Elida Almeida quebrou um ciclo de extrema pobreza através da música, empoderou a família inteira e habituou-nos a olhar Cabo Verde através das suas músicas de intervenção. Mora hoje em Lisboa, a cidade que considera um “meio termo”, mas começou por ser a “menina do Matinho”, criada nesta zona da cidade de Pedra Badejo, bem no interior da ilha de Santiago. Ali, conquistou o mundo de “dentro pra fora”, como diz. Reconhece saber muito bem de onde veio e nomeia um a um os vários desafios que enfrentou e superou até chegar aqui, a dias de subir ao palco do Capitólio (dia 25 de março).

Foi o vizinho Zito quem lhe ensinou os primeiros acordes, quando tudo o que tinha era “fome de guitarra”, mas era a voz que deixava a professora orgulhosa por ter uma aluna em intercâmbio com aquele poderio todo. Diz que foi primeiro descoberta povo e depois pelo resto do mundo. Por isso é que ainda hoje tem em Cabo Verde a fonte de inspiração.

A cantora que não tem pressa e faz sua música com raiz na sonoridade, intenção nas palavras e inovação na roupagem, já soma quatro trabalhos discográficos de grande impacto na sua terra natal e no mercado da World Music.

“Não tenho fórmulas. Tudo o que sou desde tenra idade, a minha vivência e todas as músicas que consumo saem de mim em forma de canções e da maneira mais natural”.

Assim nos confidencia Elida, nesta entrevista que lhe propusemos e que é uma ode à vida que teve e aquela com que sonha.

Fotos: Líbia Florentino

Leia esta entrevista também em crioulo, aqui

Na tua música de estreia cantas a frase: “Eu sei que vou conseguir!”. Conseguiste?

Ainda estou muito longe de onde quero chegar! Mas já conquistei muita coisa. Esse tema tem esse lado de uma menina que nasceu numa zona remota chamado “Matinho”, interior de Pedra Badejo, interior do interior, que veio de uma família humilde e que enfrentou muito cedo uma série de desafios na vida. Cresci num meio humilde, primeiramente com a minha avó, depois com a minha tia e só depois com a minha mãe, perdi o meu pai quando tinha oito anos e fui mãe precoce aos 16… Sou uma menina que enfrentou muitos desafios, mas que sonha muito. Escrevi o “N’ta Konsigi” num dia como este, em que tudo estava a dar errado, num dia em que me senti abandonada pelo nosso criador. Foi num dia como este, em que secou o gás, numa sexta-feira Santa, era final do dia e a minha mãe não tinha como mandar dinheiro – estava tudo fechado. Era fim-de-semana de Páscoa, muito sagrado para nós. Já tínhamos as compras feitas, mas não havia gás e eu questionei o que ia dar aos meus irmãos, ao meu filho e à minha avó. Mas como já tinha aprendido alguns acordes, comecei a tocar e a sussurrar as primeiras notas e disse: 

– “Uau! Isso está muito bom!”

Foi a primeira música que fizeste?

 Foi a primeira música que fiz na vida, com 17 anos. A primeira de todas! Nunca antes tinha feito nada e, se prestares atenção, o tema começa com:

–  “hum, hum, hum” 

Tipo um sussurro. E acabou por dar vida à música que mudou a minha. Acredito que também mudou e vai mudar a vida de muita gente, de todos os cabo-verdianos que entendem o que eu falo e entendem a minha dor – além da minha esperança, que está muito clara no tema. Mudou a vida de pessoas, mudou a minha vida, a dos meus irmãos e está a mudar a vida da minha mãe.

Mas quando dizes que ainda estás longe de onde queres chegar quer dizer que para ti este “Conseguir” tem outra dimensão?

Não consigo dizer se quero chegar ao Japão, por exemplo. Já lá estive, mas não é isso. Eu quero que a Elida seja um marco na música de Cabo Verde, na música africana. Quando digo “conseguir”, é quando vejo no panorama africano pessoas como Youssou Ndour, Salif Keita, Cesária, Miriam Makeba e por aí em diante.

“Quero que, um dia, quando falarem da música africana, também falem da Elida.”

Não achas que isso já aconteceu em parte?

(risos) Sim! As coisas aconteceram muito rapidamente, apesar de eu ter começado muito cedo aos 17 anos com as minhas composições. Quando fui descoberta pelo Djô, meu empresário, em janeiro de 2014, eu tinha 21 anos e já tinha temas como “N’ta Konsigi”, “Joana”, “Leban Ku Bó”, “Nhu Santiago” e várias outras músicas. Tinha inspiração para dar e vender, pela vida dura que tinha.

Fui descoberta em janeiro de 2014 e em outubro de 2014 estava a lançar o meu primeiro single. Foi tudo muito rápido. Mas mais rapidamente foi como as minhas músicas chegaram às pessoas e as contagiou! As visualizações dispararam, o tema “N’ta Konsigi” fez parte de uma telenovela da TVI. Tudo aconteceu muito rápido e isso fez como que as pessoas criassem grandes expectativas em relação ao meu primeiro disco, perguntando “quando vai sair?” ou “o que vem a seguir?”.

E quando foi a data de lançamento do primeiro disco?

O disco saiu em dezembro de 2014 e chama-se “Ora doci ora margós”, o que quer dizer “Hora doce, hora amarga”.

O tema do teu primeiro disco reflete a tua vida antes de teres encontrado o teu empresário?

Exatamente, mas não só. É um resumo da vida de 90% dos cabo-verdianos e milhares de pessoas que se identificaram com o disco. É como se falasse delas todas e elas me dissessem:

– “…isso fala de mim, embora eu não tivesse desabafado nada contigo!” 

É que nós artistas temos mesmo esta capacidade de retratar a vida das pessoas sem darmos por isso. O meu tema de estreia tocou a todos os cabo-verdianos de Santo Antão à Brava e toda a diáspora.

Esse tema será uma resposta para o que tanto ansiavas? 

Não sei se era isso… Mas eu sempre tive uma luz e uma fé dentro de mim e dizia:

– “Não importa o que já passaste até aqui, Elida. Que não comas numa Páscoa ou que tenhas dívida de uma roupa que pediste fiado para ser backing vocal num concerto, e que depois não foste paga e ficaste a dever a terceiros.” 

Não desisti de sonhar e sabia bem que, mais tarde ou mais cedo, tudo iria resolver-se e eu iria conseguir. 

Antes de tu seres descoberta pelo teu empresário, onde cantaste pela primeira vez fora do contexto de família, casa, intimidade?

A primeira vez que enfrentei o público foi na Igreja católica na Ilha do Maio, porque fui viver com a minha mãe naquela ilha aos 14 anos. Sempre gostei de cantar, mas como vivia com a minha tia, ela não me deixava porque dizia que eu era “filha de terceiros” e, se acontecesse alguma coisa, ela teria de se responsabilizar. Então, ela não me deixava ir aos ensaios da Igreja. Mas, já na ilha de Maio, com a minha mãe, o local de ensaio do grupo coral da Igreja era em frente à nossa casa: insisti tanto e pronto, ela deixou-me ir, até porque era perto. Lembro-me como se fosse hoje do primeiro salmo que cantei.

– “O Senhor é meu pastor, nada me faltará.” 

Quando desci do altar depois da missa, todos olhavam para mim e vieram dizer-me:

– “Tens uma voz! Tens algo!”

E eu, com 14 anos de idade, nem tinha noção do que se passava ali. Mas houve pessoas que foram à nossa casa dizer à minha mãe:

– “Olha, a tua filha tem uma voz incrível, tens de investir nela”.

Mas a minha mãe não dava nada por aquilo, porque teve uma educação na qual aprendeu que a musica é uma brincadeira, é um hobby. Aliás, até hoje é assim! Se eu disser à minha mãe que vou parar de cantar e vou estudar, ela vai dar uma festa! Iria marcar uma missa por causa da educação que ensina, que tens de ter um diploma… Não está errado, mas pronto!

“De regresso a Pedra Badejo aos 17 anos, já com o meu bebé no colo, responsável pelos meus dois irmãos, mais o meu filho de menos de um ano, passei a fazer parte da associação de estudantes quando comecei a desenvolver os meus primeiros acordes.”

Quem te ensinou a tocar?

Tive dois professores. O primeiro foi o meu vizinho Zito! Quando aprendi os primeiros acordes, eu tinha muita “fome” de guitarra e, quando ele me ensinava a tocar, eu pedia a guitarra dele emprestada e trancava-me no meu quarto para que quando ele a fosse buscar não me encontrasse, porque eu queria tocar o tempo todo. Depois, tive outro instrutor que era meu colega de escola e que se chamava Adérito. Foi assim que fui tocando nos intercâmbios entre as escolas. Na verdade, nunca fui tão longe no que tange a guitarra, mas aprendi os acordes necessários para compor a minha música e ganhar a minha musicalidade. 

Quando começaste a cantar a solo? 

Comecei a cantar depois de ter ganho um concurso. Não sei se na Guiné-Bissau tem, mas em Cabo Verde existe o “Todo Mundo Canta” – que, aliás, lançou muitos grandes talentos como Jorge Neto, por exemplo. Todos os anos, em julho, acontece o “Todo Mundo Canta”. Então, em 2012, depois de ter feito todos aqueles intercâmbios, comecei a ganhar o público escolar e tinha várias composições que fiz, incluindo canções ligadas à educação para despertar nos alunos a vontade de estudar e não dizer:

– “Ah, não tenho cabeça para a escola!” 

Acho essa frase um bocado “sem sentido” e, por isso, fazia temas de intervenção já nessa altura e já com um público e uma notoriedade ainda como estudante. A nossa professora ficava toda vaidosa quando íamos para um intercâmbio, porque tinha uma aluna que cantava. A minha escola era a Escola Secundária Ferreira da Cruz Silva de Pedra Badejo. Então, a partir daí comecei a pensar em participar no programa, mas fiquei receosa porque sou muito competitiva e já tinha participado num concurso que era a “Estrela Pop”, em que achava que tinha sido injustiçada. Voltei para casa com febre, porque não aceitava a derrota e, então, só de pensar que podia passar pela mesma coisa outra vez, sentia medo. Mas ganhei coragem, fui e ganhei com o tema “Nta Konsigui”, tema que cantei desde o primeiro dia de gala e, já no final, todo o público sabia cantá-lo. 

Então, foste conquistando o teu público nestes concursos e intercâmbios da escola, até o dia em que te encontraste com o teu empresário. Onde é que ele te viu?

Antes disso, ainda voltei para a Ilha de Maio de férias, porque a minha mãe ainda estava lá e, quando cheguei, tinha um concurso que era “Talento Djarmai”. Quis concorrer, mas a minha mãe alertou:

Foto: Líbia Florentino

– “Olha que nesta terra que não é nossa, se ganhares vão nos chatear!” 

Mas fui e ganhei. E como foi numa ilha, teve mais destaque, mais holofotes. Voltei para a Cidade da Praia em Santiago, fiz algumas promoções e, por isso, durante muito tempo muitas pessoas pensavam que eu era da Ilha de Maio.

Depois de ter terminado o secundário, já na universidade, na cidade da Praia a fazer um curso de comunicação e multimédia, comecei a fazer noites, a cantar em bares. As pessoas ouviam falar da Daisy – o meu nome de casa é Daisy -, até o dia em que me encontrei com o Djô.

Como é que se encontraram?

Foi na Praia, num lugar chamado Económico, no bairro da Fazenda, bar de um amigo chamado Rui di Betina. Aconteceu num dia em que não tinha vontade nenhuma de cantar porque estava triste. Era final de semestre, todos os colegas tinham ido para casa, mas eu fiquei porque tinha duas disciplinas para ir a exame e não tinha dinheiro. Tive três dias a comer farinha de milho torrado com açúcar (Camoka) e água , sem vontade de cantar, nem de fazer nada. Mas o pianista que me acompanhava e que era da ilha de Maio insistiu e disse:

– “Vem! Vem, que vais descontrair e vai te fazer bem! Vou fazer uma comida boa.” 

Fui e comecei a cantar e, de repente, vi aquele senhor a passar e perguntei logo se era o Djô da Silva. “Avé Maria!”. O coração disparou e ele mandou-me relaxar, mas a atuação já não foi igual. E, nessa mesma noite, estava com a Assol Garcia, andávamos muito juntas, ela foi ver-me a cantar e, no meio da minha atuação, chamei-a. Ela já tinha mais estrada, era bem mais desinibida e interagia bem com o público e eu só disse para mim mesma que não era desta. Mas, para meu espanto, no final da noite ele fez um gesto para eu ir ter com ele, fui e ele perguntou o meu nome. 

– “Que voz bonita tens! Gostei muito da tua voz gostaria de me sentar contigo e quem sabe trabalharmos juntos”

Eu já estava na cidade da Praia e já tinha recebido várias propostas que não avançavam. No fim da conversa, contei-lhe que escrevia e ele ficou muito admirado. Pediu que lhe enviasse alguns temas e eu só me questionava: 

– “Será que a minha porta já abriu?” 

Mandei-lhe um email com aquelas músicas e ele perguntou se eram mesmo minhas. Disse que sim e ele:

– “Amanhã tens estúdio marcado à tal hora!”

E apressou o processo. 

Tinha chegado a tua hora?

Sim! A minha hora chegou ali, naquele momento. Tive a sorte de estar no lugar certo na hora certa, mas também tive a sorte de estar preparada, com as ferramentas para prosseguir. Não fiquei à espera que me caísse do céu. Fui escrevendo as minhas músicas, participando em concursos, sempre a ter iniciativa. Fui preparando-me para esse dia. Acredito que a sorte sempre vem, mas se não estás preparado, bate e volta a ir. Eu acreditei que era a minha vez, a minha a oportunidade. Então, agarrei com força e trabalho para me superar todos os dias. Se ainda estou com a Lusafrica foi porque levo tudo isto muito a sério, não brinco com o meu trabalho. Ouço todos os conselhos do meu empresário e pratico-os. É a minha profissão, assim como um pedreiro, um médico. Estudava sobre o que é rima, verso, poemas e tudo, enquanto aprendia a cantar. O meu empresário ensinou-me a gesticular, a dar entrevistas. Hoje, sou o que sou graças ao Djô da Silva, mas também tive a capacidade de absorver tudo o que me ensinou. Para vir dar esta entrevista, consultei-o.

Tinhas quantos temas compostos na altura em que foste descoberta?

Muito temas. No disco entraram nove temas dos 12, mas tinha mais composições já naquela altura.

Logo após o lançamento do primeiro álbum, houve um boom a nível internacional. Como explicas isso?

Para mim, já era tudo “às mil maravilhas”, o que já estava a acontecer em Cabo Verde. O sucesso internacional foi um acréscimo. Passar de dia para a noite, de ser backing vocal e ter um disco a solo, uma carreira debutante promissora e pessoas a pararem-me na rua para fazer foto e pedir autógrafos, era maravilhoso!

“Eu fui descoberta primeiro pelo meu povo e depois pelo mundo. O cabo-verdiano quando gosta, gosta e faz de tudo para te promover e partilhar tudo sobre ti com o mundo. Então tive esse privilégio que não foi de fora para dentro como muitos, mas de dentro pra fora. Isso me mantém até hoje de pé. Tenho o suporte de casa. Digo sempre que Cabo Verde é a minha fonte de inspiração.”

Continuas sempre conectada a Cabo Verde e és claramente uma cantora de intervenção social. Abordas nas tuas composições temas relacionados com a mulher, violência sexual entre outros na sociedade cabo-verdiana. Porquê?

Porque me preocupa e acho que temos de provocar a mudança. Temos duas facetas: somos um povo que gosta de festa, de ser alegre; mas temos o outro lado que precisa de ser abordado para que haja mudanças. Desde muito cedo, no meu primeiro trabalho, fiz questão de falar de temas que abordam flagelos sociais com os quais lidamos no dia a dia. Desde a desconstrução do machismo, o enaltecer a mulher. Ultimamente, tenho colocado ainda mais o dedo na ferida e sei que faz sofrer as famílias ao ouvir canções que falam tão abertamente sobre determinadas temáticas, mas chama atenção ao sistema. E, de uma certa forma, dou  sociedade um espaço para refletir e dizer a si própria:

–  “O que eu posso fazer para que isto seja diferente?”.

“Desta vez, no meu último disco, toquei num tema mais profundo, que é o do abuso sexual de menores. Algo normalizado em Cabo Verde. Inúmeros casos de avô que é pai do neto, de tio que é pai do sobrinho. Algo que tem infelizmente acontecido regularmente em Cabo Verde, mas que temos de abordar e não esconder debaixo do tapete.”

Fiquei surpresa com o número de pessoas que querem dar a cara e assumem que já passaram pela mesma situação, sem vergonha. Pessoas que dizem que gostavam de dar o seu testemunho. Há dias toquei no Centro Cultural de Cabo Verde e via no rosto de muitas pessoas a expressão de que estava de certa forma a falar delas. Muitas enxugaram as lágrimas.

Acreditas que tens sido a voz de milhares?

Sim, acredito que tenho sido uma voz e um grito de socorro de muitas pessoas. “Forti Dor” é um exemplo, uma das minhas músicas mais ouvidas. Relatei-a assim como se sucedeu: a minha mãe foi visitar uma amiga que perdeu o seu filho, colega do meu irmão, e ela disse que a mulher estava “enlouquecida” –  o triste acontecimento de uma mulher que perdeu o seu filho de 16 anos, assassinado, e que no desespero pedia que colocassem agasalho e comida no caixão, para que não passasse fome nem frio debaixo da terra.

Foto: Líbia Florentino

Porque escolheste Lisboa para viver?

De todos os lugares do mundo onde eu já visitei, Lisboa é convidativa. É o meio termo. Eu, por exemplo, gosto do frio (risos). Este frio não é como o frio de França, mas também não é quente como Cabo Verde. Brincadeira à parte, mas todos nós acabamos por ter um vínculo com Lisboa. Tenho cá muitos familiares e amigos, é dos países mais prestigiados no que tange a direitos, no mundo. Na verdade, queria ter ido fazer Direito em Coimbra, mas depois, por questões logísticas, decidi ficar por Lisboa, porque para quem trabalha também com a música, Lisboa fica mais centralizada e dá mais jeito apanhar aviões. Então, decidi vir para estudar Direito em 2019, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, na clássica. No primeiro ano, o embate foi grande, recuei, preparei mais um ano e voltei, e ainda assim não foi suficiente, porque Direito exige de mim algo que ainda não lhe posso dar, que é estar 500% focado nele. Isto com a música fica complicado.

Mas continuas a viver aqui, trouxeste teu filho. Aliás, disseste que tua música mudou tua vida e a vida dos teus. Sentes-te mãe não só do teu filho?

Às vezes sinto que tenho “alma velha”. A maternidade precoce trouxe uma maturidade precoce. Ver-me a mim e aos meus dois irmãos – um rapaz e uma menina -, mais o meu filho… Eu tive de cuidar deles, mesmo não sendo quem ia buscar mantimentos, mas tinha de cozinhar, gerir e cuidar deles.

“Hoje, depois de ter quebrado um ciclo de pobreza extrema através da música, sou mãe do meu filho, dos meus irmãos e da minha mãe. Graças a isso, a minha irmã hoje é enfermeira e através desse curso ela poderá ajudar tanta gente. Também dei a minha mãe a cozinha que sempre sonhou. Espero que nunca mais a minha família passe pela mesma situação. Sinto que foi quebrado um ciclo. A minha irmã está a fazer mestrado, o meu irmão está a fazer a sua formação.”

De uma certa forma, empoderaste a tua família? 

Sim! E estou a ter oportunidade de dar ao meu filho o que eu não tive, mas sem ultrapassar os limites. Lutar para dar o que precisa, mas fazer com que ele tenha noção de que nem tudo podemos ter. Ele tem que ter base e alicerces que formam o seu caráter com os mesmos valores que prego e vivo.

Quais são as tuas perspetivas no mundo da música aqui em Lisboa?

Gosto de Lisboa! Sinto-me em casa. Aqui tenho amigos, madrinha, padrinho, tios, primos. Todos os fins de semana, estou com os meus primos ou eles estão comigo. Gosto muito deste ambiente. Estar em Lisboa é como estar em Cabo Verde, em parte. Musicalmente, Portugal não está entre os países onde mais faço concertos por ano, mas os espetáculos que tenho feito cá têm sempre um sabor especial. Para já, falo português, que é a nossa língua oficial, e que acredito que falo melhor do que francês ou inglês. Fiz o tema “Mau Menino”, com um cantor português de origem angolana que tem também uma costela cabo-verdiana, o Jimmy P, mas não tenho pressa. Quero que as coisas aconteçam naturalmente. Esse featuring aconteceu naturalmente. Em Lisboa, quero que os meus concertos em salas ou parcerias musicais também aconteçam de uma forma natural.

Quais são as expectativas para o Capitólio?

Já o tinha feito em 2019 e conseguimos encher a casa. Vou repetir desta vez e vai ser com um sabor muito especial porque já conheço a casa e vou ter outros convidados. Vou levar um disco que significa muito para mim.

Porque é que é um disco especial para ti?

Porque foi um disco que fiz com tempo, sem pressa. E saiu exatamente quando eu queria que saísse. Tem as duas facetas da Elida. Uma faceta acústica e outra faceta eletrónica, que tenho também em mim. Vem das minhas influências e gostos musicais, vem do meu tempo. Porque faço parte dessa geração. Então, sinto que este é um disco com o qual farei dois caminhos.

Que caminhos são esses?

Acústico e electro – oscila muito entre as coisas que consumo. Estilos musicais, países que vou descobrindo e culturas diferentes. Por exemplo, “Gerason Nobo”, que saiu no contexto pandémico em 2020, já dava indícios da minha nova sonoridade. Ainda não tínhamos chegado lá, mas neste disco foi o perfeito casamento entre o meu produtor de sempre Hernâni Almeida e Moumou, grande beatmaker da Costa do Marfim, que tem estado a fazer um grande trabalho em todo o continente africano. Oiço os dois produtores que estão no disco na medida perfeita, mais a sonoridade que fui lhes entregando em cada composição e a sabedoria do Djô da Silva. Estamos todos contentes com o trabalho que fizemos.

Qual foi o featuring que fizeste que te causou maior impacto?

Foi quando recebi um telefonema do meu manager, seis meses depois de ter lançado o primeiro disco a dizer que a Lura – umas das minhas maiores referências na música – queira fazer um featuring comigo. Foi algo que teve um impacto muito grande no meu coração, mas era por causa de toda aquela conjuntura, um tema meu, a primeira parceria, enfim. Teve um tempero especial. Mas, na verdade, todos eles me dão muito prazer de defender ao vivo desde o feat com o Hélio Batalha, com quem me dou bem, a Loony Johnson, que quando nos encontramos é só alegria, a Indira, uma grande amiga, e todos os outros. Todos fluem naturalmente e chegam às pessoas. Um featuring arranjado não tem o mesmo impacto.

E perspetivas para o futuro?

Chegar aos palcos principais dos grandes festivais onde já participei em palcos menores.

“Olhar para trás e ver o caminho que já trilhei até aqui do “Matinho” à Praia, para correr atrás de um sonho, sonho de uma menina que perdeu o pai aos oito anos, para quem todos olhavam com pena, diziam não ter futuro e hoje ter chegado aqui… Tive músicas rejeitadas em bares, onde hoje as ouço a passar. Vejo que ainda há estrada e que vou conseguir!”

Leia esta entrevista também em crioulo, aqui


Karyna Gomes

É a jornalista responsável pelo projeto de jornalismo crioulo na Mensagem, no âmbito do projeto Newspectrum – em parceria com o site Lisboa Criola de Dino D’Santiago. Além de jornalista é cantora, guineense de mãe cabo-verdiana, e escolheu Lisboa para viver desde 2011. Estudou jornalismo no Brasil, e trabalhou na RTP, rádios locais na Guiné-Bissau, foi correspondente de do Jornal “A Semana” de Cabo verde e Associated Press, e trabalhou no mundo das ONG na Unicef e SNV.


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