António Cabrita, original e incómodo poeta português (e de Lisboa), logo, filho do Atlântico, mas radicado em Maputo, à beira do Índico, onde ensina dramaturgia sem se esquecer das urgências do tempo, veio à capital portuguesa apresentar o seu livro Death Can Dance, publicado pela The Poets and Dragons Society. Um livro que, disse ele, na sessão de abril da tertúlia “Poéticas Afro-Atlânticas em Lisboa”, na Livraria Snob, lhe foi “imposto” pelas guerras atuais que assolam a Europa e outras partes do nosso pequeno mundo.

Nada mais apropriado.

Afinal, a mais recente tertúlia organizada pelo Clube Literário Kalunga – palavra kimbundo que quer dizer imensidão, mas também significa divindade (deus) e mar, misturando num só todos os misteriosos sentidos dessas humanas representações, a que todos, tementes que somos, julgamos poder amparar-nos – teve como tema “poesia e guerra(s)”.

Mais do que uma coincidência, tratou-se de trazer para Lisboa o rescaldo de um belo festival literário e artístico – o Ronda Poética – realizado na cidade de Leiria de 20 a 25 de abril, cujo tema foi exatamente esse.

O poeta Luís Filipe Castro Mendes, curador desse festival, é também um participante regular da tertúlia organizada pelo Kalunga, tendo-lhe cabido, portanto, contar a quem estava na Snob como tinham corrido os múltiplos debates em Leiria. Luís Castro Mendes leu, na ocasião, um pungente poema de Halyna Kruk, conhecida autora ucraniana, traduzido por Ricardo Marques, do qual se destaca aqui a seguinte passagem:

              Tu estás de pé, com um cartaz “não à guerra” como se fosse uma

              indulgência ao que não pode mais ser revertido,

              a guerra que não pode mais ser revertida,

              é como o lustroso sangue de uma artéria ferida,

              ele flui lentamente até te matar,

              entra nas nossas cidades com gente armada,

              espalha grupos subversivos pelos nossos pátios interiores,

              são como bolas de mercúrio letais que não podem ser apanhadas,

              nem viradas ao contrário, apenas traçadas e destruídas

              por esses gestores civis, escriturários, informáticos e estudantes,

              a vida não os preparou para os combates urbanos, mas a guerra sim

              nas condições do terreno, com as pressas, no terreno dolorosamente

              conhecido as defesas territoriais admitem primeiro aqueles com

              experiência de batalha,

              e depois aqueles que lutaram apenas no Dune e no Fallout

              que fizeram uma pequena masterclass sobre como preparar cocktails

              explosivos dada por um barman conhecido.

              (…)

Outros participantes assíduos do projeto “Poéticas Afro-Atlânticas em Lisboa”, como os portugueses Nuno Júdice, Maria João Cantinho (além de Luís Castro Mendes) e a peruana Júlia Wong leram textos relacionados, direta ou indiretamente, com o tema da tertúlia. O mesmo fizeram livremente outros poetas que estavam na assistência, uma vez que esta tertúlia organizada na Snob pelo Clube Literário Kalunga tem sempre o microfone aberto a quem quiser participar.

Como lembrado por todos na ocasião, várias são as guerras pelas quais, antes de afligi-los, os homens são responsáveis: as guerras em que eles se enfrentam de armas nas mãos, mas também, por exemplo, as guerras das desigualdades, da fome, do racismo, da intolerância religiosa e outras.

Cartas a Biden e Putin

António Cabrita, que era o convidado especial da tertúlia, declarou: é preciso retrucar. Eis a citação completa:

“Não há poesia de circunstância: há o vendaval da guerra que derruba os palmares e a necessidade de testemunhar como mudou a paisagem, desde a soleira da nossa porta. É o mínimo: humildemente, retrucar. Em vez de ficarmos cegos, mudos e surdos, acantonados no hábito de mudar a corrente da bicicleta”.

O poeta atlântico que veio do Índico para se despedir de um amigo que está a morrer e que, de passagem, animou a última tertúlia organizada pelo Clube Kalunga na Snob citou outro poeta (Enzensberger), para quem a guerra é sempre “talhada por uma faca inconcebível”.

Por isso, e não querendo imitar o náufrago que se alegrou, no poema de Enzensberger, por não ver nenhum iceberg à vista, mas pretendendo – isso, sim – conservar o seu último momento de lucidez “entre a labareda e o incêndio”, ousa insurgir-se contra todos os embustes que povoam as narrativas sobre a atual guerra que, mais uma vez, volta a pôr europeus contra europeus, quer os usados pelos invasores como os usados pelos “exportadores da democracia”.

Assim, o poeta chora a destruição de Odessa, a cidade onde nasceu Ana Akhmátova, pelo “novo czar”:

              O vento não estacava em cada degrau

              da escadaria em que Eisenstein

              rodou a cena mais famosa

              d´O Couraçado de Potemkin,

              mas agora, num golpe de rins, ex-

              traviado o fantasma do carrinho do bebé

              e vendo como espirra o nariz do míssil,

              trava o passo e vela o horror em rodízio

              que muda uma cidade em sudário.

              Nem o vento escapa a lembrar-se

              duma certa cadeira de barbeiro,

              e cede à democracia do medo –

              invenção soviética que o novo czar

              assertoou nos fatitos dos seus súbditos;

              (…)

              Em Odessa, berço de Akhmátova,

              as unhas de Deus azedam as laranjas”  

Mas o poeta também não absolve os que dizem fazer a guerra em nome da democracia. Por isso, no dia em que fez 64 anos, escreveu uma “carta a Joe Biden”, onde diz:

              O tio Sam já não exporta a democracia

              exporta

                            cinquenta palavras para designar a neve

              e dispendiosos catálogos de máquinas

              que esburgam gritos

              e almas até ao sabugo.

              (…)

              Metam-se a pau

                                          as jugulares de Drácula

              nada escapará à sede do sangue.

A magia de Kalunga

O projeto “Poéticas Afro-Atlânticas”, já na sua sexta edição, tornou-se um evento regular na cidade de Lisboa. É, pois, obrigatório – podemos dizê-lo – ir à Livraria Snob na última quarta-feira do mês para duas horas de boa poesia de todas as latitudes e de encontros surpreendentes.

Na última sessão, por exemplo, estavam lá a poeta chilena Gladys Gonazález e o poeta brasileiro Sérgio Nazar David, especializado em Garret. Sem esquecer, claro, a música, como, também nesse dia, a do jovem violinista e intérprete moçambicano Malenga, radicado em Lisboa, que surpreendeu o público com várias canções em maconde e swailli.

Kalunga, a imensidão, o grande mar que uniu África, as américas e a Europa, continua, pois, a exercer a sua magia.

Como se pode escutar na voz de Amália Rodrigues, interpretando o tema do angolano Eleutério Sanches com esse título, num espetáculo em Paris:

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*João de Melo é escritor angolano.

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