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Se for construído o novo aeroporto no Montijo, poderá haver uma vítima inusitada, além das espécies que, segundo os ambientalistas, estarão em risco: a livre navegação de embarcações típicas no estuário do Tejo ficará condicionada pelo tráfego aéreo, que trará sérios perigos à travessia, especialmente nos canais junto à pista.

Os que dedicaram a vida aos barcos coloridos estão preocupados com esta possibilidade que apelidam de “incompreensível”. “É uma série de problemas que ninguém nos sabe dizer como vai funcionar”, dizem.

Quando olha para as embarcações típicas do Tejo, João Gregório vê “autênticas peças de museu”. Sabe de cor as muitas histórias gravadas nos cascos de madeira pintada e delicia-se sempre que as pode contar a novos curiosos.

“Há cem anos o papel destes barcos é o que hoje pertence às empresas de camionagem. Transportavam de tudo para todo o lado, pela nossa “estrada”, pelo nosso rio, o Tejo, iam até Vila Velha de Rodão”, explica João.

João fala do orgulho que sente em ter sido escolhido para mestre de embarcação da Câmara Municipal da Moita, e aponta para a casa onde nasceu e viveu, que fica mesmo ali, em frente ao velho cais de pedra, de 1722.

No pequeno largo junto à casa dele plantou um monumento que honra esta paixão. Fez com as próprias mãos uma estrutura em metal pintado que reproduz a proa de um barco típico, governado pela santa padroeira.

“Dá-me uma paz de espírito do outro mundo e, quando partir – já disse isso à minha mulher – vou contente e descansado porque contribuí para isto cá ficar para sempre”, diz.

“Ainda não acredito que vá ser ali o aeroporto!”

João Gregório foi membro fundador do Clube Náutico Moitense. Esteve, com o professor e cientista Fernando Carvalho Rodrigues na fundação da Marinha do Tejo e, mesmo aposentado, dedica a vida às embarcações tradicionais cujo nome varia consoante a dimensão.

Como muitos, hoje diz-se preocupado. “Ainda não acreditei que vão fazer ali o aeroporto, com franqueza”. “Ali” é, como quem diz, na Base Aérea do Montijo, situada num ponto-chave do estuário do Tejo.

A obra, que se discute há cerca de 50 anos, tem várias possibilidades – Montijo, Campo de Tiro de Alcochete ou Santarém têm sido as mais consideradas – sendo que nenhuma delas reúne consenso.

No caso do Montijo há grande contestação, não só porque a previsível subida do nível das águas (causada pelas alterações climáticas) pode fazer com que a pista fique submersa em poucos anos, como o tráfego aéreo – com tudo o que implica em termos de poluição atmosférica e sonora – seria uma grave ameaça à biodiversidade que abunda na zona, conforme sublinhado por José Alves, investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro, e Maria Ana Dias, investigadora da BirdLife International, que em 2020 publicaram um artigo precisamente sobre esta questão, na revista Science.

E a que mais preocupa João Gregório: o condicionamento da travessia das embarcações no estuário do Tejo.

É que a deslocação das embarcações tradicionais, à vela, faz-se de acordo com a navegabilidade dos canais. Estes canais funcionam como vias – ou “estradas”, nas palavras de João Gregório – que permitem a navegação, por serem zonas onde a profundidade da água é maior. “São aquelas linhas brancas. Está a ver?”, aponta.

A transformação da Base Aérea do Montijo em aeroporto condicionará necessariamente a travessia das embarcações no estuário do Tejo. Foto: Sofia Craveiro.

A transformação da Base Aérea do Montijo em aeroporto implica o prolongamento da pista na direção de um destes canais.

Em 2020, a Marinha do Tejo comunicou estas preocupações à Agência Portuguesa do Ambiente, à Autoridade Nacional de Aviação Civil e à Administração do Porto de Lisboa, através de um conjunto de cartas.

Nesses documentos estão feitos os cálculos e esquematizados os momentos de levantamento e aterragem dos aviões na pista, sendo demonstrada a perigosa proximidade que poderia haver entre os mastros dos barcos (que podem ter mais de 20 metros) e os aviões.

O estudo destas situações foi feito para contestar a Declaração de Impacte Ambiental, que garantia a segurança na movimentação do tráfego aéreo e fluvial, nomeadamente no que respeita aos valores do “tirante de ar” (altura máxima da embarcação acima da linha de água).

O cientista Fernando Carvalho Rodrigues explica que o alargamento da pista fará que “o avião passe a cinco ou seis metros acima dos mastros”, o que seria demasiado perigoso. O fundador da Marinha do Tejo diz mesmo que essa proximidade faria que os barcos “levassem com a alta temperatura dos gases dos motores”, correndo o risco de incendiar.

“De acordo com o nosso perfil altimétrico, naquele local”, para onde aponta João Gregório, “os aviões passam a menos de 25 metros de altitude”, diz, para explicar a impossibilidade de “convivência” segura entre barcos e aviões. Foto: Sofia Craveiro.

“Quem é que tem o direito de lhes pôr uma ameaça sobre as cabeças?”, questiona.

Circulação ameaçada… e por vários motivos

Para fazer ouvir as muitas contestações à construção da estrutura, a Plataforma Cívica Aeroporto BA6 – Montijo Não, realizou uma travessia de barco entre o Seixal e o Samouco como forma de protesto. A ação foi noticiada pela imprensa local.

Uma das preocupações manifestadas, segundo Manuel Fernandes, fundador do coletivo de cidadãos, é que a circulação dos barcos, “principalmente entre a baía Moita-Rosário-Montijo” ficará ameaçada.

“A pista vai ser prolongada para dentro de água, os barcos vão passar pelo canal, praticamente, no início da pista [de aterragem] e, por conseguinte, de acordo com o nosso perfil altimétrico, naquele local os aviões passam a menos de 25 metros de altitude”, refere.

A par disso, sublinha que as aeronaves já trarão os trens de aterragem descidos, o que agrava o perigo de embate com os mastros das embarcações. “A navegação dos barcos ficaria praticamente inviabilizada ou então os barcos tinham de ter um semáforo”, ironiza Manuel Fernandes.

Para quem sabe de cor o que significa navegar no estuário a conclusão é simples: “não vamos ter ordem para sair fora de ‘casa’”, diz João Gregório, referindo-se a travessias feitas em direção a Lisboa. “Ficamos limitados à maré, enquanto isso hoje não acontece. Eu entro e saio aqui para o estuário a qualquer hora”.

Este condicionamento que, na prática, significa um impedimento à livre circulação das embarcações no estuário do Tejo, leva João Gregório a pensar a longo prazo na preservação deste património.

“Tira-nos o estímulo prático para mantermos as nossas embarcações e as nossas tradições. Se nos prejudicam, para que é que eu quero o barco? Para vir para aqui para o desassossego?”

Barulho e poluição serão, portanto, problemas que acrescem aos requisitos de segurança para a navegação. Além disso, ficam também prejudicados os negócios associados à preservação das embarcações, como é o caso do estaleiro do mestre Jaime Neves.

O mestre Jaime Neves no estaleiro que herdou do pai e que ficará também em risco se as embarcações do Tejo ficarem em terra. Foto: Sofia Craveiro.

Herdado do pai, que o herdou do seu pai, este estaleiro naval localizado na freguesia de Sarilhos Pequenos (Moita) é o único do género em toda a área do estuário e representa um importante apoio à sobrevivência dos veículos flutuantes que a autarquia candidatou a património mundial da UNESCO.

No caso de o aeroporto no Montijo vir a ser uma realidade, fica também prejudicado o rumo das embarcações típicas até este ponto de restauro.

“Estes barcos vêm sempre à tarde, quando há mais fluxo.” Portanto, se forem impedidos de velejar durante o dia, também não poderão fazer o seu caminho até este estaleiro. “Ou os aviões param ou faz-se ali uma operação stop…”, diz Jaime Neves que sublinha ainda a grande preocupação com as aves que habitam junto à base aérea.

“Aquilo é um bem que nós temos todos, no Tejo, que é mal empregue no aeroporto. [Haverá] mais betão, mais autoestradas, mais porcarias, barulhos…”, lamenta. “É de evitar tudo o que possa ali fazer”, afirma o proprietário do estaleiro naval.

Olhando para o rio que tanto o apaixona, João Gregório não consegue evitar o lamento por estas preocupações estarem a ser ignoradas. “Deviam ouvir uma pessoa que usufrui do rio praticamente todos os dias, no corpo e na alma.” A possibilidade de perder a “tranquilidade” e o prazer de navegar é, por isso, difícil de encarar. 

“É um bocado de nós que eles vão mandar abaixo”, lamenta.


* Sofia Craveiro costuma dizer que é jornalista por obra do acaso, já que a ideia era seguir outro caminho. A casualidade levou-a a integrar um jornal local teimoso e insistente que a fez perceber a importância da informação fidedigna para a vida democrática. Desde essa altura tem trabalhado temáticas de cultura e sociedade, dando voz a desigualdades para plataformas de jornalismo independente. Integra o Projeto Inocência, de jornalismo de investigação


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1 Comentário

  1. Obrigada por este artigo, e por dar voz às pessoas da zona. Como habitante do concelho da Moita, e do Gaio-Rosário, vejo esta ameaça do aeroporto com a mesma preocupação. É uma zona delicada, de grande riqueza de fauna e flora, com grandes aves como os flamingos, com muitas tradições de séculos ligadas ao rio, como esta das embarcações tradicionais. E com a prevista subida das águas, é uma loucura colocar lá um aeroporto.

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