira, Maíra Streit tem uma vida comprida para os seus 36 anos. Ao transgredir as próprias fronteiras, encontrou no jornalismo um território para a liberdade. Cultiva a sede de desvendar o mundo através do olhar do outro e tem um especial interesse por tudo o que acontece à margem das narrativas. Mergulha sempre que pode na cobertura dos direitos humanos porque sabe que, às vezes, é preciso partir-se para continuar inteira.


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3 Comentários

  1. Muito bom ler histórias que nos motivam. Excelente matéria 😃

  2. Como não se sentir tocada e se emocionar com essa história de superação? Parabéns Maira por nos apresentar o Lucas, através deste texto INCRÍVEL!

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