Estávamos na década de 1980. Para os jovens residentes ao longo do concelho de Vila Franca de Xira, no distrito de Lisboa, andar de comboio era a forma de suprir as necessidades de ensino da região: havia duas escolas no concelho e depois… Lisboa, para onde tantos alunos do secundário iam parar todos os dias. Uma espécie de preparação para quem faria vida do ensino superior, das tunas e anfiteatros lisboetas, anos mais tarde.

Para lá, só havia duas hipóteses: um comboio muito cedo, de manhã, e outro pouco depois do meio dia. As últimas carruagens estavam quase sempre destinadas aos mesmos: aqueles jovens com destino às escolas e universidades de Lisboa.

Luís Janeiro era um deles.

No dia em que perdeu os amigos para uma tragédia na ferrovia, tinha em comum a idade e as ambições de muitos: 19 anos, amante de teatro – embora hoje seja gestor de empresas e “um ator frustrado”, como se apresenta. Isso e hoje também um dos fundadores de uma associação que decidiu dar um bom futuro a uma má memória passada: o acidente ferroviário de 5 de maio de 1986.

Também ele fazia o percurso até Lisboa, mas fugiu à regra naquele dia, por outros compromissos.

“Vi-os, ainda me despedi de alguns a caminho do comboio.” Uns minutos depois das 12:00, na estação ferroviária de Póvoa de Santa Iria, um comboio suburbano com destino a Lisboa chegara para cumprir o ofício de sempre. Momentos depois, o chefe da estação é visto a acenar com uma bandeira vermelha e há memória de alguns passageiros correrem aflitos para fora da carruagem.

Um sinal vermelho foi ignorado. E nem o aviso do chefe da estação bastou para travar o comboio rápido vindo da Covilhã e a tragédia que estaria prestes a acontecer.

As últimas carruagens foram abalroadas: 17 ou 18 mortos (ambas as versões estão pela imprensa da altura) e cerca de 80 feridos fizeram as manchetes do concelho e do país. Um evento que entrava para a história do país como um dos piores acidentes ferroviários – um ano antes, em 1985, a 11 de setembro, cerca de 150 pessoas morreram e 64 foram dadas como desaparecidas numa colisão junto à estação de Moimenta-Alcafache, na Linha da Beira Alta, considerado o pior acidente ferroviário em Portugal.

Foto: Facebook Bombeiros Voluntários Póvoa de Santa Iria

Fazer da tragédia um movimento de esperança

Os destroços terão ficado meses na linha, como uma memória intermitente para quem continuaria a utilizar o comboio, nos dias seguintes.

Mas, mesmo sem destroços, a memória ficaria lá, pintada sobre Póvoa de Santa Iria e todo o concelho de Vila Franca de Xira. “Parece que todos perdemos alguém ali. Foi um grande abalo para a comunidade.” Luís Janeiro conta como tantos alunos deixaram de estudar, como as viagens de comboio passaram a ser de aflição para alguns e como ele ficou doente com tuberculose, depois de ter deixado de comer.

“Todos os 5 de maio, lembramo-nos do que aconteceu, enviamos uma mensagem uns aos outros. Alguns ficam com a neura, alguns falam, mas só 35 anos depois é que fomos capazes de nos sentar à mesa e decidir fazer alguma coisa construtiva com o desastre.”

Então, Luís Janeiro ajudou a fundar a Associação Memória É Cultura, oficializada em 2022.

Representantes da associação (Luís Janeiro é o segundo, da esquerda para a direita) reunidos com o Grémio Dramático Povoense.

🎧 Ouça aqui a reportagem completa:

A associação nasce com o ímpeto de ajudar jovens entre os 14 e os 20 anos – a idade do ensino secundário e de muitos dos jovens que morreram naquele acidente – com talento para as várias artes (teatro, escrita, ilustração, música, dança) e permitir-lhes serem acompanhados por grandes nomes ligados ao concelho nessa mesma área.

São financiados sobretudo por sócios e atuam com o apoio de várias instituições culturais como a Sociedade Euterpe Alhandrense, a Sociedade Filarmónica Alverquense, o Conservatório Silva Marques, o Grémio Dramático Povoense, entre outros.

Entidades que ajudam a concretizar sonhos como o do jovem Miguel Conde, que sonha nos palcos e ao piano com o dia em que contará as suas histórias.

Esta reportagem faz parte da “Mensagem Rádio”, um programa que passa quinzenalmente na RDP África (do grupo RTP), à terça e sexta-feira, e em permanência: no site da Mensagem, em rdpafrica.rtp.pt e no Spotify.

Produção: Catarina Reis (Mensagem de Lisboa) e Isabel Leonor (RDP África)
Voz e edição: Catarina Reis


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt


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