Uma das grandes vantagens do teatro sobre o cinema enquanto experiência audiovisual é a aparente persistência das memórias que cria. As lembranças de peças que vi há uma ou duas décadas são muito mais vivas do que os filmes a que assisti na mesma altura e não tornei a rever.

Pode haver explicações triviais, como a tridimensionalidade do palco, a pouca frequência com que fui ao teatro, as várias estrelas norte-americanas (de cinema) que vi em palco, etc., mas gostaria de poder concluir que a perenidade destas lembranças se deve à impossibilidade de repetir a experiência, como se inconscientemente houvesse um esforço para preservar na lembrança o que não pode ser replicado (e ver teatro por uma gravação não é a mesma coisa).

Ir ao teatro continua ainda a ser uma experiência colectiva, enquanto, por força da pandemia e do triunfo do streaming, o cinema é cada vez mais consumido em casa.

É o teatro que concretiza o que deve ser a vida na pólis, como lugar de convívio em que experimentamos alguma sincronia de emoções, mas também discordâncias e o risco do confronto com outros cidadãos.

Sempre foi assim no teatro, dos gregos a Brecht e depois, nomeadamente, nas companhias de vanguarda de pouco público, mas neste pós-pandemia tenho reparado que também as peças mais marcantes que têm passado por Lisboa como sucessos comerciais, artísticos e mediáticos são explicitamente políticas na sua génese ou na forma como foram recebidas, parecendo formar um crescendo de polémica.

Em Pais & Filhos, que inaugurou o pós-pandemia no São Luiz, assistimos a uma boa ideia de Pedro Penim, que se lembrou de adaptar o enredo de Pais e Filhos (1862), de Ivan Turgueniev, à luz da Ecologia Cyborg e do Comunismo Queer. E assim, o primeiro contacto de muitos com o niilista Bazarov de Turgueniev, uma das grandes personagens do romance russo, fez-se pela versão da  “camarada” niilista queer que quer implodir os conceitos de género e família.

A peça começa com um monólogo de Penim, mais didáctico do que teatral, sobre a sua própria experiência de parentalidade, que envolveu uma gestação de substituição. O cunho autobiográfico da introdução serve para predispor o público à empatia, mas numa plateia que juntava a burguesia de Lisboa, estudantes, artistas e intelectuais, senti que a predisposição para concordar já seria grande.

Não deixa de ser curioso como toda a plateia se mostrou tão receptiva ao esvaziamento da importância do parentesco biológico, precisamente quando ainda há pouco, alguns progressistas defensores do casamento entre homossexuais mostravam-se críticos dos projectos de parentalidade destes com recurso à gestação.

Um outro comportamento curioso teve a plateia do grande auditório do Centro Cultural de Belém, onde assisti a Catarina e a Beleza de Matar Fascistas.

Trata-se de uma grande e premiadíssima ideia de Tiago Rodrigues. Há uma família que mata fascistas há várias décadas e assistimos ao que deveria ser o dia em que uma das jovens da família cumpriria o ritual iniciático, matando o seu fascista, ainda fresco de um rapto recente.

A peça faz lembrar uma versão em modo de distopia esquerdista de Get Out, o brilhante filme de Jordan Peele em que uma família aparentemente progressista se revela torturadora de negros. Mas em Catarina e… há  uma hesitação e recusa da tradição familiar que não se vê na família norte-americana racista e que desmente o título da peça.

Não é certo que toda a plateia em que me encontrava, claramente de esquerda, sem estar a par deste enredo, tivesse visto gorada a expectativa de assistir à teatralização do sacrifício de um fascista, quem sabe se um anseio inconfessável, agora que já não existe o terrorismo de extrema-esquerda que na Europa dos anos 1970 despertava algumas paixões.

Mas quando, no final da peça, o fascista, já solto e animado pela certeza de que havia futuro, se lança num longuíssimo monólogo de populista ao estilo de André Ventura and friends, a plateia, talvez vítima de uma experiência de manipulação involuntária, começou a demonstrar um desconforto crescente que deu origem a palavras de ordem aqui e ali, pedidos acolá para que o fascista se calasse, cânticos (Grândola, Vila Morena) e abandonos prematuros da sala com as caras dominadas por uma frustração só habitual no adepto da equipa que perde em casa por 4 a menos de 10 minutos do fim da partida.

O fascista não se calou e este final com a participação espontânea do público (que, vim a saber depois, foi recorrente, em Portugal e no estrangeiro) tornou a peça ainda mais inesquecível.

A última peça (a que não assisti), concretiza o crescendo. Como todos sabem, uma representação de Tudo sobre Minha Mãe (no São Luiz) foi interrompida por uma activista trans que verbalizou a acusação de transfake (quando um actor cis representa uma personagem trans).

Sendo brutal o contraste entre esta acção intrusiva e o easy listening progressista de Pais & Filhos, de Penim, desta vez não houve um plácido e silencioso consenso mas uma polarização bem ruidosa.

Entre os fazedores de opinião, tivemos manifestações de apoio (Dusty Whistles, Capicua, Luísa Semedo e Carmo Afonso),  de condenação (Maria João Marques, Afonso Reis Cabral,  a CML, o painel inteiro do Sem Moderação, José Manuel Fernandes e até Francisco Louçã) e em modo “uma no cravo e outra na ferradura” (Manuel Carvalho e Fernanda Câncio).

Os críticos frisaram a essência do teatro enquanto representação, a liberdade de criação artística, o risco de se substituir a democracia representativa pela política identitária e a violência e intransigência do activismo trans.

Sobre a ideia do teatro como representação, recomendo este texto de José Maria Vieira Mendes e indico apenas um equívoco muito presente nesta discussão. Muitos lembraram que, a generalizar as pretensões dos trans, só os médicos poderiam fazer um papel de médico, os escravos na vida real um papel de escravo, os homossexuais o papel de homossexual, os liberais em toda a linha o papel de um liberal na economia e nos costumes, etc.

Estes exemplos não são meras caricaturas, isto é, simples distorções de traços que ainda captam a essência original, e sim grosseiros erros de categoria. Porque no centro desta polémica está a transformação do corpo físico e a identidade e não a profissão, nem a ideologia da pessoa, nem sequer apenas a identidade mais íntima (como quando um heterossexual faz um personagem homossexual).

Esta incapacidade de reconhecer algo tão evidente ilustra bem a enorme exigência de empatia que a luta pelos direitos dos trans exige aos cis. Obviamente, a única comparação aproximada entre um papel de trans representado por um cis é com os papéis femininos representados no passado por homens, quando às mulheres o palco estava vedado, mas mesmo aqui há uma diferença crucial. Quando um homem faz de mulher, a acção de encarnar uma personagem não se confunde com a condição de mulher; ao invés, quando um cis faz de trans no palco, o acto de encarnar a personagem mimetiza na aparência a condição de trans. Trata-se de um caso mesmo muito particular, que não pode ser destrunfado pelo exemplo inverso, porque ao encarnar um cis, um actor trans não mimetiza a condição de cis.

Quanto à liberdade de criação artística, o encenador Daniel Gorjão lembrou que no elenco original da peça já havia uma atriz trans e o recurso ao transfake para o menor dos papéis das personagens trans da peça terá resultado de limitações orçamentais que o protesto ajudou a resolver.

Se foi assim, responder ao apelo dos activistas deixa de ser uma cedência capaz de comprometer a integridade do encenador ou violar a liberdade de criação artística. E talvez seja oportuno desmontar o que se escreveu sobre Pedro Almodóvar. Por ter recorrido nos anos 1980 e 90 a actores trans para representar personagens trans ou cis, em 1999, quando sai Todo sobre mi Madre, Almodóvar já era “pós-trans” num mundo ainda muito mais “pré-trans” do que é hoje, no sentido de vivermos uma revolução no modo como a autodeterminação sexual é valorizada. Assim, o que Almodóvar fez em 1999 não será muito relevante.

Então e os perigos da política identitária, que são reais? Convém lembrar que os transexuais geram ódios em todos os grupos, incluindo outros elementos da comunidade LGBT+ e as feministas. Atacados por todos os lados, demograficamente irrelevantes e ainda mais excluídos socialmente do que as outras minorias, teremos o direito de exigir que sejam os trans a dar o exemplo do que será viver numa sociedade pós-trans se nem Obama, quando foi o homem mais poderoso do mundo, conseguiu criar os EUA pós-raciais com que sonhava?

O protesto no São Luiz não foi limpo. Houve agressividade,  o actor que representava o papel trans foi insultado e humilhado, o direito da assistência a ver o espetáculo foi violado e o radicalismo foi paradoxal (por se atacar a primeira ou uma das primeiras produções a levar uma actriz trans a um dos palcos nobres de Lisboa).

Por isso, é natural que tivesse ferido a sensibilidade de muitos colunistas, todos cis e burgueses. E a pretensão absolutista de reservar os papéis de trans exclusivamente para trans não demoverá os cis, que continuarão convencidos de que em The Danish Girl, o actor (cis) Eddie Redmayne deu muito boa imprensa aos trans ao interpretar uma personagem trans e que eles, ao elogiar esta representação, deram um louvável exemplo de empatia.

O que nós, os cis, precisamos de perceber é que os trans devem estar fartos e frustrados por haver sempre um Eddie ou um Pedro Almodóvar a recolher os louros de uma luta que deve ser de todos os que querem uma sociedade mais inclusiva, mas liderada pelas vítimas. E para concordarmos nesta conclusão não precisamos de capacidades empáticas extraordinárias.

Não foi a moda recente da política identitária a ensinar-nos que as conquistas das minorias só são sólidas quando protagonizadas por elementos dessas minorias e não resultado das benesses ou caridade de outros. Foi assim com os direitos das mulheres (as sufragistas), os movimentos pelos direitos cívicos nos EUA (Martin Luther King e outros líderes negros) ou as conquistas recentes dos homossexuais por todo o mundo ocidental e também em Portugal (Miguel Vale de Almeida e outros homossexuais).

Não tenho nenhum fascínio pela violência revolucionária. Lá fora e também já entre nós, há um radicalismo trans contraproducente a prazo. Mas não é oportuno fazer essa crítica na ressaca daquela que terá sido a mais notada manobra do activismo trans em Portugal.

Prefiro lembrar que a ideação suicida entre os trans é de 82% e que são 40% os trans que tentam suicidar-se, por uma multitude de causas que incluem a falta de oportunidades de trabalho. Promover a integração dos trans em profissões que a sociedade valoriza, possibilitando o aparecimento de figuras trans inspiradoras, seria não só uma medida justa, mas vendo os números do suicídio entre os jovens trans, possivelmente também uma medida de saúde pública.


Vasco M. Barreto

É biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.

Lia Ferreira

Lia Ferreira

Nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.

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