Vai haver uma hora em que a vitória será desta cidade. A cada dia, torna-se evidente o que o encanto do primeiro impacto se esforçou por disfarçar: Lisboa é uma terra que dá luta.

Claro, ainda há imagens: a cidade a estender-se à nossa frente, a vida a acontecer à nossa volta, o pôr-do-sol a cair no horizonte, o espanto que o azul-azul do Tejo nos enfia olhos dentro. E a ideia de uma esplanada plácida, o conforto da conversa com os amigos, o riso que nos vai dizendo que, apesar de, a coisa ainda vai valendo a pena.

Foi assim que me encontrei esta semana com a Teresa na Alameda. O sítio não tinha sido óbvio. Ela perguntou “Onde?”, eu respondi “Num sítio giro” e acabámos a ver relva. Sempre gostei daquela zona, onde morei quando me mudei para cá, pela confluência de culturas, comidas, movimentos. E, meu deus, que movimento.

Não vou falar da pior tosta mista que já comi, do pior pão com queijo fresco por que a Teresa alguma vez pagou. Sentadas na esplanada do Pão de Açúcar, cada toque no pão parecia uma bomba atómica a desfazer tudo em migalhas.

E a conversa, que se esperava paz entre amigos, teve mais irritação do que amizade.

À minha esquerda, à direita dela, milhares de carros passavam, dezenas buzinavam. As ambulâncias seguiam de sirene ligada. Os turistas tentavam atravessar a estrada tranquilíssimos da vida, e que interessava que o semáforo estivesse vermelho? Grupos de miúdos ocupavam o passeio.

Dois minutos de conversa não passavam sem a interrupção do barulho, que parecia um circo, ou de um gajo qualquer que resolvia meter conversa, fosse para perguntar se queríamos que desenhasse caricaturas, fosse para dizer que era o aniversário dele e que precisava de dinheiro porque tinha perdido o último comboio, isto apesar de serem seis da tarde e de lhe vermos o braço picadinho.

Uns metros adiante, como já é época de Santos, o Toy cantava nas colunas que ia ser toda a noite, toda a noite, que naquela noite ia beijar, dançar, hum hum, até se cansar, toda a noite.

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Lá saímos da esplanada, procurando um lugar mais tranquilo. Na Alameda, era impossível. O fumo das sardinhas aguenta-se, mas entretanto a Rebeca já metia conversa, também via colunas, apresentando-se a todos.

Era educada: o nome dela era Rebeca, e o nosso qual era? Queria conhecer-nos para dançar o pereré. Para quem não sabe: são dois passitos para a frente, dois passos para trás, mãozinha na cintura e depois vê-se no que dá.

Ora, eu e a Teresa somos um grupo fechado, custa-nos fazer amigos, e era impensável irmos dançar o pereré uma com a outra, quanto mais com uma senhora que nos piscava o olho em frente às bancas de couratos.

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Continuámos a subir a Alameda, levámos com uma tuna em cima. Tendo chegado ao topo, com todo o jardim à frente, em cima da Fonte Luminosa, a Teresa ainda ousou dizer: “Até está sossegado aqui.”

Para não iludirem ninguém, os estudantes universitários cantaram a Lisboa inteira o que andavam a aprender na escola: que a mulher gorda para eles não convém, que não querem andar na rua com as banhas de ninguém; que a mulher magra também não lhes convém, não querem andar na rua com o esqueleto de ninguém.

Ouvimo-los com a sensatez que a idade trouxe, sabendo que, com mais dez anos em cima, iam deixar de ser tão exigentes, eles, que eram gordos e magros, consoante, e ainda tinham a marca do acne nas bochechas.

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Desistimos. Descemos pelo lado direito, onde dois senhores confundiam as árvores com urinóis públicos. Continuámos até à Almirante Reis e virámos à esquerda. E o inferno era sempre o mesmo: buzinas, sirenes, trânsito parado, impedido por uma ciclovia que, a sós, entope meia cidade. Volta e meia, era o costume: as ambulâncias, sem outro remédio, davam o pisca e metiam-se na ciclovia para chegarem ao S. José a tempo.

Seguimos para o mercado de Arroios a ver se um húmus nos safava, mas o Mezze estava fechado. Continuámos pela Carlos Mardel até à Morais Soares, quase levando com duas Giras em cima. O lixo amontoava-se aqui e ali como se fosse parte da paisagem. Com o sol a bater de cima, a sujidade era uma gosma seca em cima da calçada.

E depois ficámos sem saber para onde ir. Já estava difícil encontrar um lugar para relaxar. Os turistas continuavam aos magotes, qualquer centímetro cúbico dava a ideia de haver demasiada gente para tão pouca cidade.

A palavra que usámos foi esta: sobrelotada.

Resolvemos continuar a conversa por WhatsApp. Sempre estaríamos mais relaxadas, de pernas estendidas no sofá. E então voltou cada uma para a sua casa, cada uma pequena para os parâmetros de um país, cada uma grande para os parâmetros de uma cidade. Cada uma a levar-nos centenas de euros por mês em capital e juros.

Ao meter a chave na fechadura, ainda pensei: realmente, há outros sítios em que se vive melhor. Lembrei-me dos meus amigos em Vizela, Guimarães e Braga. Ganham todos menos do que eu, têm todos casas maiores – duas, três, sete vezes –, têm todos casas mais modernas. Quando saem, bebem tranquilamente um Ucalzinho uns com os outros. Ninguém tem de berrar com ninguém, ninguém tem de falar mais alto do que as sirenes.

Mas depois entrei em casa e vi tantos livros, tantas estantes, tantas prateleiras embutidas, que, só para não estragar as costas em mais uma mudança, decidi ficar aqui para sempre.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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