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Topámo-nos numa manifestação qualquer. Já se vê o estilo: Praça Camões, fim de tarde, multidão a espalhar-se ante o Chiado. Eu falava com uma miúda aleatória sobre um assunto aleatório e então ela chegou. Cumprimentou-a e a mim também. Apanhando os restos da conversa anterior, começou a falar sobre gramática. E pimba, já eu estava apanhada. O complemento oblíquo na voz de uma mulher já é sussurro que tem tom de promessa.
Não a conhecia de lado nenhum, nem ela a mim. Mas falar de vogais átonas une qualquer par. Fui para casa a pensar em pós-tónicas, e a perguntar-me porque raio dizia ela crruassã em vez de curaçã. Ou tinha nascido em França ou tinha a mania de ser chique. Qualquer hipótese me encantava, qualquer uma batia certo com o cabelo preto a brilhar ao pôr-do-sol e o vestido branco a esvoaçar.
A partir daí, comecei a estar atenta às agendas das manifestações. Isto em Lisboa é como circuito de bares: quem vai a uma talvez vá a quase todas. E assim foi, da descida da Avenida da Liberdade no 25 de Abril (o pior lugar para um engate por ser o pior para as alergias) à descida da Almirante Reis no Primeiro de Maio. Lá fomos dizendo uma coisa à toa só para ficarmos nos radares. Eu, como é evidente, antes das manifestações passava a ferro as melhores camisas, e admito que fazer três quilómetros a pé, e depois mais três para ir buscar a mota, dentro de sapatinhos com tacão não é vida para ninguém. Mas que podia eu fazer?
Passou mais um mês e nada. O engate à portuguesa leva muito tempo. Lá nos encontrámos no Terreiro do Paço para mais uma indignação. Aquilo acabou já depois das seis e meia. Para o governo, já devia ser claro que a vox populi não mais toleraria a reprodução forçada de galináceos ou que não ia haver paz social até que, finalmente, se criasse um alfa que unisse Bragança a Lisboa em meia hora. Essa parte estava arrumada, faltávamos as duas – ou era agora ou nunca.
O problema é que vivo numa cidade onde não há bolo com sardinhas. Para os meus vizinhos, um lanche de fim de tarde mete queques. Ora, depois de falarmos tanto de gramática, eu não a ia convidar a comer queques. E, àquela hora, aquilo ainda corria o risco de se arrastar para o jantar, o que fora de casa não me dava jeito porque não tinha a escova de dentes e estava na hora de retocar o perfume, Amor Amor da Cacharel. Decidi que avançava, ia correr o risco e pronto. Mas, antes de lhe dizer qualquer coisa, ela disse-me assim:
– Queres ir beber uma cerveja?
Eu atrapalhei-me toda e respondi:
– Não, tenho de ir para o ginásio.
E, feita idiota, fui embora, eu, que até já tinha treinado naquele dia. Já em casa, pensei no trabalho que dá levar um engate até ao fim. Mas tinha de ir à luta, principalmente depois de ter sido uma alonsa. Inventei que estava a preparar-me para uma competição de taekwondo. Mandei-lhe uma mensagem: “Ah, desculpa, tenho torneio daqui a três semanas.” Aguentei-me como pude durante dez minutos de WhatsApp, eu, que nunca fiz taekwondo na vida, tendo de ir buscar uns termos ao Google. E, agora que era artista, e marcial, lá a convidei para jantar, julgando que só se ela fosse lorpa é que não diria que não.
Mas ela disse-me que sim. Percebi que foi levada ao engano porque gostou de mim na mesma. Combinámos para o dia seguinte às oito e três em minha casa.
Antes da hora, tive de ir às compras. Os individuais de mesa que tinha eram verde-alface, leves, de má qualidade. Passei no Colombo à pressa, arranjei uns mais ajeitados, comprei manjericão fresco. Lá fora, chovia e a Domino’s dizia que podia demorar três horas até entregar a pizza. Fui ao frigorífico e peguei no que havia. À romântica, fiz-lhe uma pizza de raiz, excepto a massa, que já costumo ter para um aperto. Mas ali estavam a mozarela, o ananás, que sou dos bons, uns toques de creme balsâmico e bacon caramelizado só para encher o olho.
E então ela tocou à campainha. Abri a porta cá de cima. Ouvi a porta bater lá em baixo. Ela subiu.
Foi lindo vê-la. As botas tinham calçado poças, o cabelo tinha saído de um lago. Quis dizer-lhe, enquanto a via sacudir o guarda-chuva, que ela parecia um raio de sol a iluminar uma montanha, mas saiu-me apenas um “Ah. Está a chover?”
Fez um meio sorriso, bem o vi. Perguntei-me que raio haveria de errado com ela, qual teria sido o seu equívoco. Já não havia explicação para a vida: eu um desastre e ela a gostar de mim na mesma.
O cenário, admito, engatava sozinho. Ainda havia dois castiçais de velas na mesa, as cadeiras eram confortáveis, meti Tori Amos só para que não houvesse dúvidas de que era para pintar um clima.
Ela dúvidas também não tinha. Viu a pizza com o manjericão fresco em cima e disse:
– Foste tu que fizeste?
E eu:
– Claro.
– Uau, até a massa?
Hesitei, mas por amor vai-se à guerra:
– Claro que sim.
Pus-lhe vinho branco no único copo para vinho que tinha em casa, deixado cá pela anterior. Sendo abstémia, bebi água. Mas, num engate, não fica bem a ninguém dizer que se é abstémio, passa-se logo por alcoólico. Então por mais alcoólica passei: “Estou a cortar no álcool.” Como eu usava a minha melhor camisa, ela nem reparou que me enterrei.
Enfim, há-de ter gostado, que fiz tudo na maior. Até a carpete bege aspirei antes de ela vir, e será escusado dizer que espalhei óleos essenciais de pinho pela casa. Liguei o YouTube na televisão e pus a dar dez horas de lareira só para o estilo.
Pude ver que ela me estava a achar piada. Tive a escola toda, usei os truques todos, até do expressionismo alemão falei. Distingui uma oração subordinada relativa restritiva de uma oração subordinada relativa explicativa. Citei Dante em italiano, Proust em francês. Não lhe perguntei se ela gostava de Jorge de Sena, mas disse-lhe assim: “Dentífona apriuna a veste iguana”. Ela, que remédio, concordou com tudo.
O cheiro a queijo derretido dava tom de perfeição. Tentando não ser alarve, comi tudo devagar. Ela mais devagar comeu, mas também não sobrou nada. Num primeiro encontro, ninguém fazia cerimónias.
Ela estava muito bonita e então deixou de estar. Nem percebi o que me caiu em cima. Quando o INEM chegou, ainda eu estava à nora. Ela tinha comido a pizza inteira, sem refilar, sem hesitar. O ananás estava fresco, o bacon estava crocante. Não me podia ter dito que era alérgica a porco?
Foi tudo ao charco. Morreu antes de chegar ao hospital, a nossa história de amor acabou naquele dia. No funeral, ainda lhe pisquei o olho à prima, que vem cá para a semana sacar uns cogumelos. Depois conto se sempre pintou um clima.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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